sábado, 28 de agosto de 2021

Objeção de consciência: recurso liberal e nada católico

                                                                                                                            Carlos Nougué

 Por influência do liberal-conservadorismo católico, alastrou-se até entre certos tradicionalistas católicos a defesa do recurso chamado “objeção de consciência”. Mas onde estão os superiores desses católicos para dizer-lhes que objeção de consciência é o mesmo que “liberdade de consciência”, a mesma liberdade condenada por uma sequência ininterrupta de cerca de dez papas até Pio XII? Se, num país revolucionário, pode o médico católico arguir objeção de consciência para não praticar o aborto, pode também o revolucionário, num país menos revolucionário, arguir com o mesmo direito objeção de consciência contra a lei que proíbe o aborto. Ou seja: liberdade de consciência, repita-se, a qual implica liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de imprensa, etc., liberdade sempre para o bem ou para o mal (e que acaba sendo antes para o mal, como vamos sentindo hoje na própria carne). Fujamos disso e repitamos a postura que nos ensinaram os mártires de todos os tempos: Não farei isso porque é contra a lei de Deus e da Igreja, a lei do único e verdadeiro Deus e de sua única e verdadeira Igreja. Isto, sim, é cristão, isto, sim, é católico. E ponto final.

domingo, 22 de agosto de 2021

A queda do bolsolavismo

                                                                                                                         Carlos Nougué

 Todo o esquema bolsolavista está ruindo, enquanto os bolsolavistas, tentando salvar a própria pele, passam de fanfarrões a cordeirinhos lamurientos. Voltará ao poder a esquerda? Se voltar, sofreremos todos; no entanto, a culpa terá sido toda não só do tosco e estúpido Bolsonaro mas – e talvez sobretudo – de toda a hoste de seus ideólogos (OdC e olavetes. Donato e donatistas, IPCO, e outros que tais, incluindo não poucos tradicionalistas católicos), tão trapalhões e tão irracionais como o mesmo Bolsonaro. A negação do evidente – o pior dos pecados intelectuais – fez Bolsonaro e sua cloroquina ser atropelados pela pandemia; o liberalismo econômico fez Bolsonaro não obrigar os banqueiros, os grandes financistas e os grandes industriais a arcar, junto com o governo, com o ônus da crise da covid-19 e do necessário sustento dos economicamente mais frágeis, além de, sob a batuta imbecil de Paulo Guedes, tê-lo impedido de implementar um vasto plano de obras públicas para compensar as falências e as demissões galopantes; o liberalismo ideológico fez Bolsonaro descumprir a promessa de campanha de lutar a todo o custo contra a ideologia de gênero, que ao contrário ganhou mais e mais espaço sob seu governo; a incapacidade de entender o que é uma guerra justa, que supõe um exato exame da correlação de forças, fez Bolsonaro ver-se minado por atos bravateiros não só próprios, mas de um Allan dos Santos, dos 30... ops, dos “300” de Brasília e seus “mortíferos” rojões, etc.; a ausência da verdadeira moral, que reza, por exemplo, que mentir é sempre pecado, fez Bolsonaro, seus filhos, os olavetes e outros que tais incrementar uma idiota indústria de fake news, igualzinha à da esquerda, com, aliás, as consequências que estamos vendo agora; e a falta de um verdadeiro programa cultural e doutrinal que formasse a ampla base popular de apoio ao presidente base que se estreita cada vez mais fez Bolsonaro aliar-se a gente tão “impoluta” como Roberto Jefferson sob o aplauso de olavetes e de donatistas. Diante deste triste quadro, não nos cabe senão repetir com Pio XII: “Nós percebemos a numerosa classe daqueles que consideram os fundamentos especificamente religiosos da civilização cristã [...] sem valor objetivo [para os dias de hoje], mas gostariam de conservar o brilho exterior dela para manter de pé uma ordem cívica que não poderia passar sem tal. Corpos sem vida, acometidos de paralisia, são eles mesmos incapazes de opor qualquer coisa às forças subversivas do ateísmo” (Discurso à União Internacional das Ligas Femininas Católicas).

