segunda-feira, 26 de julho de 2021

Observações sobre a influência do ocultismo no discurso católico tradicional (parte 4 de oito partes)

 Alistair McFadden

 Tradução

Danilo Rehem

 

Parte IV:

Cabala para católicos?

“Católicos hebreus” e seu cardeal

 

Quando tomei conhecimento da influência crescente da Cabala no discurso católico tradicional, contatei um estimado padre-teólogo franciscano em boa posição com a Igreja, a quem conheço pessoalmente e em cujo julgamento nesses assuntos confio implicitamente. Perguntei-lhe francamente se a Cabala poderia ter alguma aplicação legítima na teologia católica ortodoxa. Sua resposta foi estranhamente contundente: "Não, não tem". Na verdade, como eu leria mais tarde na Enciclopédia Católica, “várias de suas doutrinas lembram as de Pitágoras, Platão, Aristóteles, os neoplatônicos de Alexandria, os panteístas orientais ou egípcios e os gnósticos dos primeiros tempos cristãos. Suas especulações sobre a natureza de Deus e a relação com o universo diferem materialmente dos ensinamentos da Revelação.”

Deve-se notar neste ponto, para evitar dúvidas, que a impossibilidade radical de conciliação da Cabala com o Depósito da Fé não é de forma alguma um preconceito dos tradicionalistas católicos judeofóbicos, como até mesmo estudiosos católicos filo-semitas reconheceram o fato. O Dr. John Lamont, da Australian Catholic University, por exemplo, ao escrever o que de outra forma seria um tratamento extremamente simpático do Judaísmo (intitulado "Por que os judeus não são os inimigos da Igreja") para a corrente principal da Homiletic & Pastoral Review, interpola uma importante qualificação : “Deve ser mencionado que a Cabala ... não é compatível com o monoteísmo.” Não somente incompatível com o Cristianismo, mas até com o monoteísmo!

É difícil quantificar com precisão até que ponto os Cabalistas estão ganhando força no meio da Tradição Católica, mas talvez possamos avaliar algum sentido considerando o caso da Association of Hebrew Catholics (AHC), um apostolado leigo anteriormente sediado na Diocese de Lansing dos Estados Unidos e ostentando cerca de dez mil membros em todo o mundo, cuja missão declarada é “preservar a identidade e a herança dos judeus dentro da Igreja ..., ajudar todos os católicos a compreender as raízes judaicas da fé católica e servir a todas as pessoas em sua jornada espiritual, tanto dentro quanto fora da Igreja Católica. ” A AHC se esforça para atingir esses objetivos conectando seus membros geograficamente difusos a fim de facilitar, entre outras coisas, as “Havurot” (no plural; “Havurah” no singular) – associações locais informais dos chamados “hebreus católicos” que se reúnem regularmente para socializar, orar e estudar. Um exemplo de atividades típicas de Havurah é fornecido no site do AHC:

 

“Do Bnei Miriam Havurah, Tasmânia, Austrália…

“Nossas atividades Havurah incluem uma celebração semanal da refeição tradicional do Sabbath judaico. Acendemos as luzes usando as orações tradicionais e, em seguida, fazemos a oração católica da noite no escritório. Nós recitamos o Salmo Judaico para o dia e então cantamos o L’cha dodi (Venha, minha amada) em honra de Nossa Senhora a Rainha do Sabbath. Também cantamos a canção para dar as boas-vindas aos anjos e rezar outras orações do Siddur antes de recitar o Kidush. Após a refeição, recitamos o Birkat Mazon (Graça). Durante a refeição, conversamos ou compartilhamos algum aspecto da vida judaica da Torá. Em outras ocasiões, também estudamos os ensinamentos do [Cabalista] Rebe Nachman ou o Zohar ou outros escritos judaicos à luz de nossa fé católica. Também participamos de certos eventos com a comunidade judaica ortodoxa local em Hobart.” 

Entre 2002 e 2004, The Hebrew Catholic, o boletim oficial trimestral da AHC, publicou em três edições um ensaio, "The Eucharist and the Jewish Mystical Tradition",[1] em que o autor, membro principal da AHC e ativista Athol Bloomer, postula que “O estudo da tradição mística judaica [isto é, a Cabala] à luz da Eucaristia é ... essencial no futuro desenvolvimento de uma espiritualidade hebraica católica que enriqueceria toda a Igreja”. Para Bloomer, “uma das coisas importantes para o movimento hebraico católico é desenvolver uma autêntica teologia e espiritualidade hebraico-católica centrada na eucarística. Se seremos apenas católicos helenísticos romanos gentios que por acaso já foram judeus, acho que deveríamos simplesmente fechar a porta e admitir que o regime de assimilação triunfou.” Seu ensaio foi posteriormente republicado no site da AHC, onde hoje pode ser lido.[2]

Também estão disponíveis através do site do AHC – presumivelmente com o objetivo de promover essa “teologia e espiritualidade hebraica católica autêntica” – textos como The Book of Understanding, do “estudioso escriturístico e rabínico” Michael Anthony, que o falecido Rabino Joseph H. Ehrenkranz recomenda como "uma obra enciclopédica que nos permite subir a Escada do Entendimento ... À medida que [o autor] apresenta cada degrau da escada, ele invoca as Sagradas Escrituras, o Midrash e outros textos rabínicos, o Talmude Babilônico e de Jerusalém, o Zohar, além de comentários da tradição cristã e judaica.” Confesso que não li esta obra, mas se é uma leitura adequada para a edificação dos católicos, então como é que um rabino judeu ortodoxo – um adepto de uma religião completamente diferente (e falsa) – pode descrevê-lo como sendo "em essência um livro-texto da vida, uma grande contribuição para aqueles que buscam um estilo de vida baseado na fé fundamental levando ao entendimento ”?

