sábado, 23 de março de 2019
sexta-feira, 1 de março de 2019
"LIBERTAS PRAESTANTISSIMUM", de Leão XIII
CARTA ENCÍCLICA DO
SUMO PONTÍFICE LEÃO XIII
LIBERTAS PRAESTANTISSIMUM
SOBRE A LIBERDADE
HUMANA
Aos
Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, e todos os Bispos do Orbe
Católico em comunhão com a Sé Apostólica: Sobre a liberdade humana.
Veneráveis
Irmãos: Saudação e Benção Apostólica.
Exórdio:
Excelência e conceito da liberdade.
1.
A liberdade, excelente bem da natureza e exclusivo apanágio dos seres dotados
de inteligência ou de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual
ele é colocado entre as mãos do seu conselho e se torna senhor
de seus atos. E o que, todavia, é principalmente importante nesta prerrogativa
é a maneira como ela se exerce, porque do uso da liberdade nascem os maiores
males, assim como os maiores bens. Sem dúvida, está no poder do homem obedecer
à razão, praticar o bem, caminhar direito ao seu fim supremo. Mas pode também
seguir outra direção diferente, e, seguindo espectros de bens falazes, destruir
a ordem legítima e correr para uma perdição voluntária.
O
libertador do gênero humano, Jesus Cristo, tendo restaurado e aumentado a
antiga dignidade da nossa natureza, fez sentir sua influência principalmente
sobre a vontade mesma do homem; e, pela sua graça, que lhe prodigalizou os
socorros, pela felicidade eterna, de que lhe abriu a perspectiva no Céu,
elevou-o a um estado melhor. E, por um motivo semelhante a Igreja bem mereceu
sempre deste dom excelente da nossa natureza, e não cessará de bem merecer
dele, pois que é a ela que pertence assegurar aos benefícios, que nós devemos a
Jesus Cristo, a sua propagação em toda a consecução dos séculos. — E, contudo,
há um grande número de homens que crêem que a Igreja é adversária da liberdade
humana. A causa disto está na idéia defeituosa, e como ao avesso, que se faz da
liberdade; porque, com esta mesma alteração da sua noção, ou com a exagerada
extensão que se lhe dá, chega-se a aplica-la a muitas coisas, nas quais o
homem, a julgar segundo a reta razão, não pode ser livre.
Erros sobre a liberdade.
2.
Já falamos algures, e principalmente na Encíclica Immortale Dei (sobre
a Constituição Cristã dos Estados. DP 14), daquilo a que chamam as liberdades
modernas; e, distinguindo nelas o bem daquilo que lhe é oposto, Nós
estabelecemos ao mesmo tempo que tudo o que essas liberdades contêm de bom é
tão antigo como a verdade, como um elemento corrompido, produzido pela perturbação
dos tempos e pelo desordenado amor da inovação. Mas, visto que muitos se
obstinam em ver nestas liberdades, mesmo no que elas contêm de vicioso, a mais
bela glória da nossa época e o necessário fundamento das constituições
políticas, como se sem elas se não pusesse imaginar o governo perfeito,
pareceu-Nos necessário para o interesse público, em face do qual Nós Nos
colocamos, tratar expressamente esta questão.
A)
A LIBERDADE MORAL NO INDIVÍDUO.
3.
O que diretamente Nós temos em vista é a liberdade moral,
considerada quer nos indivíduos, quer na sociedade. É bom, entretanto, dizer em
primeiro lugar algumas palavras sobre a liberdade natural, a qual,
apesar de ser completamente distinta da liberdade moral, é contudo a fonte e o
princípio donde toda a espécie de liberdade dimana por si mesma e como
espontaneamente.
A
liberdade natural é própria dos seres racionais.
4.
Esta liberdade, que certamente é para nós a voz da natureza, o juízo e senso
comum de todos os homens não a reconhecem senão aos seres que têm o uso da
inteligência ou da razão, e é nela que consiste manifestamente a causa que nos
faz considerar o homem responsável pelos seus atos. E não podia ser doutra
maneira; porque, ao passo que os animais não obedecem senão aos sentidos e não
são impelidos senão pelo instinto natural a procurar o que lhes é útil ou a
evitar o que lhes seria prejudicial, o homem tem, em cada uma das ações de sua
vida, a razão para o guiar. Ora, a razão, relativamente aos bens deste mundo,
diz-nos de todos e de cada um que eles podem indiferentemente ser ou não ser;
donde se conclui que, não lhes parecendo nenhum deles absolutamente necessário,
ele dá à vontade o poder de opção para escolher o que lhe apraz. Mas se o homem
pode julgar da contingência, como se diz, dos bens de que Nós
falamos, é porque ele tem uma alma simples de sua natureza, espiritual e capaz
de pensar; uma alma que, sendo tal, não tira sua origem das coisas corpóreas,
visto que delas não depende na sua conservação; mas que, criada imediatamente
por Deus e ultrapassando com uma imensa distância a condição comum dos corpos,
tem o seu modo próprio e particular de vida e de ação: donde resulta que,
compreendendo pelo seu pensamento as razões imutáveis e necessárias da verdade
e do bem, vê que estes bens particulares não são de modo algum bens
necessários. Assim provar que a alma humana está desligada de todo o elemento mortal
e é dotada da faculdade de pensar, é estabelecer ao mesmo tempo a liberdade
natural sobre o seu mais sólido fundamento.
A
Igreja Defensora da Liberdade.
5.
Ora, esta doutrina da liberdade como a da simplicidade, espiritualidade e
imortalidade da alma humana, ninguém a prega mais algo e a afirma com mais
constância do que a Igreja Católica; ela tem-na ensinado em todos os tempos e a
defende como um dogma. Mais ainda: perante os ataques dos heréticos e dos
fautores de novas opiniões, a Igreja tem tomado a liberdade sob a sua proteção
e tem salvado da ruína este grande bem do homem. A este respeito, os monumentos
da história testemunham a energia com repeliu os esforços insanos dos Maniqueus
e outros; e, em tempos mais recentes, ninguém ignora com que zelo e força, quer
no Concílio de Trento, quer mais tarde contra os sectários de Jansênio, ela
combateu pela liberdade do homem, não deixando, em nenhum tempo e lugar, tomar
incremento ao Fatalismo.
Noção
de liberdade.
6.
A liberdade, portanto, é, como temos dito, herança daqueles que receberam a
razão ou a inteligência em partilha; e esta liberdade, examinando-se a sua
natureza, outra coisa não é senão a faculdade de escolher entre os meios que
conduzem a um fim determinado. É neste sentido que aquele que tem a faculdade
de escolher uma coisa entre alguma outra, é senhor de seus atos. Ora, toda a
coisa aceita com o fim de obter por ela uma outra, pertence ao gênero do bem
que se chama útil; e tendo o bem como característica operar propriamente sobre o
apetite, é mister concluir daí que o livre arbítrio é a característica da
vontade, ou antes é vontade mesma, enquanto nos seus atos ela tem a faculdade
de escolher. Mas é impossível à vontade mover-se, se o conhecimento da
inteligência, como uma luz, não a esclarece primeiramente: isto é, que o bem
desejado pela vontade é necessariamente o bem quanto conhecido pela razão. E
isto tanto mais que, em toda a volição, a escolha é sempre precedida dum juízo
sobre a verdade dos bens e sobre a preferência que devemos conceder a um deles
sobre os outros. Ora, julgar é da razão, não da vontade; não se pode
razoavelmente duvidar disto. Admitido, pois, que a liberdade reside na vontade,
que por sua natureza é um apetite obediente à razão, segue-se que ela, como a
vontade, tem por um bem conforme à razão.
Perfeição
e imperfeição da liberdade.
7.
