sexta-feira, 26 de junho de 2015

Ainda ser versus existência; as imagens sensíveis e a conversio ad phantasmata; etc. (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


RESPOSTAS DO PROFESSOR NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO

1) Vamos ver se entendi agora [a complexa questão “ser” versus “existência”]. A existência é o ser enquanto predicado a algo; nesse sentido, e apenas nesse, pode ser dito o “ser que se encontra no juízo”. Quando digo, por exemplo, “meu cachorro é”, esse “ser” que lhe predico é sua existência (é o que responde à questão an sit). Essa existência eu a toco com os dedos – é concreta – e posso distingui-la apenas gnosiologicamente (e não in re) da essência do ente, porque quando abstraio a essência “cachorro” a separo (abstrativamente, e apenas assim) da existência sensível do animal. De outro modo: a existência do cão está nele realmente – vem dele, por assim dizer; não lhe é, como supunha Platão, extrínseca.

RESPOSTA. Creio que está tudo perfeito, com talvez esta ressalva: salvo engano, em Platão não está claro se a existência é uma ideia, à parte.

2) Já o esse é o ser enquanto ato de ser que, participado ao ente, é a causa da sua existência. Ele é distinguível in re (e não apenas abstrativamente) da essência, porque é aquilo que, vindo de fora, por assim dizer – ou participado “desde fora”, por Deus mesmo, ao ente – atua a essência do ente e lhe dá existência.

RESPOSTA. Sim.

3) Em suma: o esse está para a existência como a causa está para o efeito.

RESPOSTA. Pode dizer-se assim, de fato. Nada além de Deus seria existente, teria existência, sem que Deus lhe participasse ou lhe tivesse participado o ser ou ato de ser.

4) Disso se segue que, propriamente, diz-se “existente” – ou seja, predica-se o ser – daquilo que é em ato, embora o que é em potência possa ser dito existente imperfeitamente, como explica Santo Tomás no trecho que o senhor garimpou.

RESPOSTA. Perfeito. Digo apenas que não o garimpei, senão que o encontrei sem querer em meu estudo do tratado dos anjos na Suma. Transcrevo-o para os demais alunos:
“Ad primum ergo dicendum quod motus ibi non sumitur secundum quod est actus imperfecti, idest existentis in potentia; sed secundum quod est actus perfercti, idest existentis in actu. Sic enim intelligere et sentire dicuntur motus, ut dicitur in II de Anima” (Quanto ao primeiro argumento, deve dizer-se que aí não se toma movimento considerado como ato do imperfeito, isto é, do existente em potência; mas enquanto é ato do perfeito, isto é, do existente em ato. Assim é que o inteligir e o sentir são ditos movimento, como se diz no livro III de Anima) [S. Th., I, q. 58, a. 1, ad 1].

5) Se tudo isso confere, resta-me apenas uma dúvida quanto ao seguinte trecho do Pe. Calderón: “para confirmar a existência das essências abstratas, o intelecto deve voltar aos fantasmas”.


RESPOSTA. Trata-se da conversio ad phantasmata, ou seja, trata-se do voltar-se do intelecto para as imagens sensíveis, das quais a luz agente abstrai as espécies inteligíveis para imprimi-las no intelecto possível e reduzi-lo, assim, a ato. – Eu diria até que, mais que “para confirmar a existência das essências abstratas”, o intelecto se volta para o fantasma para conhecê-las. São palavras de Santo Tomás: “Para que o intelecto conheça em ato seu objeto próprio [ou seja, as essências], é preciso que se volte para os fantasmas a fim de considerar a natureza universal existente [veja-se outra vez o termo!] no particular” (S. Th., I, q. 84, a. 7, c.; destaques meus).

6) Tomemos a essência do ente irreal Esfinge como exemplo: posso dizê-la existente porque, embora esse ente não exista sensivelmente, existe um fantasma em minha imaginação que corresponde a tal essência. É isso que o Pe. Calderón quis dizer?

RESPOSTA. Creio que não seja bem isso. Os fantasmas, antes de tudo e mais propriamente, são-no dos existentes sensíveis. O fantasma da maçã, como disse em alguma aula do curso, é a imagem resultante da paixão e da operação do conjunto de nossos sentidos pela qual conhecemos os termos ou limites sensíveis da maçã: a maçã pode ser entre vermelha e verde, entre doce e ácida, entre suculenta e farinhenta, ter entre tal e tal tamanho, etc. É desta imagem que a luz agente de nosso intelecto abstrai a espécie inteligível da maçã. E assim para todos os entes sensíveis. – Quanto aos entes irreais, como o unicórnio, por exemplo, ou a esfinge, naturalmente são criados pela imaginação sem terem passado pelo processo por que passam os existentes: sua imagem não se cria após a impressão de espécies sensíveis nos sentidos externos, pelo trabalho de unificação do sentido comum, etc. Ou seja, não se trata de imagem sensível ou fantasma em sentido mais próprio, nem pois de espécie inteligível em sentido mais próprio. – Se insisto nisto é porque temo que se confunda fantasma com ente irreal imaginado: fantasma ou imagem sensível é-o antes e mais propriamente dos entes reais.

7) Analogicamente, poderíamos dizer que os fantasmas dos entes de razão são como os “corpos” dos entes sensíveis, dos quais abstraímos sua essência; essência essa que não se distingue deles – nem dos fantasmas, nem dos corpos – realmente. Confere?

RESPOSTA. Aqui há, parece, uma impropriedade: fantasma não é o mesmo que imagem do “corpo” de ente sensível. Fantasma ou imagem sensível é-o dos termos ou limites do conjunto das propriedades sensíveis de um ente, a maçã, ponha-se. Veja-se o que se diz acima da mesma maçã. Se isto fica perfeitamente entendido, então, sim, pode dizer-se que a imagem do unicórnio ou da esfinge é algo análogo à imagem ou fantasma da maçã, etc.

8) Finalmente, quanto aos entes suprassensíveis, conhecemos sua existência dedutivamente, por um raciocínio quia a partir de seus efeitos sensíveis. Sim? 

RESPOSTA. Sim, e isto vale, mutatis mutandis, para Deus, para os anjos e para a alma humana: só os conhecemos a posteriori, ou seja, a partir dos efeitos de que são causa. Tal é assim porque nosso intelecto, unido a um corpo, não pode alçar-se ao suprassensível senão a partir do sensível.