Em 2006, dois anos após a publicação final de “The Eucharist and the Jewish Mystical Tradition”, publicada no The Hebrew Catholic, o AHC transferiu sua sede para a Arquidiocese de St. Louis, dos Estados Unidos, onde o arcebispo em exercício provou ser um anfitrião muito complacente. Em uma carta a David Moss, presidente da AHC, ele escreveu:

 

“Em primeiro lugar, permita-me expressar minha estima pelo apostolado da Associação dos Católicos Hebraicos. A missão da vossa associação responde, da forma mais adequada, ao desejo da Igreja de respeitar plenamente a vocação e a herança distintas dos israelitas na Igreja Católica. A Igreja Católica Romana conhece e valoriza a parte particular e privilegiada da economia da salvação, atribuída por Deus Pai ao povo de Israel ...

“A sede da Association of Hebrew Catholics é muito bem-vinda para mudar sua sede na Arquidiocese de Saint Louis. Além disso, se houver algo que eu possa fazer para ajudá-lo a estabelecer a sede da Associação na Arquidiocese, me avise, por favor. Instruí minha equipe a dar-lhe toda a ajuda possível na localização de um local adequado para a sede e seus aposentos pessoais.”

O mesmo arcebispo – agora emérito – atualmente faz parte do conselho consultivo da AHC. Ele não é outro senão o Cardeal Raymond Leo Burke, o suposto porta-estandarte da Tradição na hierarquia católica!

Talvez Sua Eminência desconheça as inclinações cabalísticas da AHC. Talvez o Dr. Taylor Marshall, outro decano do movimento católico tradicional, também não soubesse quando discursou em uma conferência da AHC em 2010, e depois escreveu em seu blog popular: “Tive um momento maravilhoso e espero participar novamente no futuro”. Não posso falar por nenhum deles, é claro, embora suspeite que o Dr. Marshall – que mais tarde provocaria a ira dos católicos liberais ao se manifestar contra a prática "judaizante" dos cristãos que celebram a Sêder de Pessach, que a AHC encoraja ativamente – realmente era inconsciente. Por outro lado, o Cardeal Burke participou de pelo menos um desses Sêders organizados pela AHC, que o Dr. Marshall argumenta convincentemente (citando Santo Tomás de Aquino e o Concílio de Florença) ser um pecado mortal objetivo para um católico participar. Como explicar isso?

Foi uma surpresa para mim que o Cardeal Burke, por quem sempre tive o maior respeito e admiração, não só deixasse de censurar uma organização sob sua jurisdição que se propõe a “enriquecer toda a Igreja” com uma espiritualidade gnóstico-cabalística, mas escolheria endossar e até mesmo se associar pessoalmente a ela. Posso estar mostrando minha ingenuidade leiga aqui, mas teria pensado que qualquer prelado católico que pretendesse ser fiel à Tradição iria necessariamente defender essa tradição em sua totalidade, incluindo o decreto de 1887 do Papa Leão XIII proibindo os vários textos da Cabala (entre outros), que diz, em parte:

 

“Nosso Santo Senhor Papa Clemente VIII em sua Constituição contra os escritos ímpios e livros Judaicos, publicados em Roma no ano de 1592 de Nosso Senhor ... declarou e desejou expressamente e especialmente que os ímpios livros talmúdicos, cabalísticos e outros nefastos dos judeus sejam inteiramente condenados e que eles devem permanecer sempre condenados e proibidos, e que sua Constituição sobre esses livros deve ser observada perpétua e inviolavelmente.” 

Talvez Sua Eminência tenha a gentileza de esclarecer sua posição sobre o assunto? 

(Continua na Parte V: Neoplatonismo Renascentista e a Tradição Hermética [tradução no prelo].) 

Notas finais:

[1] Parte I (edição nº 77, verão-outono de 2002); Parte II (edição nº 78, Inverno-Primavera de 2003); Parte III (edição nº 80, verão de 2004) [PDF indisponível].

[2] Parte I; Parte II; Parte III.

domingo, 18 de julho de 2021

UM EXEMPLO DE RESISTÊNCIA CATÓLICA: A PRINCESA PALLAVICINI

 Um artigo de Roberto de Mattei

Tradução: Danilo Rehem

Revisão: João Medeiros

 

Há quarenta anos, ocorreu um acontecimento histórico: a conferência realizada em 06 de junho de 1977 por Dom Marcel Lefebvre no Palazzo Pallavicini em Roma sobre o tema "A Igreja depois do Concílio". Acho que é útil relembrar esse evento com base nas notas e documentos que mantenho. O Arcebispo Marcel Lefebvre, fundador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (1970) foi suspenso a divinis em 22 de julho do mesmo ano, após as ordenações sacerdotais de 29 de junho de 1976.