Todavia, não possuindo cada uma destas faculdades a perfeição absoluta, pode
suceder, e sucede freqüentemente, que a inteligência proponha à vontade um
objeto que, em lugar duma bondade real, não tem senão a aparência, uma sombra
de bem, e que a vontade contudo se aplique. Mas assim como o poder enganar-se,
e enganar-se realmente, é uma falta que acusa a ausência da perfeição integral
na inteligência, assim também aderir a um bem falso e enganador, ainda que seja
um indício de livre arbítrio, constitui contudo um defeito da liberdade, como a
doença o é da vida. Igualmente a vontade, só pelo fato de que depende da razão,
cai num vício radical que não é senão a corrupção e o abuso da liberdade. Eis
por que Deus, a perfeição infinita, que, sendo soberanamente inteligente e a
bondade por essência, é também soberanamente livre, não pode de nenhuma forma
querer o mal moral. E o mesmo sucede com os bem-aventurados do céu, graças à
intuição que têm do soberano bem. É esta a justíssima observação que Santo
Agostinho e outros faziam contra os Pelagianos: “Se a possibilidade de
enganar-se no bem fosse da essência e da perfeição da liberdade, então Deus,
Jesus Cristo, os Anjos, os Bem-aventurados, entre os quais este poder não
existe, ou não seriam livres, ou, pelo menos, o não seriam tão perfeitamente
como o homem em seu estado de prova e imperfeição” — O Doutor Angélico
ocupou-se freqüente e longamente desta questão; e da sua doutrina resulta que a
faculdade de pecar não é uma liberdade, mas uma escravidão. Muito sutil é a sua
argumentação sobre as palavras do Senhor Jesus: Aquele que comete o
pecado é escravo do pecado (Jo 8, 34). “Todo ser é o que lhe convém
segundo a natureza. Logo, quando se move por um agente exterior, não age por si
mesmo, mas pelo impulso de outrem, o que é próprio de escravo. Ora, segundo a
natureza, o homem é racional. Por isso quando se move segundo a razão, é por um
movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é essência da
liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse
posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isto
que “aquele que comete o pecado é escravo do pecado”. — Era isto o que havia
visto claramente a filosofia antiga, aquela principalmente cuja doutrina era
que ninguém é livre como o sábio, e que reservava, como é sabido, o nome de
sábio àquele que se tivesse acostumado a viver constantemente segundo a
natureza, isto é, na honestidade e na virtude.
Proteção
e auxílios da liberdade. A lei.
8.
Sendo tal a condição da liberdade humana, era necessário ministrar-lhe auxílios
e socorros capazes de dirigir todos os seus movimentos para o bem e de
desvia-los do mal. Sem isto, a liberdade teria sido para o homem uma coisa
muito prejudicial. E primeiramente era-lhe necessária uma lei, isto
é, uma norma do que era preciso fazer e omitir. Falando com propriedade, não
pode dar-se isto entre os animais que operam por necessidade, porque todos os
seus atos os realizam sob o impulso da natureza, sendo-lhes impossível adotar
por si mesmos outro modo de ação. Mas os seres que gozam de liberdade têm por
si mesmos o poder de operar ou não, proceder de tal ou qual forma, visto que o
objeto da sua vontade não o escolhem senão quando intervenha o juízo da razão,
de que Nós falamos. Este juízo diz-nos não somente o que é bem em si ou o que é
o mal, mas também o que é bom e por conseguinte se deve realizar, ou o que é
mau e por conseguinte se deve evitar. É, com efeito, a razão que prescreve à
vontade o que ela deve procurar ou de que deve fugir para que o homem possa um
dia atingir esse fim supremo, para o qual deve dirigir todos os seus atos. Ora,
esta ordenação da razão é o que se chama lei. Se, pois, a lei
é necessária ao homem, é no seu mesmo livre arbítrio, isto é, na necessidade
que tem de não se pôr em desacordo com a reta razão, que é preciso procurar,
como na sua raiz, a causa primeira. E nada se pode dizer ou imaginar de mais
absurdo e mais contrário ao bom senso do que esta asserção: o homem sendo livre
por natureza, deve estar isento de toda lei. Se assim fosse, resultaria que é
necessário, para a liberdade, não estar de acordo com a razão, quando a verdade
é inteiramente o contrário, isto é, o homem deve estar sujeito à lei
precisamente por que é livre por natureza. Assim, pois, é a lei que guia o
homem nas suas ações e é ela também que, pela sanção das recompensas e das
penas, o leva a praticar o bem e o afasta do pecado.
Tal
é, acima de todas, a lei natural que está escrito e gravada no
coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática
do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia
ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete duma razão mais alta à
qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade,
a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente
sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer
esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas
ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente
existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra
dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa
não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão,
inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão
eterna de Deus, Criador e Governador do mundo.
A
graça de Deus.
9.
A esta regra de nossos atos, a estes freios ao pecado, a bondade de Deus quis
ajuntar certos auxílios, singularmente próprios para defender e guiar a vontade
do homem. Sobressai, no primeiro lugar destes auxílios, o poder da graça
divina, a qual esclarecendo a inteligência e inclinando incessantemente
para o bem moral a vontade salutarmente reforçada e fortificada, torna ao mesmo
tempo mais fácil e mais seguro o exercício da nossa liberdade natural. E seria
afastar-se completamente da verdade imaginar que, por meio desta intervenção de
Deus, os movimentos da vontade perdem a sua liberdade; porque a influência da
graça divina alcança o íntimo do homem e se harmoniza com a sua propensão
natural, pois que tem sua fonte n’Aquele que é o autor da nossa alma e da nossa
vontade e move todos os seres duma maneira conforme à natureza deles. Pode
mesmo dizer-se que a graça divina, como observa o Doutor Angélico, por isso
mesmo que dimana do autor da natureza é maravilhosa e naturalmente apta para proteger
todas as naturezas individuais e para conservar a cada uma o seu caráter, a sua
ação, a sua energia.
B)
A LIBERDADE MORAL NA SOCIEDADE.
A
lei humana.
10.
O que acaba de ser dito da liberdade dos indivíduos, é fácil aplica-los aos
homens que a sociedade civil une entre si; porque o que a razão e a lei natural
fazem para os indivíduos, a lei humana, promulgada para o bem comum dos
cidadãos, o realiza para os homens que vivem em sociedade. — Mas, entre as leis
humanas, há as que têm por objeto o que é bem ou mal naturalmente,
acrescentando à prescrição de praticar um e evitar o outro uma sanção
conveniente. Tais leis não têm de modo algum sua origem na sociedade dos
homens; porque, assim como não foi a sociedade que criou a natureza humana,
também não foi ela que fez com que o bem esteja em harmonia e o mal em
desacordo com essa natureza; mas tudo isto é anterior à própria sociedade
humana, e deve absolutamente estar ligado à lei natural e portanto à lei
eterna. Como se vê, os preceitos de direito natural compreendidos nas leis dos
homens não têm somente o valor da lei humana, mas supõem primeiro que tudo essa
autoridade muito mais elevada e muito mais augusta que brota da lei natural e
da lei eterna. Neste gênero de leis, a missão de legislador civil reduz-se a
obter, por meio duma disciplina comum, a obediência dos cidadãos, punindo os
maus e os viciosos, com o fim de os afastar do mal e de os chamar ao bem, ou ao
menos de os impedir de ferir a sociedade e de lhe ser prejudicial.
11.
