quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

“Sedevacantismo, um convite à perdição” (republicação revista)

                                                                                                                         Carlos Nougué 

O que diz o título deste escrito não supõe um argumento ad hominem; não visa a desqualificar uma doutrina adversária sem prova, nem requer do leitor um ato de fé. Absolutamente não é isto. É que, para fazer boa teologia – coisa de que estão muito distantes os sedevacantistas –, há que obedecer a um critério fundamental: a analogia da fé. E não se diga que tal analogia, brandida por Leão XIII na Providentissimus Deus, se aplica tão somente à interpretação das Sagradas Escrituras. Não: aplica-se igualmente ao magistério autêntico da Igreja e, quanto ao que nos interessa, a toda a teologia com respeito ao mesmo magistério. Que porém quer dizer aplicar a analogia da fé? Simplesmente isto, se se trata da teologia com respeito ao magistério da Igreja: não se há de defender nada que contrarie o já definido (e definição supõe infalibilidade) pelo mesmo magistério. Um exemplo: se alguém quer sustentar que o mundo durará mil anos após a morte do Anticristo – o que considero ao menos improbabilíssimo –, que o faça, mas sem ferir de modo algum o já definido pelo magistério: quem até o fim dos tempos reinará imediatamente na terra será sempre o vigário de Cristo, nunca diretamente Cristo mesmo, nem o Espírito Santo, nem Maria. Tampouco haverá de negar que o Demônio continuará durante tais mil anos – se os houver – a ser de algum modo o príncipe deste mundo, nem que os homens, incluindo os batizados, continuarão a padecer as sequelas do pecado original: fazê-lo é, uma vez mais, ir contra o definido pelo magistério da Igreja ao longo do tempo.

Pois bem, o Concílio Vaticano II e o chamado magistério conciliar (e pós-conciliar) trazem-nos um problema teológico novo, obviamente nunca tratado pelo magistério autêntico da Igreja: no e após o CVII, o magistério da Igreja depôs sua autoridade doutrinal em favor de uma soi-disant autoridade do conjunto do Povo de Deus enquanto tal, o qual seria dotado de um suposto sensus fidei infalível por si. Diante de tal e tão terrível novidade, portanto, é legítimo que se dispute em torno de sua solução. Mas, pela analogia da fé, toda solução quanto a esta questão que contrarie algo definido pelo magistério da Igreja será não só errada mas ilegítima. É o caso do sedevacantismo.

Com efeito, definiu o Concílio Vaticano I (D 1825): “Cânon. Se alguém, pois, disser que não é de instituição de Cristo mesmo, isto é, de direito divino, que o bem-aventurado Pedro tenha perpétuos sucessores no primado sobre a Igreja universal [...], seja anátema”. Os sedevacantistas tentam enganar-se a si mesmos e aos outros pondo que “perpétuos” não quer dizer “(papas) ininterruptos”, senão que neste cânon só se quis dizer que “o papado será perpétuo”. Sofisma e novilíngua de quinta categoria, claro. Definiu mais, todavia, o Concílio Vaticano I: “A perenidade da Hierarquia definiu-a implicitamente o Concílio Vaticano [I]. Com efeito, definiu explicitamente a perenidade do Primado (D 1824s). É assim que também definiu que é próprio do Primado ter subordinados a si e governar os Pastores ou Bispos da Igreja universal (D 1827-1831); logo, sempre haverá Pastores ou Bispos subordinados ao Primado. Isto mesmo é ensinado explicitamente na introdução à Constituição da Igreja (D 1821)” (P. J. Salaverri S. J., Sacrae Theologiae Summa [dos Padres da Companhia de Jesus, 4.ª ed., Madrid, B.A.C., 1962], trat. III, “De la Iglesia de Jesucristo”, n. 294.). [Quanto, ademais, à perenidade da Igreja, define-a o Vaticano I explicitamente mas indiretamente (D 1821-1824; cf. P. J. Salaverri S. J., ibidem).] Se é assim, por conseguinte, incorrem em anátema os sedevacantistas; e pô-lo supõe aplicar ao caso vertente a analogia da fé.

Se pois tivermos qualquer dúvida quanto à solução que se dê à questão gravíssima suscitada pelo magistério vaticano-segundo, não podemos porém de modo algum resolvê-la rompendo a analogia da fé. E é segundo esta analogia que respondo a seguir às dúvidas que me enviou um aluno.