No entanto, entre os católicos preocupados, havia fortes dúvidas sobre a legitimidade canônica dessa disposição e, acima de tudo, não entendiam a atitude de Paulo VI, que parecia querer reservar suas censuras apenas para aqueles que professavam buscar permanecer fiéis à Tradição da Igreja. Nesse clima de desorientação, em abril de 1977, a Princesa Elvina Pallavicini (1914-2004) decidiu convidar Dom Lefebvre em seu palácio no Quirinale, para ouvir o seu raciocínio.

A Princesa Pallavicini tinha 63 anos e, desde 1940, era viúva do Príncipe Guglielmo Pallavicini de Bernis, que morreu em sua primeira missão de guerra. Ela viveu em uma cadeira de rodas por muitos anos devido à paralisia progressiva, mas era uma mulher de temperamento indomável. Em torno dela estava um pequeno grupo de amigos e conselheiros, incluindo o Marquês Roberto Malvezzi Campeggi (1907-1979), Coronel da Guarda Nobre Papal na época de sua dissolução (1970) e o Marquês Luigi Coda Nunziante di San Ferdinando (1930-2015), ex-comandante da Marinha Italiana. Divulgada em maio, a notícia da conferência não causou preocupação inicialmente no Vaticano.

Paulo VI acreditava que seria fácil convencer a princesa a desistir de seus planos e confiou a tarefa a um colaborador próximo seu, "Dom Sergio" Pignedoli (1910-1980), a quem fez cardeal em 1973. O cardeal telefonou à princesa com tom afetuoso, indagando antes de tudo sobre sua enfermidade. “Fico satisfeita” – observou com ironia Elvina Pallavicini – “deste vosso interesse depois de tanto tempo de silêncio”. Depois de quase uma hora de amabilidades, a pergunta do cardeal finalmente chegou: "Sei que receberá Dom Lefebvre. Mas será uma conferência pública ou privada?" "Em minha casa, só pode ser privado" respondeu a princesa. O cardeal então se aventurou: “Não seria sensato adiar? O Arcebispo Lefebvre fez o Santo Padre sofrer tanto que ele ficou muito triste com esta iniciativa...”. Mas a resposta de Dona Elvina deixou em choque o Cardeal Pignedoli: “Eminência, em minha casa acredito que posso receber quem desejo receber.”

Diante dessa resistência inesperada, o Vaticano recorreu ao Príncipe Aspreno Colonna (1916-1987), que ainda ocupava, ad personam, o cargo de assistente do trono papal. Quando o chefe da casa histórica pediu para ser recebido, a princesa avisou que ela estava ocupada. O Príncipe Colonna pediu uma audiência no dia seguinte ao mesmo tempo, mas a resposta da nobre foi a mesma. Enquanto o príncipe desistiu de bom grado, a Secretaria de Estado já pensava em novas iniciativas. Ele pediu uma audiência com Dom Andrea Lanza Cordero di Montezemolo, que havia sido sagrado arcebispo e nomeado núncio em Papua-Nova Guiné.

O prelado era filho do Coronel Giuseppe Cordero Lanza di Montezemolo (1901-1944), chefe da resistência monárquica em Roma, executado pelos alemães no massacre de Fosse Ardeatine. Durante a ocupação alemã, a jovem Princesa Elvina colaborou com ele, ganhando uma medalha de bronze por bravura militar. Eu também participei da entrevista, mas minha presença incomodou muito o futuro cardeal, que em vão apelou à memória de seu pai para evitar a próxima conferência. O núncio foi lembrado de que era precisamente a resistência de muitos soldados ao nacional-socialismo, [que sabiam] que às vezes era necessário desobedecer às ordens injustas dos superiores para respeitar os ditames da própria consciência.

A Secretaria de Estado deu o golpe final, dirigindo-se ao Rei da Itália exilado em Cascais, Umberto II. O Marquês Falcone Lucifero, ministro da Casa Real, telefonou à princesa para informá-la de que o Soberano estava implorando para que ela adiasse a conferência. “Estou maravilhada como Sua Majestade deixa-se intimidar pela Secretaria de Estado, depois de tudo o que o Vaticano tem feito contra a monarquia”, respondeu ela com firmeza, reiterando que a conferência seria realizada pontualmente na data fixada. O Marquês Lucifero, velho cavalheiro que era, enviou à princesa um buquê de rosas.

Nesse ponto, o Vaticano decidiu bater forte. Uma verdadeira campanha de ataque psicológico começou nos principais jornais italianos para apresentar a princesa como uma aristocrata teimosa, rodeada por indivíduos nostálgicos por um mundo fadado ao desaparecimento. Em privado, Dona Elvina foi informada de que ela seria excomungada caso a conferência fosse realizada.