Quanto às outras prescrições do poder civil, não procedem imediata ou
diretamente do direito natural; são dele conseqüências mais afastadas e
indiretas, e têm por fim precisar os pontos diversos sobre os quais a natureza
não se tinha pronunciado senão duma maneira vaga e geral. Assim, a natureza
ordena aos cidadãos que contribuam com o seu trabalho para a tranqüilidade e
prosperidade pública: em que medida, em que condições, sobre que objetos,
estabelece-o a sabedoria dos homens e não a natureza. Ora estas regras
particulares de proceder, criadas por uma razão prudente e intimadas por um
poder legítimo, constituem o que propriamente se chama lei humana. Visando o
fim próprio da comunidade, esta lei ordena a todos os cidadãos que concorram
para ele, e proíbe-lhes que dele se afastem; e enquanto segue a natureza e se
harmoniza com as suas prescrições, ela conduz-nos ao que é bem e afasta-nos do
oposto. Por onde se vê que é absolutamente na lei eterna de Deus que é mister
buscar a regra e a lei da liberdade, não somente para os indivíduos, mas também
para as sociedades humanas.
A
lei eterna, norma e regra da liberdade.
12.
Numa sociedade de homens, portanto, a liberdade digna deste nome não consiste
em fazer tudo o que nos apraz: isso seria uma confusão extrema no Estado, uma
perturbação que conduziria à opressão. A liberdade consiste em que, com o
auxílio das leis civis, possamos mais facilmente viver segundo as prescrições
da lei eterna. E para aqueles que governam, a liberdade não é o poder de
mandarem ao acaso e segundo seu bel-prazer: isso seria uma desordem não menos
grave e extremamente perigosa para o Estado; mas a força das leis humanas
consiste em que elas sejam olhadas como uma derivação da lei eterna e que não
há nenhuma das suas prescrições que não seja contida nela como no princípio de
todo direito. Santo Agostinho disse com muita sabedoria (De lib. Arb., lib. I, c. 4, n. 15): “Eu penso, e vós bem vedes também,
que, nesta lei temporal, nada há de justo e de legítimo que os homens não
tenham ido haurir na lei eterna”. Suponhamos, pois, uma prescrição dum poder
qualquer que esteja em desacordo com os princípios da reta razão e com os
interesses do bem público: não teria força alguma de lei, porque não seria uma
regra de justiça e afastaria os homens do bem, para o qual a sociedade foi
formada.
13.
Por sua natureza, pois, e sob qualquer aspecto que seja considerada, quer nos
indivíduos, quer nas sociedades, e entre os superiores não menos que entre os
subordinados, a liberdade humana supõe a necessidade de obedecer a uma regra
suprema e eterna; e esta regra não é outra senão a autoridade de Deus
impondo-nos as suas ordenações ou as suas proibições, autoridade soberanamente justa
que, longe de destruir ou de diminuir, de qualquer modo, a liberdade dos
homens, a protege e a leva à sua perfeição; porque a verdadeira perfeição de
todo o ser é tender e atingir o seu fim: ora, o fim supremo, para o qual deve
tender a liberdade humana, é Deus.
A
ação da Igreja.
14.
São estas máximas de doutrina, muito verdadeira e muito elevada, conhecidas
mesmo pela luz da razão, que a Igreja, instruída pelos exemplos e pela doutrina
do seu Divino Autor, tem propagado e afirmado por toda a parte, e segundo os
quais ela jamais tem cessado de regrar a sua missão e de informar as nações
cristãs. Pelo que toca aos costumes, as leis evangélicas não somente se
avantajam muito a toda a sabedoria pagã, mas elas chamam o homem e o formam
verdadeiramente numa santidade desconhecida dos antigos; e, aproximando-o de
Deus, levam-no à posse duma liberdade mais perfeita.
É
assim que sempre se tem evidenciado o maravilhoso poder da Igreja para a
proteção da liberdade civil e política dos povos. Não há necessidade de
enumerar os seus benefícios deste gênero. Basta lembrar a escravidão, essa
velha vergonha das nações pagãs, que os seus esforços e principalmente a sua
feliz intervenção fizeram desaparecer. O equilíbrio dos direitos, como a
verdadeira fraternidade entre os homens, foi Jesus Cristo quem primeiro a
proclamou; e à sua voz respondeu a dos seus Apóstolos, declarando que não há
nem Judeu, nem Grego, nem Bárbaro, nem Cita, mas que todos são irmãos em
Cristo. Sobre este ponto o ascendente da Igreja é tão grande e tão reconhecido
que, aonde quer que chega a sua influência — tem-se a experiência disso — a
grosseria dos costumes não pode subsistir por muito tempo. À brutalidade sucede
em breve a doçura, às trevas da barbárie a luz da verdade. E a Igreja não tem
cessado jamais de fazer sentir mesmo aos povos, educados pela civilização, seus
benefícios, resistindo aos caprichos da iniqüidade, afastando a injustiça da
cabeça dos inocentes ou dos fracos, e empregando-se, enfim, em estabelecer as
coisas públicas uma organização que possa, pela sua equidade, tornar-se amada
dos cidadãos, ou fazer-se temer dos estrangeiros pelo seu poder.
A
Igreja, defensora da autoridade.
15.
É, além disso, um dever real respeitar o poder e submeter-se a leis justas;
donde deriva que a autoridade vigilante das leis preserva os cidadãos das
empresas criminosas dos maus. O poder legítimo vem de Deus, e aquele que
resiste ao poder, resiste à ordem estabelecida por Deus; assim é que a
obediência adquire uma nobreza maravilhosa, pois que se não inclina senão da
mais justa e mais alta das autoridades. Mas, desde que falta o direito de
mandar, ou o mandato é contrário à razão, à autoridade de Deus, então é
legítimo desobedecer aos homens a fim de obedecer a Deus. Deste modo,
achando-se as vias da tirania fechadas, o poder não chamará tudo a si; estão
salvaguardados os direitos de cada cidadão, os da sociedade doméstica, os de
todos os membros da nação; e todos enfim participam da verdadeira liberdade,
aquela que consiste, como demonstramos, em que cada um possa viver segundo as
leis e segundo a reta razão.
A
falsa liberdade.
16.
Se, nas discussões que travam sobre a liberdade, se entendesse esta liberdade
legítima e honesta, tal como a razão e a Nossa palavra a acabam de descrever,
ninguém ousaria lançar à Igreja a censura que se lhe lança com uma soberana
injustiça, a saber: que ela é inimiga da liberdade dos indivíduos ou da
liberdade dos Estados. Mas há um grande número de homens que, a exemplo de
Lúcifer, — de quem são estas palavras criminosas: Não obedecerei, —
entendem pelo nome de liberdade o que não é senão pura e absurda licença. Tais
são aqueles que pertencem à escola tão espalhada e tão poderosa desses homens
que foram tirar o seu nome à palavra liberdade, querendo ser chamados Liberais.
O
Liberalismo radical.
17.
E, com efeito, o que são os partidários do Naturalismo e
do Racionalismo em filosofia, os fautores do Liberalismo o
são na ordem moral e civil, pois que introduzem nos costumes e na prática da
vida os princípios postos pelos partidários do Naturalismo. — Ora,
o princípio de todo o racionalismo é a supremacia da razão humana, que,
recusando a obediência devida à razão divina e eterna e pretendendo não
depender senão de si mesma, se arvora em princípio supremo, fonte e juiz da
verdade. Tal é a pretensão dos sectários do Liberalismo, de que Nós
falamos: não há, na vida prática, nenhum poder divino ao qual se tenha de obedecer,
mas cada um é para si sua própria lei. Daí procede essa moral que se chama
independente, e que, sob a aparência da liberdade, afastando a vontade da
observância dos preceitos divinos, conduz o homem a uma licença ilimitada.