1) “Diz Calderón que o CVII influi até mesmo no código de Direito Canônico. Mas se é assim, e tendo em vista as mudanças que foram feitas sob Paulo VI (Romano Pontifice Elegendo) e João Paulo II (Universi Domini Gregis), mudanças que, se Calderón estiver certo, foram feitas sem autoridade magisterial, se pois é assim, creio que é possível concluir que sua promulgação e sua execução sejam ilícitas. Mas, se tal o são, deveríamos concluir, como os sedevacantistas, que já não há eleição de cardeais, e, então, de papas e enfim de presbíteros?”

RESPOSTA. Veja-se que a própria pergunta já é inadequada, porque supõe possível uma negação de algo definido pelo magistério. A resposta à questão, portanto, há de ser outra.

a) Que o magistério conciliar e pois o CVII sejam ilegítimos, não o podemos decretar nós. Só um Papa ou um concílio sob um Papa. Os sedevacantistas, ao decretá-lo, caem sob outro anátema implicado por outra definição: a de que ninguém pode depor um papa (nem de fato, nem de direito). Mas não disse o Papa Adriano II numa carta incluída na Ação VII do VIII Concílio Ecumênico “que o Romano Pontífice sempre julgou as cabeças de todas as igrejas; mas não vemos em parte alguma que quem quer que seja o tenha julgado a ele. No entanto, é verdade que [o Papa] Honório [I], após sua morte, foi vergastado com o anátema pelos orientais. É necessário todavia não esquecer que ele foi acusado de heresia e que este é o único crime que torna legítima a resistência dos inferiores aos superiores, bem como a rejeição de suas perniciosas doutrinas”? Disse-o, mas disse também que Honório I foi anatematizado pelos orientais num concílio (o VI Ecumênico), com a aprovação de um Papa (São Leão II), e após a morte do Papa vergastado. Mas os sedevacantistas, sem ser padres conciliares e sem a aprovação de nenhum Papa, decretam que nada menos seis Papas não o são!... Ou seja: acrescentam ao anátema uma presunção sem tamanho.

b) Depois, na Candeia Calderón diz exatamente (contra os sedevacantistas da tese de Cassiciacum) o contrário do posto pela pergunta: as mudanças nas regras da eleição papal feitas pelo magistério conciliar são perfeitamente legítimas. Por quê? Porque tais regras, digo-o eu, não fazem parte do poder autoritativo (de autoridade doutrinal) do magistério (nem de seu objeto primário nem de seu objeto secundário, os quais são os que, ainda que de diferente modo, podem dizer-se infalíveis, ou certos, ou prováveis). Fazem parte do poder governativo (ou seja, aquele meramente de ordem prática e prudencial) do magistério (como também fazem parte deste poder atos como, por exemplo, indicar bispos para esta ou aquela diocese, ou fechar igrejas durante uma pandemia). Por si, isto é a única coisa que não implicaria que o Magistério conciliar (com maiúscula porque agora se trata do sujeito do magistério) tivesse jurisdição precária, ou seja, merecesse não sê-lo por seus desvios da fé (cf. meu Do Papa Herético, p. 286-288, salvo engano). Reproduzo-o: “Como Caetano, João de Santo Tomás, os Carmelitas de Salamanca, Billuart, Afonso Maria de Ligório e tantos outros, pôde dizer Báñez que, ‘como a noção de membro [da igreja] é empregada metaforicamente, dissemos mais acima que pode haver vários ângulos da metáfora: segundo um ângulo [ou seja, a influência espiritual recebida de Cristo, segundo a própria terminologia de Báñez] o pontífice [a fide devius, desviado da fé] não é membro de Cristo ou da Igreja, e segundo outro [o poder de governar] é membro seu’.[...] Para entendê-lo, recorra-se a uma analogia. Como dizia Pio XII, um assassino já perdeu por seu mesmo ato o direito à vida e à cidadania. Mas, digo, é preciso que o estado o julgue, lhe retire a cidadania e o condene à morte. Enquanto ou se não o faz, tal assassino continua com a vida e a cidadania, ainda que só de certo modo, ou seja, em estado precário. Pois é, analogamente, o que nos parece se passa com o papa a fide devius: já deixou ipso facto de ser membro de Cristo e da Igreja; mas ainda preserva a jurisdição, ainda que tão só por falta do devido juízo: mantém-se papa, portanto, com jurisdição precária.[...] – Pode-se recorrer ainda a uma analogia com a potestade civil, como o faz, aliás, o mesmo Domingo Báñez.[...] Com efeito, um governo civil pode dizer-se tirânico se não se funda na verdade, razão por que só secundum quid mantém a autoridade e a jurisdição: ou seja, só enquanto não é deposto. Enquanto todavia não é deposto, segue sendo, de modo precário, o governo da nação. Pois bem, dá-se o mesmo, mutatis mutandis, com a cabeça visível da Igreja que tenha incorrido em heresia: está ipso facto excomungada, mas mantém precariamente a jurisdição.[...] E não é essencialmente outra coisa o que se dá com todos os demais clérigos que se tenham desviado da fé: enquanto não são admoestados duas vezes e julgados [declaratoriamente], mantêm precariamente a jurisdição”. Mas, para que mantenha a jurisdição ainda que precariamente, é preciso que formalmente possam ser válidos os atos de seu poder governativo. Ergo.