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Perenialismo contra modernismo: o perigo de uma falsa restauração

                                                                                                                             Carlos Bezerra

O pontificado de Francisco expôs, definitivamente, uma espécie de guerra civil no interior da própria Igreja, mas com repercussões políticas em âmbito mundial. Não se trata, porém, de uma batalha do bem contra o mal, como os mais simplistas gostariam que fosse; longe disso, trata-se na realidade de algo mais complexo, repleto de sutilezas, e que, por sua própria força de atração, ainda arrastará muitos para o erro, porque as pessoas se movem por suas paixões desordenadas e se cegam mesmo diante das evidências. Primeiramente definirei as principais características dos lados envolvidos neste conflito, com o que pretenderei ser mais didático na exposição dos fatos.

O Papa Francisco segue de forma objetiva aquilo que mais obviamente se depreende das resoluções e disposições do Concílio Vaticano II ( 1962-1965) e de toda extensão do próprio “magistério” conciliar: ecumenismo, liberdade religiosa e colegialidade. Essa tríade correspondia, desde o princípio, aos anseios de um governo mundial aos moldes socialistas:  igualitário, republicano e democrático. O pontificado do Papa Paulo VI se encarregou do ecumenismo em sentido mais restrito, ou seja, comunhão com os protestantes e os ortodoxos, contribuindo para a farsa de um cristianismo que nunca existiu, porque a Igreja de Cristo é, pura e simplesmente, a Igreja Católica.

No longo pontificado de João Paulo II, o projeto se ampliou, correspondendo então aos anseios da “Nova Era” sonhada por Madame Blavatsky, Annie Besant e Alice Bailey: o interconfessionalismo, ou parlamento das religiões, como se verificou no encontro de Assis em 1986. Eram os anos do Live Aid e da “We Are the World”, a canção que reuniu multidão de artistas da música pop. Parecia mesmo o sonho de Lennon de um mundo sem fronteiras, multicultural, sem céu nem inferno; apenas uma irmandade de homens. João Paulo II era o líder religioso capaz de promover essa paz religiosa. O “comunismo” ideal, o sonho de um mundo perfeito, sem pecado original – eram essas as marcas de tal religião do amor.

Como era óbvio, a religião de Woodstock e dos  Beatles (John e Paul: ironicamente os nomes dos papas do concílio) só poderia corresponder a uma utopia, “comunista” em sua forma idealista , pacifista e contrária a qualquer forma de violência, mas favorável a toda  libertinagem: “É proibido proibir”, “Toda forma de amor vale à pena”, “ Faça sexo, não faça a guerra”.  Logo, portanto, o comunismo realmente existente teria de se transmutar, a partir de fins dos anos 80, para alguma coisa mais panteísta; a ECO 92, a defesa da mãe terra, expressa na carta redigida pelo próprio ex-presidente comunista Mikahil Gorbachev e assinada por seu grande amigo João Paulo II, e a plena adesão da chamada “teologia da libertação” eram sinais claros dessa mudança.

Entre o fim do pontificado de João Paulo II e o de Francisco, houve um interregno importante para a compreensão deste artigo: o movimento tradicionalista. Primeiramente lembremo-nos de Dom Marcel Lefebvre: em verdade, sua defesa não foi a de um movimento chamado tradicionalista, mas da tradição em sentido próprio, ou seja, a tradição apostólica. “Transmiti integralmente”, disse ele, “tudo o que recebi de meus predecessores e pretendo continuar a fazê-lo: a Doutrina ensinada por Nosso Senhor Jesus Cristo.” E assim o fez porque se tornou evidente para ele que o que ocorrido no e após o Concílio era a gênese de uma nova religião.