É
o que, finalmente, resulta disto, principalmente nas sociedades humanas, é
fácil de ver; porque uma vez fixada essa convicção no espírito de que ninguém
tem autoridade sobre o homem, a conseqüência é que a causa eficiente da
comunidade civil e da sociedade deve ser procurada, não num princípio exterior
ou superior ao homem, mas na livre vontade de cada um, e que o poder público
dimana da multidão como sendo a sua primeira fonte; além disso, tal como a
razão individual é para o indivíduo a única lei que regula a vida particular, a
razão coletiva deve sê-lo para a coletividade na ordem dos negócios públicos;
daí o poder pertence ao número, e as maiorias criam o direito e o dever.
18.
Mas a oposição de tudo isto com a razão resulta suficientemente do que
dissemos. Efetivamente, pretender que não há nenhum laço ente o homem ou a
sociedade civil e Deus criador e, por conseguinte, supremo legislador de todas
as coisas, repugna absolutamente à natureza, e não somente à natureza do homem,
mas à de todo o ser criado; pois todo o efeito está necessariamente unido por
algum laço à causa de que procede; e convém a toda a natureza e pertence à
perfeição de cada uma que permaneça no lugar e no plano que lhe é marcado pela
ordem natural, isto é, que o ser inferior se submeta e obedeça àquele que lhe é
superior.
19.
Mas, ainda, tal doutrina traz o maior dano, tanto ao indivíduo como à
sociedade. Realmente, se o homem faz depender só e unicamente do juízo da razão
humana o bem e o mal, suprime a diferença essencial entre o bem e o mal; o
honesto e o desonesto já não diferem na realidade, mas somente na opinião e no
juízo de cada um: o que agrada será permitido. Desde que se admita semelhante
doutrina moral, que não basta para reprimir ou pacificar os movimentos
desordenados da alma, dá-se acesso a todas as corrupções da vida. Nos negócios
públicos, o poder de governar separa-se do princípio verdadeiro e natural que
lhe dá toda a sua força para procurar o bem comum; a lei que determina o que se
deve fazer e o que é necessário evitar é abandonada aos caprichos da maioria,
que é o mesmo que preparar o caminho à dominação tirânica. Quando se repudia o
poder de Deus sobre o homem e sobre a sociedade humana, é natural que a
sociedade deixe de ter religião, e tudo o que toca à religião torna-se desde então
objeto da mais completa indiferença. Armada, pois, da idéia da soberania, a
multidão facilmente entrará no caminho da sedição e das desordens, e, não
existindo já o freio do dever e da consciência, nada mais resta do que a força,
que é bem fraca, por si só, para conter as paixões populares. Temos a prova
disto nessas lutas quase diárias empenhadas contra os Socialistas e outras
seitas sediciosas que trabalham há tanto tempo para arrasar o Estado até aos
seus alicerces. Julguem, pois, e digam os que possuem a justa inteligência das
coisas, se tais indivíduos aproveitam à liberdade e dignidade do homem, ou se
não são antes dela a destruição completa.
O
Liberalismo mitigado.
20.
Sem dúvida, tais opiniões, espantosas pela sua mesma enormidade e sua oposição
manifesta com a verdade, bem como a imensidade dos males, de que vimos elas
serem causa, impedem os partidários do Liberalismo de aderirem todos a elas.
Constrangidos mesmo pela força da verdade, muitos deles não hesitam em
reconhecer, confessam-no até espontaneamente, que, entregando-se a tais
excessos, com desprezo da verdade e da justiça, a liberdade se vicia e degenera
abertamente em licença, sendo necessário, portanto, que ela seja dirigida e
governada pela reta razão, e, por conseqüência, que se submeta ao direito
natural e à lei divina e eterna. Mas julgam dever parar aqui, e não admitem que
o homem livre deva submeter-se às leis que a Deus apraz impor-nos por uma outra
via que não a razão natural.
21.
Mas nisto estão absolutamente em desacordo consigo mesmos. Pois se é
necessário, como eles próprios convêm (e quem poderá razoavelmente deixar de
convir nisto?), se é necessário obedecer à vontade de Deus legislador, — pois o
homem todo inteiro depende de Deus e deve tender para Deus, — daqui se segue
que ninguém pode pôr limites ou condições à sua autoridade legislativa, sem,
com isso mesmo, se colocar em oposição com a obediência devida a Deus. Ainda
mais: se a razão humana se arroga a pretensão de querer determinar quais os
direitos de Deus e os seus deveres para com Ele, o respeito pelas leis divinas
terá nela mais aparência que realidade; e o seu juízo valerá mais que a
autoridade e a providência divinas.
É,
pois, necessário que a regra da nossa vida seja por nós constante e
religiosamente pedida não somente à lei eterna, mas também a todas e a cada uma
das leis que Deus, na sua infinita sabedoria, no seu infinito poder e pelos
meios que lhe aprouveram, quis transmitir-nos e que nós podemos conhecer com
segurança por sinais evidentes e não deixam nenhum lugar à dúvida. E isto tanto
melhor que essas espécies de leis, tendo o mesmo princípio, o mesmo autor que a
lei eterna, harmonizam-se perfeitamente com a razão e aperfeiçoam o direito
natural: além de que, aí encontramos incluído o magistério do próprio Deus que,
para impedir que a nossa inteligência e a nossa vontade caiam no erro, as
conduz e guia a ambas com a mais benévola direção. Deixemos, pois, santa e
inviolavelmente reunido aquilo que não pode nem deve ser separado, e que Deus
nos encontre, em todas as coisas, segundo o ordena a própria razão natural,
submissos e obedientes às suas leis.
Liberalismo
do Estado.
22.
Outros são um pouco mais moderados, mas sem serem mais conseqüentes consigo
mesmos. Segundo estes, as leis divinas devem regular a vida e o modo de
proceder dos particulares, mas não o dos Estados; é permitido, nas coisas
públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislador sem as ter em conta
alguma. Donde nasce esta perniciosa conseqüência da separação da Igreja e do
Estado. Mas o absurdo destas opiniões facilmente se compreende. É necessário, —
a própria natureza o proclama — é necessário que a sociedade dê aos cidadãos os
meios e as facilidades de passarem a sua vida segundo a honestidade, isto é,
segundo as leis de Deus, pois que Deus é o princípio de toda a honestidade e de
toda a justiça. Repugnaria, pois, absolutamente que o Estado pudesse
desinteressar-se destas mesmas leis ou ir mesmo contra elas, fosse no que
fosse.
23.
Demais, aqueles que governam os povos devem certamente procurar à causa
pública, pela sabedoria das suas leis, não somente as vantagens e os bens
exteriores, mas também e principalmente os bens da alma. Ora, para conseguir
estes bens, nada mais eficaz pode imaginar-se do que essas leis de que Deus é o
autor; e, por isso, aqueles que não querem, no governo dos Estados, ter em
conta alguma as leis divinas, desviam realmente o poder político da sua
instituição, e da ordem prescrita pela natureza.
Mas
há uma observação ainda mais importante e que Nós mesmos temos recordado mais
de uma vez em outras ocasiões: e é que o poder civil e o poder sagrado,
conquanto não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem
contudo encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com
efeito, exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais duma vez,
sobre as mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito,
nesta ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria
dos conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um
processo para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas, e estabelecer o
acordo na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que
existe entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a
separação é particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida.
C)
CONSEQÜÊNCIAS DO LIBERALISMO.
Liberdade
de culto nos particulares.
24.