2) “Por fim, outra pergunta: o Código de Direito Canônico faz parte do objeto segundo do objeto primário do magistério, não? É possível que se aplique infalibilidade a ele, não? Se é assim, e o infalível, suponho, é imutável, como a verdade é também imutável, como pode haver mudanças no Código de Direito Canônico ao longo da história?”

RESPOSTA. Diga-se, antes de tudo, que o Direito Canônico não é objeto segundo do objeto primário do magistério; isto não existe. É parte do objeto secundário do magistério da Igreja em seu poder autoritativo, e, como todo ato deste objeto secundário, só participa da infalibilidade se se funda em ato infalível do objeto primário do mesmo poder. Se todavia se funda em ato certo, será certo; se se funda em ato provável, será provável; se não se funda em nada disto, terá autoridade nula. (E cuidado para não reduzir ou empobrecer, como o fazem astutamente ou ineptamente os sedevacantistas, a tese de Calderón supondo que ela gira em torno de uma minguada oposição magistério infalível versus magistério não infalível. Não: o cerne mesmo da tese do Padre argentino é, na esteira de Pio XII (Humani Generis), a oposição magistério autêntico (que pode ser infalível, certo ou provável, sempre com assistência do Espírito Santo em algum desses graus) versus magistério conciliar ou liberal (não assistido pelo Espírito Santo) por ter deposto, ele mesmo, sua potestade autoritativa.)

Diga-se, depois, que os atos do objeto secundário do magistério enquanto potestade autoritativa estão a cavaleiro entre o doutrinal e o prático. É o caso das leis canônicas, das leis litúrgicas, das canonizações, das excomunhões, etc. Pois bem, as excomunhões podem ser revistas, se um Papa perceber que se fundaram em informações falsas. As canonizações, se se fundarem em doutrina infalível e resultarem de preciso processo, então participarão da infalibilidade em modo irrevogável. Mas as leis canônicas e as leis litúrgicas, pelo caráter mesmo de seu objeto ou matéria, não são absolutamente fixas, ainda que participem da infalibilidade. Por quê? Porque as condições mesmas em que se formularam na ordem do prático não só podem mudar, mas efetivamente mudam. Por isso é um erro pernicioso o de muitos tradicionalistas que dizem que nenhum Papa pode alterar a Missa tridentina tal como estabelecida por São Pio V. Não só o pode, senão que alguns já o fizeram, em especial São Pio X e Pio XII (ainda que este antes quanto ao rito da Missa nos dias da Semana Santa). O problema do Novus Ordo Missae de Paulo VI é que, além de não fundado em doutrina assistida pelo Espírito Santo (mas na doutrina herética do “mistério pascal”), institui uma antimissa, ou seja, uma “missa” de caráter centralmente convival e memorial e não sacrifical. Quanto ao Código de Direito Canônico pós-conciliar, diga-se algo análogo: apesar de sua novilíngua ordenada a dar às novidades do direito pós-conciliar o caráter de continuadoras do direito do magistério autêntico da Igreja (trata-se ainda da “hermenêutica da continuidade”), não passa de uma colcha de retalhos fundada na doutrina do sensus fidei soi-disant infalível do Povo de Deus por si, o que só por si já lhe retira qualquer verdadeira autoridade. 