No dia 30 de maio, em nota de imprensa à Ansa [principal agência italiana de notícias], a princesa especificou que “sua iniciativa não foi movida por qualquer intenção de desafiar a autoridade eclesiástica, mas sim pelo amor e fidelidade à Santa Igreja e seu Magistério”. “Os contrastes da Igreja conciliar” - acrescenta o comunicado - “infelizmente existem independentemente da pessoa de Dom Lefebvre e na Itália em uma medida não menos profunda, embora menos evidente, do que no resto do mundo católico. Com a conferência de 06 de junho, pretendemos oferecer a Dom Lefebvre a possibilidade de exprimir as suas teses de forma direta e em plena liberdade, precisamente para contribuir ao esclarecimento dos problemas que tanto perturbam e afligem o mundo católico, na certeza de que a paz e a serenidade só podem ser resgatadas por uma unidade redescoberta na verdade.”

Em 31 de maio, uma declaração do Príncipe Aspreno Colonna apareceu na primeira página do jornal Il Tempo na qual se lia que “o Patriciado Romano desassocia-se da iniciativa”, deplorando-a como “totalmente inadequada”. O tiro de canhão, porém, foi disparado em 05 de junho pelo Cardeal-vigário de Roma, Dom Ugo Poletti (1914-1997). Com uma dura declaração publicada no jornal dos bispos italianos, Avvenire, Dom Poletti atacou a Dom Lefebvre e “seus seguidores aberrantes”, chamando-os de “pequenos prisioneiros nostálgicos das tradições costumeiras”. Também expressou “espanto, e dor de coração, mas reprovação muito firme pela ofensa feita à Fé, à Igreja Católica e à sua Divina Cabeça, Jesus", tendo Dom Lefebvre questionado “verdades fundamentais, especialmente sobre a infalibilidade da Igreja Católica fundada em Pedro e seus sucessores, em matéria de doutrina e moral”.

A resposta veio imediatamente do quartel-general da princesa. “Não é possível compreender como a expressão privada de teses que foram [outrora] de todos os bispos do mundo até poucos anos atrás pode perturbar tanto a segurança de uma autoridade que tem a seu lado a força da continuidade doutrinária e evidências de suas posições.” A princesa declarou: “Sou uma católica apostólica romana mais do que convicta, porque alcancei o verdadeiro significado da Religião através do refinamento do sofrimento físico e moral: não devo nada a ninguém, não tenho honras ou prebendas a defender, e agradeço a Deus para tudo. Dentro dos limites que a Igreja me permite, posso discordar, posso falar, posso agir: devo falar e devo agir. Seria covardia se não o fizesse. Permita-me dizer que em nossa Casa [nobiliárquica, os Pallavacini], mesmo nesta geração, não há espaço para os covardes.”

O fatídico 06 de junho finalmente chegou. A conferência foi estritamente reservada a quatrocentos convidados, com um serviço de segurança assegurado pelos jovens da Alleanza Cattolica, mas foram mais de mil pessoas a lotar as escadas e o jardim do histórico palácio Rospigliosi-Pallavicini, famoso em todo o mundo por sua arte. Dom Lefebvre chegou acompanhado de seu jovem representante em Roma, o padre Emanuele du Chalard. A princesa Pallavicini foi encontrá-lo em uma cadeira de rodas, empurrada por sua dama de companhia Dona Elika Del Drago.

A Princesa Virginia Ruspoli, viúva de Marescotti, um dos dois príncipes heróis da batalha de El Alamein, doou a Dom Lefebvre uma relíquia de São Pio X que lhe foi dada pessoalmente por Pio XII. Embora o Grão-Priorado da Ordem de Malta em Roma tenha expressado "a necessidade imperiosa" de abster-se de participar da conferência, o Príncipe Sforza Ruspoli, o Conde Fabrizio Sarazani e algum outro bravo aristocrata desafiaram as censuras da instituição e estavam na primeira fila, ao lado do Mons. François Ducaud-Bourget (1897-1984), que em 27 de fevereiro liderou em Paris a ocupação da Igreja de Saint-Nicolas du Chardonnet. A Princesa Pallavicini apresentou Dom Lefebvre, que ocupou seu lugar sob o dossel vermelho com o brasão do Papa Clemente IX, Rospigliosi.

O Arcebispo, depois de ter se recolhido em oração, iniciou sua conferência com estas palavras: “Respeito a Santa Sé, respeito Roma. Se estou aqui é porque amo esta Roma católica”. A Roma católica com quem tratava interrompia frequentemente seu discurso com aplausos estrondosos. O salão estava lotado e as multidões aglomeravam-se nas escadas do palácio. O “Concílio do aggiornamento” – explicou Dom Lefebvre – na verdade quer uma nova definição da Igreja. Para ser “aberta” e estar em comunhão com todas as religiões, todas as ideologias, todas as culturas, a Igreja teria que mudar sua própria instituição hierárquica e dividir-se em muitas conferências episcopais nacionais.