Mas voltemos ao dito movimento tradicionalista, e veremos a antítese que marca a infernal e dialética hegeliana nesse conflito. Bento XVI, em 2007, ampliou o indulto concedido anteriormente por João Paulo II aos padres que desejassem celebrar a Missa no chamado “rito extraordinário”, mas com a condição de aceitarem plenamente as disposições do Concílio e, sobretudo, o reconhecimento do Missal de Paulo VI como o do rito ordinário da Igreja. Obviamente, para os mais atentos, a questão já não era essencial (doutrinal), mas acidental (prática): um apego à beleza da liturgia tridentina em oposição aos excessos do Missal de Paulo VI. Bento XVI compreendeu bem que o debate deveria ficar restrito apenas à Missa. O tradicionalismo não lhe era um problema, e já veremos por quê.

Agora tratemos do outro lado envolvido neste conflito: a “Tradição”. Há uma tradição com T maiúsculo, que não é a tradição apostólica defendida por Monsenhor Lefebvre, mas a chamada “Tradição perene”, cujos principais expoentes são René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda Coomaraswamy, Julius Evola e outros mais recentes, de que falaremos depois.

Em síntese, a Tradição perene defende que Deus revelou uma religião primordial no início da humanidade, cuja essência porém com o tempo se esoterizou, ou seja, ficou restrita a um grupo de homens que conseguiam unir-se plenamente ao divino, enquanto para a maioria da humanidade a religião seria apenas algo externo (exotérico), com ritos e práticas litúrgicas tradicionais e adequadas a cada religião. Portanto, a Tradição primordial é o fundamento de todas as religiões em sua busca de união com a divindade, não devendo jamais se esvaziar daquilo que tem de mais significativo em suas práticas ritualísticas.

Naturalmente, o Tradicionalismo perene tende a opor-se a toda e qualquer forma de modernismo, globalismo, ecumenismo, multiculturalismo, comunismo, nova era, socialismo, porque busca exatamente o contrário disso: o “nacionalismo” e a tradição de todas as religiões, pois que sua união só pode dar-se de forma transcendente, o que implica a desigualdade entre os homens. E, com efeito, somente os pneumáticos ou espirituais podem unir-se ao divino. Portanto, o inimigo dos perenialistas é tudo aquilo que eles próprios denominam Nova Ordem Mundial, Deep State, Deep Church e, mais recentemente, Great Reset. Aí está o projeto de Steve Bannon, perenialista seguidor de René Guénon e Julius Evola, articulador político da campanha de Donald Trump em 2016 e da atual campanha de Jair Bolsonaro por sua reeleição. Mas Bannon tem seus olhos também voltados para a Europa, para aquilo que ele chama Cruzada pela Civilização judaico-cristã Ocidental, e para tal empreendimento se faz necessária uma forte oposição ao Papa Francisco, seu inimigo número um. Para isso é que Bannon arrendou o antigo mosteiro de Trisult, a poucos quilômetros de Roma, contando com o apoio do Instituto Dignatis Humanae, do qual fazem parte muitos cardeais e figuras proeminentes, como Matthew Festing, ex-grão mestre da Ordem de Malta. No dizer de Bannon, é fundamental  formar uma escola de gladiadores para assumir a direção da Igreja e promover uma restauração da tradição – nos moldes, claro, desejados por René Guénon. Mas isso só poderá ser bem-sucedido com a adesão de todos os movimentos tradicionalistas católicos, em algo que se pode chamar a união dos clãs: a FSSP, todas as comunidades Ecclesia Dei, os sedevacantistas, a Resistência e sobretudo a FSSPX.