À guisa de conclusão, no entanto, e voltando ao título deste breve escrito, diga-se que se funda não só no posto ao longo destas linhas, mas em evidência: é absolutamente evidente que parte considerável dos sedevacantistas – na maioria jovens sem a menor iniciação em teologia – não só cai sob o anátema do Vaticano I, mas acaba por perder a fé ou a caridade, ou formalmente (aderindo, por exemplo, à ortodoxia ou ao protestantismo), ou materialmente (numa vida sem sacramentos, sem oração, com as consequências disso). E tudo isso decorre grandemente de que tais jovens nem sequer têm o senso de pertencimento a uma Igreja real, apenas a uma “igreja pneumática”. Sei que estas linhas, como aliás meu mesmo livro Do Papa Herético, são incapazes de abrir os olhos de ao menos grandíssima parte dos sedevacantistas, cujo coração se endureceu; até porque, ao fim e ao cabo, isto é efeito do processo – conducente ao Anticristo – de apostasia da própria hierarquia da Igreja iniciado expressamente pelo Concílio Vaticano II (ou seja, a abominação da desolação instalada no lugar santo). Mas ainda assim devo alertá-los e alertá-los: o canto de sereia do sedevacantismo, tão atraente à primeira vista, não é senão um convite à perdição.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

“Da Realeza Social De Cristo”, novo curso de Carlos Nougué

Curso de três meses ao vivo, com 12 aulas de uma hora cada uma (+ meia hora para solução de dúvidas), ou seja, uma por semana.

Valor total (por pagar-se no ato de inscrição): R$ 300,00.

• Número de alunos por turma: 5 (cinco), nem mais nem menos.

• Horário das aulas: sempre às 20 h.

• Início da primeira turma: quinta-feira 30 de novembro de 2023.

Ementa:

1) A doutrina das duas espadas até Bonifácio VIII

a) Pelos doutores e teólogos

b) Pelo magistério da Igreja

c) Duplo modo da infalibilidade desta doutrina

2) A doutrina pelas lentes de S. Tomás de Aquino

3) A deformação da doutrina magisterial e tomista

4) Estado e Igreja: duas sociedades perfeitas? ou se o magistério se contradisse a si mesmo

5) A retomada tomista por Leão XIII

6) A Quas primas de Pio XI, a carta magna da cristandade

7) De Maritain ao Vaticano II

8) Se o mundo voltará a cristianizar-se

a) Segundo o magistério da Igreja

b) Segundo os doutores e teólogos

c) Nossa opinião

d) Os milenarismos

e) O Apocalipse de São João

Observação: os interessados devem escrever-me para:

carlosnouguefilosofia@gmail.com .

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Sobre a edição das “Questões Disputadas sobre a Verdade”, de S. Tomás, pela Ecclesiae


Carlos Nougué 

    Quando, com suas quase mil páginas, esta obra foi lançada pela Ecclesiae, e depois de dar uma olhada muito superficial na tradução, saudei-a publicamente. E não deixo de fazê-lo ainda agora, depois de tê-la lido efetiva e mais detidamente; afinal, é algo de que o tomismo, e em particular seus estudantes, necessitava no Brasil, além de que não deixa de ser louvabilíssimo o trabalho árduo e – vê-se – honesto do tradutor. Mas tampouco posso deixar de assinalar, também publicamente, problemas desta tradução, porque tenho responsabilidade diante da multidão de meus alunos dispersa por meus vários cursos e outros meios.

Em meu último livro lançado, No Fragor da Batalha, incluí um escrito (“Termos e expressões de Santo Tomás”) em que relaciono o que não se deve traduzir de seu latim, mas deixá-lo em itálico com a devida explicação em nota de rodapé. Entre tais termos e expressões, estão simpliciter (que quer dizer pouco mais ou menos ‘pura e simplesmente’, ‘em termos absolutos’) e per se (que em alguns casos deve traduzir-se por “por si”, mas em outros não, porque aqui quer dizer pouco mais ou menos ‘em termos essenciais’ e se contrapõe a per accidens [‘acidentalmente, não essencialmente’], expressão que tampouco deve ser traduzida, porque “acidente” tem conotações em português que não convêm com a expressão). Pois bem, já na página 42 da referida tradução (mas multiplicando-se ao longo do volume) aparecem traduções inconvenientes justamente destes dois termos. Vejamo-las o mais brevemente possível.

a) “Ademais, alguma coisa se diz ser DE MODO SIMPLES, enquanto ela está naquilo que lhe confere sua completude.” Lê-se em latim: “Praeterea, secundum hoc dicitur esse aliquid SIMPLICITER, secundum quod est in sui complemento”. Note-se que traduzir aqui SIMPLICITER por “DE MODO SIMPLES” implica destruir o sentido mesmo da oração, fazendo-a absurda. Se fôssemos traduzir o termo que é melhor deixar em latim, o que o nosso Santo quis dizer é pouco mais ou menos o seguinte: “Diz-se que algo é [ou seja, existe e é o que é] PURA E SIMPLESMENTE ou EM TERMOS ABSOLUTOS quando esse algo está em seu estado completo”. Mas obviamente nossas palavras para traduzir simpliciter, ainda que acertadas, não expressam perfeitamente o que expressa o termo latino.