Os sacramentos irão insistir na iniciação e na vida comunitária ao invés de afastar-se de Satanás e do pecado. O fio condutor da mudança será o ecumenismo. A prática do espírito missionário desaparecerá. Será enunciado o princípio “todo homem é cristão e não o sabe”, pois está em busca da salvação, seja qual for a religião que pratique. As mudanças litúrgicas e ecumênicas – continuou Dom Lefebvre no silêncio mais recolhido dos presentes – farão com que as vocações religiosas desapareçam e os seminários fiquem desertos. O princípio da “liberdade religiosa” soa ultrajante para a Igreja e para Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nada mais é do que “o direito à profissão pública de uma falsa religião sem ser perturbado por nenhuma autoridade humana”.

O Arcebispo Lefebvre discorreu sobre a rendição pós-conciliar ao comunismo [a chamada Ostpolitik], recordando as repetidas audiências da Santa Sé com os líderes comunistas; o acordo de não condenar o comunismo durante o Concílio; o tratamento desdenhoso reservado a mais de 450 bispos que pediram esta condenação. Pelo contrário, o diálogo com o comunismo foi encorajado pela nomeação de bispos pró-marxistas, como Dom Hélder Câmara no Brasil, Dom Silva Henríquez no Chile e Dom Méndez Arceo no México. É um fato – acrescentou Dom Lefebvre para concluir – que numerosos dominicanos e muitos jesuítas que professam heresias abertamente não são condenados e bispos que praticam a intercomunhão, que introduzem falsas religiões em suas dioceses e igrejas, que chegam a abençoar o concubinato, sequer são colocados sob investigação.

Só os católicos fiéis correm o risco de serem expulsos das igrejas, perseguidos, condenados. “Estou suspenso a divinis porque continuo a formar sacerdotes como eram formados antes.” Dirigindo-se a uma audiência comovida por suas palavras, Dom Lefebvre concluiu sua palestra dizendo: “Hoje, o compromisso mais sério de um católico é manter a Fé. Não é lícito obedecer a quem trabalha para reduzi-la ou fazê-la desaparecer. Com o batismo, pedimos Fé à Igreja, porque a Fé nos conduz à vida eterna. Continuaremos a pedir à Igreja por esta Fé até o último suspiro”.

O encontro foi encerrado com o canto do Salve Regina. O vaticanista Benny Lai comentou no La Nazione de 7 de junho: “Quem esperava um tribuno [oficial militar romano] viu-se diante de um homem de atitude serena, também capaz de concluir, antes de convidar os presentes a recitar o Salve Regina, com esta declaração: “Eu não quero formar grupo de nenhum tipo, não quero desobedecer ao Papa, mas ele não tem de me pedir para ser protestante ”.

A conferência foi uma vitória estratégica para aqueles que foram indevidamente definidos como tradicionalistas, porque Dom Marcel Lefebvre conseguiu tornar suas teses conhecidas internacionalmente sem consequências canônicas. Paulo VI morreu um ano depois, em choque com a morte de seu amigo Aldo Moro. O nome do Cardeal Poletti continua ligado à história obscura da nulla osta que concedeu em 10 de março de 1990 para o enterro, na Basílica de Santo Apolinário, do chefe da máfia Magliana, 'Renatino' De Pedis.

A Princesa Pallavicini foi a vencedora do “desafio”. Não somente ela não foi excomungada, mas nos anos seguintes seu palácio tornou-se em ponto de referência para muitos cardeais, bispos e intelectuais católicos. Ela e seus amigos romanos não eram “fantasmas do passado”, como os definiu o Corriere della Sera de 7 de junho de 1977, mas testemunhas da Fé Católica que preparavam o futuro. Quarenta anos depois, a história provou que eles estavam certos.

sábado, 17 de julho de 2021

A impressionante justeza da doutrina do P. Calderón com respeito ao CVII

                                                                                                Carlos Nougué 

Diante do CVII, erguem-se antes de tudo três posições mutuamente excludentes.

1) Como devemos dócil obediência ao magistério da Igreja, devemos igual obediência ao magistério conciliar e pós-conciliar; e, se as posições deste parecem heréticas, a culpa é de nosso frágil entendimento: na verdade, não fazem senão continuar o magistério de sempre. – É a hermenêutica da continuidade.

2) Como as posições do magistério conciliar e pós-conciliar são heréticas e rompem com o magistério infalível anterior de quase dois mil anos, não só não lhe devemos obediência alguma, senão que os papas deste magistério não são papas: porque um papa herético não pode ser papa. – É o sedevacantismo.

3) Como algumas posições do magistério conciliar e pós-conciliar rompem com a doutrina de sempre e outras não, só lhe devemos obediência quanto a estas, não quanto àquelas, que devemos criticar de algum modo. – É o tradicionalismo crítico.

Mas estas três posições encerram verdades e falsidades.

1) É verdade que as posições do magistério conciliar e pós-conciliar rompem, naquilo que lhes é próprio, com a doutrina de sempre; quando não o fazem, fazem quase sempre de modo que se dissimulem aquelas.

2) Mas também é verdade que não só Cristo prometeu assistência perpétua ao magistério da Igreja para que este não errasse em matéria de fé, de costumes e de coisas conexas, mas por isso mesmo devemos completa e dócil obediência a este magistério. Desse modo, escolher que posições do magistério se devem adotar ou criticar resulta de puro arbítrio e, em verdade, de mais ou menos consciente indocilidade ao magistério da Igreja.

