domingo, 5 de setembro de 2021

Uma autocrítica grave

                                                                                                                          Carlos Nougué

Já fiz, no início do ano passado, público mea-culpa pela ingenuidade culpável com que acreditara num suposto progresso teológico, religioso e político do Centro Dom Bosco e da Liga Cristo Rei, os quais afinal, sob uma linguagem aparentemente tradicional, nunca se haviam desvinculado da influência liberal-conservadora de Antonio Donato e de OdC. Mas agora hei de fazer uma autocrítica ainda mais grave, se quero ser honesto diante de Deus, de meus alunos e leitores e de mim mesmo: foi um grande erro meu ter feito campanha pública pela eleição de Bolsonaro. Entenda-se bem: não me arrependo de ter votado nele, que de fato na época se afigurava como um mal menor. O arrependimento é quanto a ter, como dito, feito campanha pública por ele. Por quê? Porque, buscando seguir a diretriz de S. Pio X segundo a qual, na ausência de candidato digno, deviam os católicos votar no candidato menos indigno, não atentei para a grande diferença de conjuntura entre a época do santo papa e a nossa. No início do século XX, a hierarquia da Igreja ainda sustentava o depósito da fé e estava pronta a guiar seu rebanho para que ele, ao votar num candidato menos indigno, não caísse nas armadilhas da democracia liberal e de nenhuma corrente política não efetivamente católica. Nos dias de hoje, todavia, a hierarquia da Igreja já não o faz, e por isso o que parecia ser um simples voto num mal menor (Bolsonaro) – que, ainda que menor, sempre foi um mal – se transformou não só em APOIO dos católicos liberal-conservadores e de boa parte dos católicos tradicionais a este mesmo mal, mas em verdadeira idolatria dele, fazendo assim o jogo dessa grande e forte direita internacional em cuja liderança se encontra o gnóstico perenialista Steve Bannon. Comecei a dar-me conta, ainda confusamente, de meu erro cinco meses após a posse de Bolsonaro, quando, ao constatar que este fazia de tudo menos cumprir as promessas que o tinham feito um mal menor, escrevi o texto “Eu acuso”, onde justamente mostrava as traições não só do presidente mas de toda a direita liberal-conservadora – e no entanto os referidos católicos, ainda assim, se mostraram tão comprometidos com eles, que já nem sequer se importavam com que eles não lutassem sequer contra a criminalização da homofobia pelo STF. Hoje, no entanto, dou-me conta plena da razão de meu erro: defender publicamente uma orientação prática de um papa antigo com abstração das condições concretas em que o fazia. Hoje vemos católicos pôr uma imagem de Bolsonaro ao lado de outra de Nossa Senhora, em patente sacrilégio; hoje vemos algum padre tradicionalista deixar de fazer um retiro espiritual costumeiro para liberar seus fiéis para as manifestações de 7 de setembro próximo, cujo único objetivo é sustentar um governo inepto e absolutamente descompromissado com o que o tornaria, repita-se, um mal menor; hoje vemos, enfim, católicos tradicionais não diferenciar-se politicamente não só dos católicos liberal-conservadores, mas dos mesmos liberal-conservadores não católicos, incluindo notórios maçons. O reinado social de Cristo? Para as calendas, ou como mera festa litúrgica!

Ademais, como diz o P. Álvaro Calderón referindo-se a Rubén Calderón Bouchet, seu pai, o grande historiador é aquele que, tendo especializado de determinado modo o hábito do intelecto, é capaz de concatenar todos os dados de dada conjuntura num quadro explicativo abrangente e claro, de modo que, digo eu, se possa utilizar eficientemente para a ação prática. Diz o P. Calderón que ele mesmo não é capaz de tal, ou seja, que ele não é historiador, ainda que seja capaz de entender teologicamente a história em suas linhas gerais. Em minha modesta escala, digo o mesmo de mim. Mas já me caiu dos olhos a última escama: eu errara de fato ao fazer campanha pública pela eleição de Bolsonaro. E, com olhos agora perfeitamente desobstruídos, posso dizer ainda: Mea culpa.