b) “Dizia-se que o universal não se corrompe por si, mas por acidente.” O que o leitor que não conhece latim nem o latim de Tomás tenderá a pensar? Que “o universal não se corrompe por si mesmo, por sua conta, sem intervenção de outrem, mas só quando sofre algum acidente”. Mas veja-se o latim: “Sed dicebat, quod universale non corrumpitur PER SE, sed PER ACCIDENS”. Antes de tudo, diga-se que já a não tradução da palavra inicial da frase latina, sed, desfigura o esquema da disputatio, porque este sed (“mas”) introduz nela uma réplica, a que se seguirá, ato contínuo, uma contrarréplica em forma de sed contra. Mas o pior é que o per se não quer dizer ‘por si’, mas pouco mais ou menos ‘essencialmente falando’, ou no máximo, se se insiste em traduzi-la, “de si”. Semelhantemente, per accidens quer dizer pouco mais ou menos ‘em termos acidentais, não essenciais’. Mas vê-se sem dificuldade como, com as devidas explicações em nota de rodapé ou num glossário prévio, a frase fluiria se posta assim em nossa pobre língua: “Mas dizia-se que o universal não se corrompe per se, mas per accidens”.

Por outro lado, na tradução de uma obra filosófica ou teológica deve respeitar-se maximamente a tradição terminológica. O nosso tradutor do De veritate, no entanto, põe na página 43 a seguinte frase: “Mas, em contrário, uma coisa é o Pai ser Pai, e outra coisa é o Filho ser Filho e SOPRAR o Espírito Santo”. Quer traduzir desse modo o seguinte: “Sed contra, alio pater est pater et generat filium; alio filius est filius et SPIRAT spiritum sanctum”, que todavia se traduz corretamente assim: "Mas, em contrário, uma coisa é que o Pai seja o Pai e gere o Filho; outra coisa é que o Filho seja o Filho e ESPIRE o Espírito Santo”. Trata-se da ESPIRAÇÃO [não "expiração"] como propriedade ou noção. Colocar “SOPRA” em vez de “ESPIRA” supõe dizer que há SOPRO na processão divina, termo que não traduz precisamente a noção e, ademais, implica um rebaixamento do nosso texto ao vulgar. Parece uma firula; mas não o é: usa-se desde sempre “ESPIRAR” até para manter a coisa quase como no latim: “SPIRAT SPIRITUM”. Não é difícil notar que SPIRAT não só é da mesma família que SPIRITUM, mas cabe quase inteiro nesta palavra. Entendamo-lo melhor com esta passagem de S. Tomás no Compêndio de Teologia:

“CAPÍTULO 57

DAS PROPRIEDADES OU NOÇÕES EM DEUS,

E QUANTAS SÃO NO PAI

Existente em Deus [...] tal número de Pessoas, é necessário que haja também certo número de propriedades pelas quais as Pessoas se distingam entre si. Três aparecem como convenientes ao Pai. Uma pela qual se distingue só do Filho, e esta é a paternidade; outra pela qual se distingue dos dois, ou seja, o Filho e o Espírito Santo, e esta é a inascibilidade, porque o Pai não é Deus procedente de outro, ao passo que o Filho e o Espírito Santo procedem de outro; a terceira pela qual o mesmo Pai com o Filho se distinguem do Espírito Santo, e esta se diz espiração comum. Mas não se há de assinalar nenhuma propriedade pela qual o Pai difira do Espírito Santo só, porque o Pai e o Filho são um único princípio do Espírito Santo, como se mostrou [c. 49]”.

Fico por aqui, insistindo: o que acabo de escrever não visa a nada mais que alertar para a correta maneira de entender e de traduzir S. Tomás (e a filosofia e a teologia em geral); não que eu mesmo não esteja sujeito a erros de tradução  falo em termos gerais. Para fazê-lo, é preciso profundo conhecimento não só do latim e da língua para a qual se traduz, mas também da mesma doutrina do nosso Doutor Angélico – até porque é uma temeridade não ser fiel a um quasi anjo.