Obviamente, muitos católicos, apegados antes aos sentidos, se deixam levar sobretudo pela beleza do rito tridentino, principalmente quando acompanhado de canto gregoriano, em uma bela Igreja ou catedral, ou ao som de um órgão, ou de um coral polifônico. Esses católicos serão muito piedosos, lerão dezenas de livros de espiritualidade e de vidas dos santos, mas pouco se importarão com a conversão do mundo a Nosso Senhor Jesus Cristo. Continuarão a defender as liberdades modernas, a democracia partidarista e o Estado laico, desde  que possam viver seu catolicismo tradicional. Por isso, muitos rejeitarão a Missa de Paulo VI e o Concílio Vaticano II. Desejarão ardentemente alguma restauração antimodernista. Mas outra característica desses católicos já aprisionados pelo Tradicionalismo perenialista é justamente sua agenda oposta à que eles identificam nas esquerdas: o imigracionismo, o movimento LGBT, as políticas pró-aborto e o modelo pedagógico de Paulo Freire. De fato, toda essa agenda é demoníaca, mas o erro é associá-la apenas às esquerdas, o que leva tais católicos a aderir, sem restrições, à nova direita impulsionada pelo mesmo perenialismo internacional, quando em verdade o perigo está em ambos os lados. E observe-se que nenhum dos dois lados se opõe ao Concílio Vaticano II em sua essência: a religião do homem.

É que é o humanismo a fonte de um e de outro mal, ou seja, tanto do modernismo como do perenialismo, os quais de fato se complementam, porque seu resultado será sempre um catolicismo cabalístico em um mundo em ruínas e pronto para o reinado do Anticristo final.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Disputa de surdos entre tradicionalistas e conciliares em torno da tese do P. Calderón sobre o magistério conciliar

                                                                                                        Carlos Nougué

Tradicionalista: O magistério conciliar já não usa a linguagem própria do magistério.

Conciliar: O magistério conciliar continua a usar a linguagem própria do magistério.

Tradicionalista: Nenhum papa pode alterar o missal de São Pio V.

Conciliar: Qualquer papa pode alterar o missal de São Pio V.

Ad infinitum.

Mas é nisso que dá envolver-se em disputas teológicas com o costume próprio dos “teólogos” de Facebook: palpitar sem se dar ao trabalho de estudar, de ler, etc. Porque, com efeito, simplesmente não é isso o que diz o Padre Calderón! E o pior: disponibilizei um curso gratuito de 12 aulas, “A Atual Crise na Igreja”, em que, além de meus próprios pontos de vista, exponho exaustivamente os do P. Calderón.

Diz o Padre argentino:

1) O próprio do magistério conciliar é já não falar “em pessoa de Cristo”, mas, humanista e liberal que é, falar “em pessoa do Povo de Deus”, o que está consignado em numerosíssimos documentos conciliares e pós-conciliares. Isto é que é renunciar à autoridade doutrinal. Para tanto, o magistério conciliar criou uma novilíngua, que, como toda novilíngua, utiliza antigos termos com outros sentidos.

2) Agora falo por mim: é claro que qualquer papa pode alterar o missal de São Pio V, e fizeram-no S. Pio X e Pio XII. Mas a missa nova, contra o que quer fazer crer a novilíngua conciliar, absolutamente não é uma alteração do missal de São Pio V: é uma ab-rogação deste e sua substituição por uma missa já não sacrifical, mas memorial e convivial fundada na doutrina herética do “mistério pascal” (sobre a qual voltarei a falar). – Ademais, só posso dizer o que acabo de dizer se considero previamente que, como o magistério conciliar depôs sua autoridade quanto ao objeto primário do magistério da Igreja (o estritamente doutrinal, o dogmático), tampouco tem autoridade com respeito ao objeto secundário do magistério (direito canônico, leis litúrgicas, canonizações, etc.). Mas impôs a missa nova como o faz qualquer autoridade demoliberal: protestando que fala em nome do Povo de Deus, fala em verdade em nome de uma heresia e governa maquiavélica e tiranicamente. Foi o que vimos fazer com respeito à missa tridentina a Paulo VI, João Paulo II, o Cardeal Ratzinger (os dois últimos chegaram a ter certo sentimento de culpa por isso e pela excomunhão de D. Lefebvre e de seus bispos, o que também é assunto para outro artigo), e agora Francisco, sem absolutamente nenhum sentimento de culpa, com seu Motu Proprio.