Mas, para evidenciar melhor estas verdades, é mister consideremos separadamente
as diversas espécies de liberdades que se dão como conquistas da nossa época. —
E primeiramente, a propósito dos indivíduos, examinemos esta liberdade tão
contrária à virtude da religião, a liberdade de culto, como lhe chamam,
liberdade que se baseia no princípio de que é lícito a cada qual professar a
religião que mais lhe agrade, ou mesmo não professar nenhuma. — Mas,
precisamente ao contrário, sem dúvida alguma, entre todos os deveres do homem,
o maior e o mais santo é aquele que ordena ao homem que renda a Deus um culto
de piedade e de religião. E este dever não é senão uma conseqüência do fato de
nós estarmos pela vontade e providencia de Deus, e de que, saídos d’Ele, devemos
voltar a Ele.
25.
Deve-se acrescentar que nenhuma virtude digna deste nome pode existir sem a
religião, pois a virtude moral é aquela cujos atos têm por objeto tudo o que
conduz a Deus considerado como supremo e soberano bem do homem; e por isso é que
a religião, que “pratica os atos tendo por fim direto e imediato a honra
divina” (S. Th. 2-2, q. 81, a 6), é a rainha e ao mesmo tempo a regra de todas
as virtudes. E se se pergunta qual, entre todas essas religiões opostas que têm
curso, se deve seguir com exclusão das outras, a razão e a natureza unem-se
para nos responder: a que Deus prescreveu e que é fácil de distinguir, graças a
certos sinais exteriores pelos quais a divina Providência a quis tornar
reconhecível, pois que em coisa de tanta importância o erro acarretaria
conseqüências muito desastrosas. É por isso que oferecer ao homem a liberdade
de que falamos, é dar-lhe o poder de desvirtuar ou abandonar impunemente o mais
santo dos deveres, afastando-se do bem imutável, a fim de se voltar para o mal.
Isto, já o dissemos, não é liberdade, mas uma depravação da liberdade, e uma
escravidão da alma na abjeção do pecado.
Liberdade
de culto no Estado.
26.
Encarada sob o ponto de vista social, esta mesma liberdade quer que o Estado
não renda culto algum a Deus, ou que não autorize nenhum culto público; que
nenhuma religião seja preferida a outra, que todas sejam consideradas como
tendo as mesmos direitos, sem mesmo ter atenção para com o povo, até quando
esse mesmo povo faz profissão de catolicismo. Mas, para que assim fosse justo,
seria necessário que realmente a comunidade civil não tivesse nenhum dever para
com Deus, ou que, tendo-o, pudesse impunemente afastar-se dele: duas coisas
manifestamente falsas. Com efeito, não se pode pôr em dúvida que a reunião dos
homens em sociedade seja obra da vontade de Deus; e isto quer se considere em
seus membros, na sua forma que é autoridade, na sua causa, ou em número e
importância das vantagens que ela procura ao homem. Foi Deus quem fez o homem
para a sociedade e o uniu aos seus semelhantes, a fim de que as necessidades da
sua natureza, às quais os seus esforços isolados não poderiam dar satisfação, a
possam encontrar na comunidade. Eis aí por que a sociedade civil como sociedade
deve necessariamente reconhecer Deus como seu princípio e seu autor, e, por
conseguinte, render ao seu poder e à sua autoridade a homenagem do seu culto.
Veda-o a justiça, e veda-o a razão que o Estado seja ateu, ou, o que viria a
dar no ateísmo, esteja animado a respeito de todas as religiões, como se diz,
das mesmas disposições e conceder-lhes indistintamente os mesmos direitos.
27.
Visto, pois, que é necessário professar uma religião na sociedade, deve-se
professar a única que é verdadeira e que se reconhece, sem dificuldade, pelo
menos nos países católicos, pelos sinais de verdade que com tão vivo fulgor
ostenta em si mesma. Esta religião, os chefes de Estado a devem pois conservar
e proteger, se querem, como é obrigação sua, prover prudente e utilmente aos
interesses da comunidade. Pois o poder público foi estabelecido para utilidade
daqueles que são governados, e conquanto ele não tenha por fim próximo senão
conduzir os cidadãos à prosperidade desta vida terrestre é, contudo, para ele
um dever não diminuir, mas pelo contrário aumentar, para o homem, a faculdade
de atingir esse bem supremo e soberano, no qual consiste a eterna felicidade
dos homens: o que se torna impossível sem a religião.
28.
Mas tudo isso já Nós o dissemos detalhadamente em outra parte. A única
observação, que agora queremos fazer, é que uma liberdade deste gênero é muito
prejudicial à liberdade verdadeira, quer dos governantes quer dos governados. A
religião, pelo contrário, é-lhe maravilhosamente útil, porque faz remontar ao
próprio Deus a origem primária do poder; porque impõe com gravíssima autoridade
aos príncipes a obrigação de não esquecerem os seus deveres, e de conduzirem os
povos com bondade e quase com um amor paternal.
Por
outro lado, ela recomenda aos cidadãos a submissão do poder legítimo como aos
representantes de Deus; une-os ao Chefe do Estado pelos laços, não somente de
obediência, mas do respeito e do amor, proibindo-lhes a revolta e todas as empresas
que possam perturbar a ordem e a tranqüilidade do Estado, e que, em resumo, dão
ocasião de reprimir com restrições mais fortes a liberdade dos cidadãos. Nada
dizemos dos serviços prestados pela religião aos bons costumes, e pelos bons
costumes à própria liberdade. Pois a razão o prova e a história o confirma: a
liberdade, a prosperidade e o poder duma nação aumentam em proporção da sua
moralidade.
Liberdade
da palavra e da imprensa.
29.
E agora continuemos estas considerações a respeito da liberdade de
exprimir pela palavra ou pela imprensa tudo o
que se quiser. Se esta liberdade não for justamente temperada, se ultrapassar
os devidos limites e medidas, desnecessário é dizer que tal liberdade não é
seguramente um direito. Pois o direito é uma faculdade moral, e, como dissemos
e como se não pode deixar de repetir, seria absurdo crer que esta faculdade
cabe naturalmente, e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao
bem e ao mal. A verdade e o bem há o direito de os propagar no Estado com
liberdade prudente, a fim de que possam aproveitar o maior número; mas as
doutrinas mentirosas, que são para o espírito a peste mais fatal, assim como os
vícios que corrompem o coração e os costumes, é justo que a autoridade pública
empregue toda a sua solicitude para os reprimir, a fim de impedir que o mal
alastre para ruína da sociedade.
30.
Os extravios dum espírito licencioso que, para a multidão ignorante, se
convertem facilmente em verdadeira opressão, devem justamente ser punidos pela
autoridade das leis, não menos que os atentados da violência cometidos contra
os fracos. E esta repressão é tanto mais necessária, quanto é impossível ou
dificílimo à parte, sem dúvida, mais numerosa da população precaver-se contra
os artifícios de estilo e as sutilezas de dialética, principalmente quando tudo
isso lisonjeia as paixões. Concedei a todos a liberdade de falar e escrever, e
nada será poupado, nem mesmo as verdades primárias, esses grandes princípios
naturais que se devem considerar como um nobre patrimônio comum a toda a
humanidade. Assim, a verdade é, pouco e pouco, invadida pelas trevas e, o que
muitas vezes sucede, estabelece-se com facilidade a dominação dos erros mais
perniciosos e mais diversos. Tudo o que a licença então ganha perde a
liberdade; pois ver-se-á sempre a liberdade crescer e consolidar-se à medida
que a licença seja mais refreada.
31.
Mas se se trata de matérias livres, que Deus deixou entregues às discussões dos
homens, a todos é permitido emitir sobre elas a sua opinião e exprimi-la livremente.
A natureza não se opõe a isto, porque com esta liberdade os homens não são
levados a oprimir a verdade, antes é ela muitas vezes ocasião de a procurar e
faze-la conhecer.
Falsa
liberdade de ensino.
32.