3) Portanto, o único modo de conciliar estas duas coisas, a saber: o magistério autêntico da Igreja é assistido pelo Espírito Santo, razão por que não pode errar; e é evidente que o magistério conciliar e pós-conciliar incorre, naquilo que lhe é próprio, em desvio da fé – como na doutrina ecumenista, na da sã laicidade dos estados, na da liturgia humanista, etc. –, o único modo, digo, de conciliar estas duas coisas é reconhecer que o magistério conciliar e pós-conciliar, em vez de impor, depôs sua autoridade doutrinal, deixando de falar “em pessoa de Cristo” para falar, humanística e liberalmente, “em pessoa do Povo de Deus”. Salvam-se assim tanto o reconhecimento de que o Espírito Santo assiste o magistério da Igreja quando fala “em pessoa de Cristo” como a devida docilidade a este magistério. Mas esta não é uma solução arbitrária, para salvar, digamos, as aparências. É exatamente o que se deu no e após o Vaticano II, o que se pode comprovar abundantemente pelos próprios documentos deste magistério. Em outras e mais precisas palavras, isso é dito pelo próprio magistério conciliar e pós-conciliar.

Observação 1: lembro que, quando li A Candeia Debaixo do Alqueire, onde o P. Calderón escreve o que resumi acima, entrei em estado de exaltação intelectual: “Heureca!”, pensei, “este sacerdote finalmente resolveu o enigma da esfinge conciliar!”

Observação 2: mas então por que eu mesmo escrevi e lancei o livro Do Papa Herético? Para mostrar duas coisas que me pareceram não constar, ao menos de modo explícito, no livro do Padre. Primeira: se é, e de fato o é, como diz A Candeia..., então o magistério conciliar e pós-conciliar se reduz a magistério privado. (Resumo muito a coisa, porque com efeito há momentos – poucos – deste magistério em que ele reafirmou a doutrina de sempre, o que porém não fez senão como “momento dialético” ordenado à palavra última do Povo de Deus.) Segunda: como um papa incurso em desvio da fé rompe com aquilo para o que foi eleito, mas nem por isso perde o cargo (e são numerosas as afirmações do magistério de sempre com respeito a isto), então há que dizer que ele permanece papa, sim, mas com jurisdição precária (tudo o que, é claro, está detidamente demonstrado e explicado em meu livro).

sexta-feira, 16 de julho de 2021

“FRANCISCO NÃO SE EQUIVOCA”

Por Miguel Ángel Yáñez (12/7/2020) 

(in Adelante la Fe; tradução de Urlan Salgado de Barros)

Se fazemos uma leitura calma do Motu Proprio Traditionis Custodes, o chamado Anti-Summorum, há que reconhecer que, do ponto de vista de Francisco e da revolução conciliar, é absolutamente coerente e compreensível em seus juízos, justificações e medidas: não se equivoca, porque atrás da Missa tradicional há algo mais que uma sensibilidade, algo que os inquieta profundamente, e com razão.

A imposição do Novus Ordo não foi, como nos querem fazer crer desde o Summorum Pontificum, uma nova forma do rito romano que expressava a mesma fé de sempre, ainda que marcando os acentos de forma ligeiramente diferente.

A nova missa tem sido, e é, o aríete com que o modernismo destruiu as portas da antiga Fé para substituí-la por uma nova mediante o Lex Orandi, Lex Credendi; por algo os cardeais Otavianni e Bacci a definiram como “afastada em conjunto e em detalhe da teologia católica da Santa Missa”.

Parece-lhes exagerada esta afirmação? Contra factum non valet argumentum, contra fatos não há argumentos que valham: simplesmente façam uma simples visita a qualquer igreja cheia aos domingos e perguntem sobre dogmas de Fé, sobre o que é a Santa Missa, sobre a transubstanciação, sobre a moral sexual mais básica e em todas as ordens, e descobrirão que a grande maioria das pessoas e do clero – com batina ou sem batina – que há ali dentro mal conservam parcos vestígios da verdadeira Fé.

Compreender-se-á, pois, como a tentativa impossível de Bento XVI de tornar quadrado o círculo, querendo unificar duas supostas “formas” e, por sua vez, dissipar as dúvidas sobre o Vaticano II com sua absurda hermenêutica da continuidade – nunca demonstrada e nem sequer exposta sistematicamente –, não podia senão explodir em algum momento, porque não é possível, se não renunciamos à lógica e ao princípio de não contradição, sintetizar um suposto único rito romano bicéfalo com duas cabeças ontologicamente concebidas para se destruírem uma à outra, porque não é que cada uma expresse o mesmo com ligeiro acento diferente, senão que expressa exatamente o oposto da outra. Não pode haver síntese, enriquecimento nem paz litúrgica que valha entre um rito concebido para destruir a teologia católica da Santa Missa e outro concebido para engrandecê-la.

Não esqueçamos, como já expus num artigo anterior (https://adelantelafe.com/summorun-pontificum-y-la.../), que o Summorum Pontificum não é mais que o resultado de uma das condições das negociações que se deram com a Fraternidade São Pio X, as quais não frutificaram, ficando tudo como uma imensa “batata quente” nas mãos do Vaticano – “batata” que multidão de grupos vinha bicando até o dia de hoje.