A resposta definitiva do Cardeal Caetano aos protestantes e ao CVII e seus seguidores quanto ao caráter da Missa

                                                                                                                         Carlos Nougué

Em seu magnífico opúsculo “De Missae sacrificio et ritu, adversus lutheranos”, escrito poucos anos antes do Concílio de Trento e levado muito em conta por este, o Cardeal Caetano demonstra contra os protestantes – e antecipadamente contra o CVII e sua doutrina do “mistério pascal” – que o rito da Missa tem caráter essencialmente sacrifical (e não essencialmente memorial e convivial). E eis as mais definitivas palavras suas sobre isto:

a) “Quando Nosso Senhor Jesus Cristo mandou [na Santa Ceia]: Fazei isto em memória de Mim, mandou: Fazei isto a modo de imolação em memória de Mim.”

b) Como a antiga Páscoa era figura da nova, “Fazei isto em memória de Mim refere-se a que há que fazê-lo a modo de imolação, pois na antiga Páscoa se fazia deste modo”.

c) Na Primeira Epístola aos Coríntios (cap. 10), “São Paulo enumera entre as coisas imoladas o pão santo e o cálice do Sangue de Cristo; trata nossa mesa como altar; e diz que os que comem e bebem da mesa do Senhor comem e bebem coisas imoladas. Com isto fica claro, por um lado, que os Apóstolos haviam entendido o mandato de Cristo: Fazei isto em memória de mim, como fazer a Eucaristia imolando-a; e, por outro lado, que na Igreja de Cristo, no tempo dos Apóstolos, a Eucaristia era não só um sacramento mas também um sacrifício”. 

Se eu fosse protestante ou neomodernista vaticano-segundo, “enfiaria a viola no saco” e me recolheria à minha insignificância. Como, porém, a alma da heresia é o “não servirei” satânico e radica na mais alta soberba, em sua grande maioria eles não o fizeram, nem o fazem, nem jamais o farão.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

O Catecismo de João Paulo II – um dos cumes da “hermenêutica da continuidade”, ou de como perder seguidores por uma só postagem...

                                                                                                                         Carlos Nougué

Nota prévia: este artigo foi publicado orginalmente no Facebook, donde a última parte de seu título.

A chamada “hermenêutica da continuidade” não é uma invenção de Bento XVI: é própria do mesmo Concílio Vaticano II. Consiste em mostrar-se em perfeita continuidade com o magistério autêntico e a tradição da Igreja mediante uma novilíngua: usam-se o mais possível os termos tradicionais, com significado todavia não só diferente mas, em questões centrais, perfeitamente oposto.

Pois bem, o “Catecismo da Igreja Católica”, promulgado por João Paulo II em 1992, é um dos cumes da hermenêutica da continuidade. É um esforço titânico por não afastar-se da terminologia do magistério tradicional; e certamente este foi um dos motivos de ter sido tão bem acolhido não só pelos que nasceram depois do CVII, mas até por velhos católicos (mal) formados no ambiente anterior. Hoje é brandido pela maioria dos católicos – em grande parte sem culpa própria – como a mais pura e verdadeira expressão da fé, razão por que este meu artigo mexe em casa de marimbondo, com a consequência dita em seu título.