Quanto ao que chamam liberdade de ensino, também não é preciso
julga-la por modo diverso. Só a verdade deve penetrar nas almas, pois que é só
nela que as naturezas inteligentes encontram o seu bem, o seu fim, a sua
perfeição. Por isso, o ensino só deve ter por objeto coisas verdadeiras, e isto
quer se dirija aos ignorantes quer aos sábios, a fim de que leve a uns o
conhecimento da verdade, e aos outros a fortaleça. Por este motivo, o dever de
todo aquele que se dedica ao ensino é, sem contradição, extirpar o erro dos
espíritos e opor fortes barreiras à invasão das falsas opiniões. É, pois,
evidente que a liberdade de que estamos tratando, arrogando-se o direito de
tudo ensinar a seu modo, está em contradição flagrante com a razão e nasceu
para produzir um transtorno completo nos espíritos. O poder público não pode
consentir tal licença na sociedade senão com desprezo do seu dever. Tanto mais
verdade é isto, que todos sabem de quanto peso é para os ouvintes a autoridade
do professor, e quão raro é que um discípulo possa julgar pó si mesmo da
verdade do ensino do mestre.
Conceito
da verdadeira liberdade de ensino.
33.
Eis aí, por que também esta liberdade, para que seja honesta, tem necessidade
de ser restringida em determinados limites. É, pois, necessário que a arte do
ensino não possa impunemente converter-se num instrumento de corrupção. Ora, a
verdade, que deve ser o único objeto de ensino, é de duas espécies: a verdade
natural e a sobrenatural. As verdades naturais, às quais pertencem os princípios
da natureza e as conclusões próximas que deles deduz a razão, constituem como
que o patrimônio comum do gênero humano; são como que o sólido fundamento sobre
que assentam os costumes, a justiça, a religião e a própria existência da
sociedade humana; e seria desde logo a maior das impiedades, a mais desumana
das loucuras, deixa-las violar e destruir impunemente. Mas é necessário pôr não
menos escrúpulo em conservar o magno e sagrado tesouro das verdades que o
próprio Deus nos fez conhecer. Por um grande número de argumentos luminosos,
muitas vezes repetidos pelos apologistas, foram estabelecidos certos pontos
principais de doutrina, por exemplo: há uma revelação divina; o Filho único de
Deus fez-se homem para dar testemunho da verdade; por Ele foi fundada uma
sociedade perfeita, isto é, a Igreja, de que Ele mesmo é o Chefe e com a qual
prometeu estar até a consumação dos séculos.
34.
A esta sociedade quis Ele confiar todas as verdades que ensinara, com a missão
de as guardar, de as desenvolver com autoridade legítima; e, ao mesmo temo,
ordenou a todas as nações que obedecessem aos ensinamentos da sua Igreja como a
Ele mesmo, sob pena de perda eterna para aqueles que isto transgredissem. Daqui
ressalta claramente que o melhor e mais seguro mestre, para o homem, é Deus,
fonte e principio de toda a verdade; é o Filho único que vive no seio do Pai,
caminho, verdade, vida e luz verdadeira que esclarece todos os homens; e cujos
ensinamentos devem ter por discípulos todos os homens: E eles serão
todos ensinados por Deus (Jo 6, 45). Mas para a fé e regra dos
costumes Deus fez a Igreja partícipe do seu divino privilegio de
infalibilidade. Eis ai por que ela é grande e segura mestra dos homens e tem em
si um direito inviolável à liberdade de ensinar. E, de fato, a Igreja, que nos
ensinamentos recebidos do Céu encontra o seu próprio sustentáculo, nada tem
tido tanto a peito como desempenhar, religiosamente a missão que Deus lhe
confiou, e, sem se deixar intimidar pelas dificuldades que, por toda parte, a
cercam, não tem cessado em tempo algum de combater pela liberdade do seu
magistério. Foi por este meio que todo o mundo, liberto da miséria das suas
superstições, encontrou na sabedoria cristã a sua regeneração.
35.
Mas como a própria razão o ensina claramente: entre as verdades divinamente
reveladas e as verdades naturais não pode haver real oposição, de sorte que
toda a doutrina que contradiga àquelas será necessariamente falsa, segue-se que
o divino magistério da Igreja, longe de pôr obstáculos ao amor do saber e ao desenvolvimento
das ciências, ou de retardar por qualquer modo o progresso da civilização, é,
pelo contrário, para estas coisas, uma vivíssima luz e uma segura proteção. E,
por esta mesma razão, o próprio aperfeiçoamento da liberdade humana aproveita
não pouco com a sua influência, segundo a máxima de Jesus Cristo Salvador, que
o homem se torna livre pela verdade: Conhecereis a verdade, e a verdade
vos fará livres (Jo 8, 32).
Não
há, pois, motivo para que a genuína liberdade se indigne e a ciência verdadeira
se irrite contra as leis justas e necessárias, que devem regular os
ensinamentos humanos, como o reclamam acordes a Igreja e a razão. Há mais: e é,
que a Igreja, dirigindo principal e especialmente a sua atividade para a defesa
da fé cristã, aplica-se também em favorecer o gosto de bons estudos em si
mesmos têm alguma coisa de bom, de louvável, de desejável; e, demais, toda a
ciência, que é fruto da reta razão e corresponde à realidade das coisas, é duma
utilidade não medíocre até para esclarecer as verdades reveladas por Deus. E de
fato, que imensos serviços a Igreja não prestou com o admirável cuidado com que
conservou os monumentos da ciência antiga, com os asilos que abriu, por toda
parte, às ciências, com o estímulo que sempre deu a todos os progressos,
favorecendo dum modo particular as próprias artes que são a glória da
civilização da nossa época.
36.
Enfim, é necessário não esquecer que ainda há imenso campo aberto em que a
atividade humana pode dilatar-se e exercer-se livremente a razão: referimo-Nos
às matérias que não têm uma conexão necessária com a doutrina da fé e dos
costumes cristãos, ou sobre as quais a Igreja, não usando da sua autoridade,
deixa aos sábios toda a liberdade de suas opiniões. Por estas considerações se
vê de que espécie e de que qualidade e, neste particular, a verdade que os
partidários do liberalismo reclamam e proclamam com igual
ardor. Por um lado, atribuem a si mesmos, assim como ao Estado, uma licença tal
que não há opinião, por mais perversa que seja, à qual não abram a porta e não
dêem livre passagem; por outro, suscitam à Igreja obstáculos sobre obstáculos,
encerrando a liberdade dela nos limites mais estreitos que podem, quando aliás
nenhum inconveniente há a recear dos ensinamentos da Igreja, e antes se devem
esperar deles as maiores vantagens.
Liberdade
de consciência.
37.
Uma outra liberdade que também muito alto se proclama, é aquela a que dão o
nome de liberdade de consciência. Se por isso se entende que cada
qual pode indiferentemente, a seu bel-prazer, prestar ou deixar de prestar
culto a Deus, os argumentos acima apresentados bastam para a sua refutação. Mas
pode-se tomar no sentido de que o homem, no Estado tem o direito de seguir,
segundo a consciência do seu dever, a vontade de Deus, e de cumprir os seus
preceitos, sem que ninguém possa impedi-lo. Esta liberdade verdadeira, esta
liberdade digna dos filhos de Deus, que protege tão gloriosamente a dignidade
da pessoa humana, está acima de toda a opressão e de toda a violência, e foi
sempre o objeto dos votos da Igreja e do seu particular afeto. Foi esta
liberdade que os apóstolos reivindicaram com tanta constância, que os
apologistas têm defendido nos seus escritos, que uma multidão inumerável de
mártires consagrou com o seu sangue. E eles tiveram razão: o grande e
justíssimo poder de Deus sobre os homens, e, por outro lado, o grande e supremo
dever dos homens para com Deus encontram ambos nesta liberdade cristã um
brilhante testemunho.