Esta tensão inata ao monstro de duas cabeças criado por Bento XVI não só se percebe em nosso lado, senão que eles também o conhecem perfeitamente, e sabem que, assim como eles usam o Novus Ordo para destruir a fé de sempre, nós “usamos” a Missa Tradicional como muralha defensiva contra seu aríete, e que isto não é uma questão de sensibilidade, de gosto pelo incenso ou pelos “panos”, senão que há uma base firme e inevitável, uma emenda à totalidade de todo o modernismo surgido do, pelo e no Vaticano II, e imposto forte e violentamente por todos os papas pós-conciliares que agora “santificam” e “beatificam” a todo o transe.

O próprio Bento XVI era consciente disso quando impôs como condição para aproveitar-se dos benefícios do Summorum a condição sine qua non de não opor-se ao Novus Ordo, impondo assim de fato uma lei de silêncio que muitos lamentavelmente acolheram incautamente, querendo ser mais uns na grande orquestra conciliar da diversidade.

Francisco, pois, não fez mais que concluir esta condição, ao observar – com razão – que o que se move em torno da Missa tradicional não é somente uma sensibilidade especial pelo antigo, senão que é a ponta do iceberg de todo um exército que se opõe a tudo o que eles “construíram” ao longo 50 anos; e isto os aterroriza e lhes dói profundamente, razão por que não cabe outra coisa que destruí-lo. De alguma forma, este Motu Proprio esclarece e certifica o inconciliável entre os dois ritos.

Espero que isto sirva de lição para aprender que o combate pela Fé deve antepor-se até ao privilégio de ter a Missa tradicional, e que não há dádiva que possa fazer-nos calar, dissimular ou contemporizar com os destruidores da Igreja. Não será por estratégias humanas que se ganhará esta guerra, mas pela fidelidade ao depósito da Fé até ao preço de nosso sacrifício pessoal e espiritual.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

MILHÕES DE ESPÉCIES ANIMAIS NA ARCA DE NOÉ?

                               

                    Carlos Nougué

Isto de que há 8 milhões de espécies animais faz par com os milhões de anos de vida animal na terra – segundo, claro, os evolucionistas. O objetivo inicial da ampliação exorbitante do número de espécies animais era relegar à cloaca do mitológico a narrativa bíblica do dilúvio: com efeito, como milhões de espécies animais (excluídos os insetos e os peixes) poderiam entrar numa arca? Vou tratar tudo isto em livro, ampliando e aprofundando muito o que já disse sobre o assunto no livro Da Arte do Belo e no tratado de Biologia da Escola Tomista. Dou abaixo um resumo apertadíssimo.

1) O dilúvio foi antropologicamente mas não geograficamente universal. Com efeito, dizer que o dilúvio cobriu toda a terra é hoje lançar a fé ao escárnio dos ímpios. Mas negar que matou todos os homens menos os que estavam na arca tangencia o herético, pelo menos.

Observação: aliás, foi com grata surpresa que deparei com a obra do Padre Paul Robinson (da FSSPX dos EUA, atualmente) The Realist Guide to Religion and Science. Lendo-a por indicação de um amigo, vi que de fato são algo numerosos os pontos de coincidência entre o que pensa ele e o que penso eu acerca destes assuntos, muito especialmente acerca do dilúvio. O Padre também tem um ótimo blog: https://therealistguide.com/blog?blog=y.

2) O universo e a terra terem zilhões de anos não depõe contra a onipotência divina, senão que a ressalta ainda mais; e diga-se o mesmo da imensidão do universo.

3) O homem não pode estar na terra há mais de, digamos, 10 mil anos; se houvesse estado aqui desde há centenas de milhares de anos, tropeçaríamos hoje em multidão incalculável de ruínas de cidades.

Observação: segundo os cálculos da Vulgata, o homem estaria aqui há cerca de 6.000 anos. Mas este parece ser número simbólico (4.000 anos a.C.). Parece preferível ficar com a Septuaginta, segundo cujos cálculos estamos na terra há cerca de 7.500 anos.

4) Os vegetais podem estar na terra desde muito tempo antes do homem. Mas não assim os animais, ao menos os superiores, o que se mostra assinalando a fragilidade das espécies, que estão sempre em risco de extinção.

Observação: já desde quando ainda jovem – e ainda ateu – frequentei e concluí um curso universitário de Arqueologia descreio da precisão dos métodos radiométricos (de datação), e muito especialmente o de carbono-14. Tratarei detidamente também deste assunto no referido livro.