Como, porém, graças a Deus, nunca me moveu nem me move a busca de sucesso, devo dizer aqui que este Catecismo é tudo menos uma pura e verdadeira expressão da fé. Nega a fé em pontos-chave. Por exemplo: retira ao magistério da Igreja o carisma da infalibilidade e transfere-o ao Povo de Deus por si; destrona Cristo na sociedade e afirma a “[mal]sã laicidade”; nega a capacidade da razão e da abstração para entender, na parca medida de nosso possível, os artigos da fé, e, negando assim um aristotelismo-tomismo assumido infalivelmente pelo magistério anterior, adere à simbólica neokantiana de autores publicados pela Loyola e pela Paulus, como Paul Ricoeur, Mircea Eliade, Carl Jung, Ernst Cassirer, Susanne Langer (filósofa cuja doutrina sobre a arte, no entanto, como o mostro no livro Da Arte do Belo, tem alguma utilidade se depurada de seu neokantismo); nega que a fé nos chegue “ex audito”, pelo ouvido, pela audição mediante a pregação apostólica das proposições ou artigos de fé, para afirmar a gnóstica doutrina da “experiência presencial” (vide sua defesa, por exemplo, por OdC); e sobretudo nega o “escândalo da cruz” e o substitui pela sutil mas hereticíssima doutrina do “mistério pascal”, da qual decorre, por exemplo, a missa nova e seu caráter essencialmente memorial e convivial, não sacrifical: com efeito, para esta doutrina, que inapelavelmente cai sob o anátema de Trento, a Redenção não decorre do sacrifício da Cruz, mas sobretudo da Ressurreição de Cristo, e fez-se por todo o gênero humano com vontade antecedente e com vontade consequente, motivo pelo qual, se o inferno existe, está ao menos pouco povoado.

Exagero eu? Não: nos n. 604 e 605 do Catecismo de João Paulo II, sob o título de “Deus tem a iniciativa do amor redentor universal”, lemos: “Ao entregar seu Filho por nossos pecados, Deus [deveria dizer 'Deus Pai', mas, com odor de arianismo, não o faz] manifesta que seu desígnio sobre nós é um desígnio de amor benevolente que precede a todo mérito de nossa parte... [e até parece a doutrina tomista da predestinação…]. Jesus recordou no final da parábola da ovelha perdida que este amor é sem exceção: ‘Da mesma maneira, não é vontade de vosso Pai celestial que se perca um só destes pequenos’ (Mt 18, 14). Afirma que dá ‘sua vida em resgate de muitos’ (Mt 20, 28); este último termo não é restritivo: opõe o conjunto da humanidade à única pessoa do Redentor que se entrega para salvá-la [donde o ‘por todos’ da missa nova, expressão que Bento XVI tentou corrigir substituindo-a pela tradicional ‘por muitos’, mas entendendo-a neste sentido não restritivo do Catecismo amarelinho]. A Igreja, seguindo os apóstolos, ensina que Cristo morreu por todos os homens sem exceção: ‘Não há, nem houve nem haverá homem algum por quem não haja padecido Cristo’ (Concílio de Quiercy)”. A intenção está clara: Cristo veio salvar o gênero humano com vontade consequente; mas, sendo Deus, o que quis ele o fez; razão por que a redenção é universal. E, para sustentá-lo nisto, o Catecismo traz em seu apoio nada menos que o Concílio de Quiercy (no qual aliás me fundo para mostrar a justeza da doutrina tomista da predestinação, em “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo”, in Do Papa Herético e outros opúsculos). Sucede, no entanto, que a frase do cânon citado não termina aí. Ei-la inteira: “Não há, nem houve nem haverá homem algum por quem não haja padecido Cristo, ainda que nem todos sejam redimidos pelo mistério de sua paixão” (Denzinger 319). Diante de tal supressão, é difícil não suspeitar de malícia. Como quer que seja, vê-se que pelo só e mesmo cânon do Concílio de Quiercy o Catecismo, por sua doutrina do “mistério pascal” em perfeita continuidade com o CVII, já se encontra sob anátema. E que me venha a perda de seguidores...


P.S.: amanhã, se Deus quiser, publicarei aqui a terceira e última parte de minha série “A Penetração do Liberal-conservadorismo na Tradição Católica”, cujo subtítulo será: “Escândalos e Irracionalismo”.