38.
Ela nada tem de comum com disposições facciosas e rebeldes, e de nenhum modo se
poderá apresenta-lo como refratária à obediência devida ao poder público; pois
ordenar e exigir obediência às leis é um direito do poder humano somente
enquanto este não está em desacordo com o poder divino, e se contém dentro dos
limites que Deus lhe marcou. Ora, quando se dá uma ordem que está em aberta
contradição com a vontade divina, então se afasta muito desses limites, e
põe-se em conflito com a autoridade divina: portanto, é então justo não
obedecer.
39.
Mas os partidários do Liberalismo, que atribuem ao Estado um poder
despótico e sem limites e proclamam que não é preciso ter Deus em conta alguma
no modo de nos conduzirmos na vida, desconhecem absolutamente esta liberdade de
que falamos tão intimamente unida à honestidade e à religião; e tudo quanto se
faz para a conservar, eles o consideram como feito em detrimento e contra o
Estado. Se o que dizem fosse verdade, não haveria dominação, por tirânica que
fosse, que se não devesse aceitar e sofrer.
D)
A TOLERÂNCIA DA IGREJA.
40.
O mais vivo desejo da Igreja seria, sem dúvida, ver penetrarem, de fato e em
prática, em todas as ordens do Estado estes princípios cristãos que acabamos de
expor sumariamente. Pois eles possuem uma eficácia maravilhosa para curar os
males do tempo presente, esses males cujo número e gravidade se não podem
dissimular, nascidos em grande parte dessas liberdades tão decantadas, e nas
quais se havia querido ver encerrar os germes da salvação e da glória. Esta
esperança foi desmentida pelos fatos. Em lugar de frutos doces e salutares
vieram frutos amargos e envenenados. Se se procura o remédio, busque-se
restabelecimento de sãs doutrinas, únicas de que se pode esperar confiadamente a
conservação da ordem e, por isso mesmo, a garantia da verdadeira liberdade.
41.
Todavia, em sua apreciação maternal, a Igreja tem em conta o peso acabrunhador
da fraqueza humana e não ignora o movimento que na nossa época arrasta os
espíritos e as coisas. Por estes motivos, não concedendo direitos senão àquilo
que se é verdadeiro e honesto, a Igreja ainda assim não se opõe à tolerância do
que os poderes públicos crêem poder usar a respeito de certas coisas contrárias
à verdade e à justiça, em face dum mal maior a evitar, ou dum maior bem a obter
ou conservar. O próprio Deus em sua providência, conquanto infinitamente bom e
onipotente, permite não obstante a existência de certos males no mundo, ou seja
para não impedir bens maiores ou seja para evitar maiores males. Convém, quanto
ao governo dos Estados, imitar Aquele que governa o mundo. Mais ainda:
reconhecendo-se impotente para impedir todos os males particulares, a
autoridade dos homens deve permitir e deixar impunes muitas coisas que
não obstante atraem com justo motivo a vindica da Providencia divina (S.
Agost. De lib. arb.,
lib. I, c. 6, n.
14).
42.
Todavia, se nestas conjunturas, com a mira no bem comum e só por este motivo, a
lei dos homens pode e mesmo deve tolerar o mal, contudo nunca ela pode nem deve
aprova-lo nem quere-lo em si mesmo, pois que o mal, sendo de si mesmo a
privação do bem, é oposto ao bem comum que o legislador deve querer e defender
do melhor modo que possa. E ainda nisto a lei humana deve propor-se imitar a
Deus que, deixando existir o mal no mundo, não quer nem que o mal
suceda, nem que o mal não suceda, mas quer permitir que o mal suceda. E isto é
bom (S. Th. p. I, q. 19, ª 9, ad 3). Esta sentença do Doutor Angélico
contém, numa fórmula breve, toda a doutrina sobre a tolerância do mal. Mas é
necessário reconhecer, para que o nosso juízo seja exato, que quanto mais
preciso for tolerar o mal em um Estado, mais longe estão da perfeição as
condições desse Estado; e, além disto, que a tolerância do mal, pertencendo aos
princípios da prudência política, deve ser rigorosamente circunscrita aos
limites exigidos pela sua razão de ser, isto é, pela salvação pública. E por
isso, se ela é nociva à salvação pública ou se é para o Estado causa dum mal
maior, a conseqüência é que deixa de ser lícita, porque nestas condições falta
a razão do bem. Mas se, em vista duma condição particular do Estado, a Igreja
condescende com certas liberdades modernas, não é porque as prefira em si
mesmas,mas porque julga conveniente permiti-las; melhorada a situação, usará
evidentemente da sua liberdade, empregando todos os meios, persuasões,
exortações e rogos, para desempenhar, como é seu dever, a missão que recebeu de
Deus: proporcionar aos homens a salvação eterna. Em todo o caso fica sempre de
pé uma verdade, e é que essa liberdade concedida indiferentemente a todos e
para tudo, não é desejável por si mesma, como muitas vezes o termo repetido,
pois repugna a razão que o falso e o verdadeiro tenham os mesmos direitos.
Intolerância
do Liberalismo.
43.
E no que toca à tolerância, é estranho ver quanto se distanciam da
equidade e da prudência da Igreja aqueles que professam o Liberalismo.
Com efeito, concedendo aos cidadãos, em todos os pontos de que acabamos de
falar, uma liberdade sem limites, ultrapassam dum salto a medida, e chegam ao
ponto em que parece não haver mais atenções com a virtude e a verdade do que
com o erro e o vício. E quando a Igreja, coluna e sustentáculo da verdade,
mestra incorruptível dos costumes, crê contra uma tolerância tão
cheia de desordens e de excessos, e impedir o criminoso uso dela, acusam-na de
faltar à paciência e à delicadeza. Procedendo assim, nem sequer advertem que
fazem um crime daquilo precisamente que é mérito. De resto muitas vezes sucede
que estes grandes defensores da tolerância são duros e
intransigentes na prática, quando se trata do Catolicismo: pródigos de liberdades
para todos, recusam a cada passo deixar à Igreja a sua liberdade.
E)
RECAPITULANDO.
Origens
do Liberalismo. Suas formas.
44.
Mas para recapitular com brevidade, e para maior clareza, todo este discurso
com suas conseqüências, Nós dizemos, em resumo, que o homem deve
necessariamente permanecer todo inteiro em uma dependência real e incessante a
respeito de Deus, e que, por conseqüência, é absolutamente impossível
compreender a liberdade do homem sem a submissão a Deus e a sujeição à sua
vontade. Negar esta soberania de Deus ou recusar a submissão a ela, não é modo
de agir de homem livre, mas de quem abusa da liberdade com a revolta; e é
precisamente duma tal disposição da alma que se constitui e nasce o vício
do Liberalismo. De resto podem-se distinguir muitas espécies de
liberalismo, porque existem para a vontade mais duma forma e mais dum grau na
recusa da obediência devida a Deus ou àqueles que participam da sua autoridade
divina.
45.
A insurreição completa contra o império supremo de Deus e recusar-lhe
absolutamente toda a obediência, quer seja na vida pública, quer na vida
particular e doméstica, é a um tempo, sem dúvida alguma, a maior depravação da
liberdade e a pior espécie de liberalismo. É sobre ela que devem
cair, sem restrição, todas as censuras que até aqui temos formulado.
46.
Imediatamente depois vem o sistema daqueles que, concedendo que se deve
depender de Deus, autor e senhor do universo, pois que toda a natureza é regida
pela sua Providência, ousam repudiar as regras da fé e da moral que,
ultrapassando a ordem da natureza, nos vêm da própria autoridade de Deus; ou
pretendem, pelo menos, que não é preciso tê-las em conta, principalmente nos
negócios públicos do Estado. Qual a gravidade do seu erro e quão pouco de
acordo estão consigo mesmos, também o vimos acima. É esta doutrina que deriva,
como da sua fonte e princípio, o pernicioso erro da separação da Igreja e do
Estado; quando, pelo contrário, é manifesto que estes dois poderes, embora
diferentes na sua missão e na sua dignidade, devem todavia entender-se na
concórdia da sua ação e na reciprocidade dos seus bons ofícios.
47.
A este erro, como a um gênero, se liga uma dupla opinião. — Muitos, com efeito,
querem uma separação radical e total entre a Igreja e o Estado: consideram
estes que, em tudo o que diz respeito ao governo da sociedade humana, nas
instituições, nos costumes, nas leis, nas funções públicas, na instrução da
juventude, se não deve fazer caso da Igreja como se ela não existisse; apenas deixam
aos membros individuais da sociedade a faculdade de cumprirem particularmente,
se quiserem, os deveres da religião. Contra estes conservam toda a sua força os
argumentos pelos quais refutamos a opinião da separação da Igreja e do Estado,
com a agravante de que é completamente absurdo que a Igreja seja, ao mesmo
tempo, respeitada pelo cidadão e desprezada pelo Estado.
48.
Os outros não põem em dúvida a existência da Igreja, o que lhes seria
impossível, mas tiram-lhe o caráter e os direitos próprios duma sociedade
perfeita, e querem que o seu poder, privado de toda a autoridade legislativa,
judicial e coercitiva, se limite a dirigir pela exortação e pela persuasão
aqueles que de bom grado e por sua própria vontade se submetem a ela. E assim,
nesta teoria, o caráter desta divina sociedade é completamente desvirtuado, a
sua autoridade, o seu magistério, toda a sua ação é diminuída e restringida, ao
mesmo temo que a ação e a autoridade do poder civil é por eles exagerada até ao
ponto de quererem que a Igreja de Deus, como qualquer outra associação
voluntária, seja colocada sob a dependência e dominação do Estado. — Para os
convencer de erro, os apologistas têm empregado poderosos argumentos que Nós
mesmo não deixamos no olvido, deles se conclui que, pela vontade de Deus, a
Igreja possui todas as qualidades e todos os direitos que caracterizam uma
sociedade legítima, soberana e, em todos os pontos, perfeita.
49.
Muitos, finalmente, não aprovam esta separação da Igreja e do Estado, mas
julgam que é necessário induzir a Igreja a ceder às circunstancias, fazer com
que ela se acomode e se preste ao que reclama a prudência destes tempos no
governo das sociedades. Esta opinião é boa quando entendida dum certo modo
eqüitativo de proceder, conforme com a verdade e com a justiça, a saber: que a
Igreja, na expectativa certa dum grande bem, se mostre indulgente e conceda às
circunstâncias do tempo o que pode conceder sem violar a santidade da sua
missão. Mas sucede o contrário com as práticas e doutrinas que a relaxação dos
costumes e os erros correntes introduziram contra o direito. Não pode haver
época alguma sem religião, verdade e justiça; e como estas grandes e santas
coisas Deus as colocou sob a guarda da Igreja, nada há tão estranho como
pretender que deixe passar sem reparo o que é falso ou injusto, ou que se torne
conivente com o que prejudicar a religião.
Conclusões
da doutrina católica.
50.
Destas considerações segue-se, portanto, que de nenhum modo é permitido pedir,
defender ou conceder sem discernimento a liberdade de pensamento, de imprensa,
de ensino, de religião, como se fossem outros tantos direitos que a natureza
conferisse ao homem. Se em verdade a natureza os houvesse conferido, haveria o
direito de nos subtrairmos à soberania de Deus, e nenhuma lei poderia moderar a
liberdade humana. — Segue-se também que estas diversas espécies de liberdade
podem, por justas causas, ser toleradas, contanto que uma justa moderação as
impeça de degenerarem até à licença e à desordem. — Finalmente, nos países em
que os usos puseram estas liberdades em vigor, os cidadãos devem servir-se
delas para fazer o bem e ter a respeito delas os mesmos sentimentos que a
Igreja tem; porque uma liberdade não se deve reputar legítima senão quando
aumenta a nossa faculdade de fazer o bem. Fora disto, nunca.
51.
Quando se está sob o domínio ou a ameaça dum governo que tem a sociedade
debaixo da pressão duma violência injusta ou que priva a Igreja da liberdade
legítima, é permitido buscar outra organização política sob a qual se possa
proceder com liberdade. Com efeito, neste caso o que se reivindica não é essa
liberdade sem medida e sem regra, mas sim um certo alívio para bem de todos; e
o que se procura unicamente é chegar a que, onde toda a licença é dada ao mal,
não se ponham obstáculos à prática do bem.
52.
Além disto, preferir para o Estado uma constituição temperada pelo elemento
democrático não é em si contrária ao dever, com a condição todavia de que se
respeite a doutrina católica sobre a origem e o exercício do poder público. Das
diversas formas de governo, contanto que sejam em si mesmas aptas para
proporcionar o bem aos cidadãos, a Igreja não rejeita nenhuma, mas quer, e a
natureza põe-se de acordo com ela para o exigir, que seja constituída de tal
modo que não viole o direito de ninguém e respeite particularmente os direitos
da Igreja.
53.
É louvável tomar parte na administração dos negócios públicos, a menos que em
certos lugares, por circunstâncias particulares de coisas e de tempo, se não
imponha outro modo de proceder. A Igreja mesma aprova que todos unam os seus
esforços para o bem comum, e que cada um, segundo a sua possibilidade, trabalhe
para a defesa, conservação e aumento da coisa pública.
54.
A Igreja também não condena que se queira libertar o país do poder estrangeiro
ou dum déspota, contanto que isto se possa fazer sem violar a justiça.
Finalmente, muito menos ela censura aqueles que trabalham para dar aos
municípios o beneficio de se regerem pelas suas próprias leis, e aos cidadãos
todas as facilidades para o aumento do seu bem-estar. Para todas as liberdades
civis isentas de excesso, a Igreja teve sempre o costume de ser uma fidelíssima
protetora, o que é atestado principalmente pelas cidades italianas, que
encontraram sob o regime municipal a prosperidade, o poder e a glória, quando a
influência salutar da Igreja, sem encontrar oposição alguma, penetrava todas as
partes do corpo social.
Exortação
final.
55.
Estes ensinamentos, que, inspirados pela fé e pela razão, o dever do Nosso
cargo apostólico Nos levou a transmitir-vos, Veneráveis Irmãos, serão úteis a
um grande número, temos nisto confiança, graças principalmente à união dos
vossos esforços com os Nossos. Pela Nossa parte, na humildade do Nosso coração,
elevamos para Deus as Nossas vistas suplicantes, rogando-lhe instantemente que
se digne espalhar entre os homens a luz da sua sabedoria e do seu conselho, a
fim de que, pela virtude destas graças, eles possam ver a verdade em pontos
duma tal importância, e, conseqüentes, com uma inquebrantável constância saibam
conformar, em todos os tempos, a sua vida particular e pública com a mesma
verdade.
Como
penhor dos favores celestiais e em prova da Nossa benevolência, Nós vos
concedemos, com um terno afeto, a Vós, Veneráveis Irmãos, assim como ao clero e
ao povo de que cada um de vós tem a direção, a Bênção Apostólica no Senhor.
Dada
em Roma, junto de S. Pedro, a 20 de junho o ano de 1888, undécimo do Nosso
Pontificado.
Fonte: https://www.capela.org.br/Magisterio/LeaoXIII/libertas.htm.
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