5) Os biólogos desde sempre confundem raça com espécie, mas a coisa se agravou, como disse, a partir do evolucionismo, o que permitiu a seus defensores chegar à fabulosa cifra de 8 milhões de espécies. Alguns poucos exemplos de seu erro: não há várias espécies de ursos, mas várias raças, o que se prova pelo fertilidade dos grolares (resultantes do cruzamento de urso-polar e de urso-pardo). Além disso, lobo, lobo-guará, lobo-cão, coiote, dino, cão, cachorro-do-mato, etc., também são raças diversas de uma só espécie: cruzam entre si e procriam criaturas férteis. Veja-se, aliás, no vídeo a que remete o link abaixo, como se relacionam com o homem os lobos em reservas especiais (e sem adestramento); e saiba-se que, se voltam ao estado selvagem, os cães domésticos tornam-se os chamados chimarrões: passam a viver em matilhas, fazem-se ferocíssimos, e tendem a uivar. E diga-se algo semelhante no âmbito dos felinos, etc., etc., etc., de modo que muito provavelmente nem sequer muitos dos enormes animais pré-históricos constituíam espécies à parte, mas eram membros das mesmas atuais espécies: tratar-se-ia de certos processos de “gigantismo” e de “nanismo” por fatores ambientais, hormonais, etc. – o que se vê, aliás, na própria espécie humana (do gigante nórdico ao pigmeu africano).

6) Aliás, nem sequer o fato de que do cruzamento de animais da mesma espécie (segundo o meu conceito de espécie) não nasça nada ou nasçam animais estéreis vai necessariamente contra o que digo, o que se prova pelo seguinte exemplo. Se durante gerações sucessivas procriam entre si indivíduos humanos portadores do gene da ELA (esclerose lateral amiotrófica), chegará o momento em que seus descendentes serão estéreis com respeito aos não portadores deste gene – sem contudo deixarem de ser da mesma espécie humana.

Etc.

Portanto, quanto a estes assuntos, até o lançamento de meu livro. 

https://www.youtube.com/watch?v=CMCWbF4HG3U                                                                               

domingo, 4 de julho de 2021

Observações sobre a influência do ocultismo no discurso católico tradicional (parte 3 de oito partes)

 Alistair McFadden

Tradução

Danilo Rehem

 

Parte III: A Metafísica Gnóstica da Cabala

O que é essa “velha fé primitiva” que, segundo os maçons, é o “fundamento de todas as religiões”? Todo o tratado de Albert Pike é a resposta maçônica a esta pergunta:

Todas as religiões verdadeiramente dogmáticas surgiram da Cabala e retornam a ela: tudo que é científico e grandioso nos sonhos religiosos de todos os illuminati, Jacob Bœhme, Swedenborg, Saint-Martin e outros, é emprestado da Cabala; todas as associações maçônicas devem a ele seus segredos e seus símbolos.

Só a Cabala consagra a aliança da Razão Universal e da Palavra Divina; estabelece, pelo contraponto de duas forças aparentemente opostas, o eterno equilíbrio do ser; só ela reconcilia Razão com Fé, Poder com Liberdade, Ciência com Mistério; tem as chaves do Presente, do Passado e do Futuro.

A Bíblia, com todas as alegorias que contém, expressa, de maneira incompleta e velada apenas, a ciência religiosa dos hebreus ...

A Cabala é a tradição primitiva… e nas Tradições Secretas da Cabala encontramos uma Teologia inteira, perfeita, única… É o Segredo do EQUILÍBRIO UNIVERSAL… entre o Bem e o Mal, e a Luz e as Trevas no mundo, que nos garante a nós que tudo é obra da Sabedoria Infinita e de um Amor Infinito ... “

A Cabala (como é mais comumente escrita) é uma tradição mística judaica esotérica de origem incerta. O Rabino Geoffrey W. Dennis, professor de Cabala na Universidade do Norte do Texas e autor de The Encyclopedia of Jewish Myth, Magic, and Mysticism, oferece a seguinte introdução aos seus princípios básicos e à sua prática através do site oficial da Union for Reform Judaism:

“A Kabbalah (também escrita Kabalah, Cabala, Qabal) – às vezes traduzida como ‘misticismo’ ou ‘conhecimento oculto’ – é uma parte da tradição judaica que lida com a essência de Deus ...

“Seus praticantes tendem a ver o Criador e a Criação como um continuum, em vez de entidades distintas, e desejam experimentar intimidade com Deus ... Dentro da alma de cada indivíduo está uma parte oculta de Deus que está esperando para ser revelada ... Assim, o cabalista Moses Cordovero escreve: ‘A essência da divindade é encontrada em cada coisa, nada além dela existe ... Ela existe em cada existente’.

Existem três dimensões em quase todas as formas de misticismo judaico, que provavelmente só serão compreendidas por um pequeno número de pessoas que possuem conhecimento especializado ou interesse no assunto:

O aspecto investigativo da Cabala envolve a busca da realidade oculta do universo em busca de conhecimento secreto sobre suas origens e sua organização – uma busca que é mais esotérica do que mística ...

A dimensão experiencial da Cabala envolve a busca real da experiência mística: um encontro direto, intuitivo e não mediado com uma Deidade próxima, mas oculta. Como Abraham Joshua Heschel escreveu, os místicos ‘... querem provar todo o trigo do espírito antes que seja moído pelas pedras de moinho da razão’. Os místicos buscam especificamente a experiência extática de Deus, não apenas o conhecimento sobre Deus ...

A dimensão prática da Cabala envolve rituais para ganhar e exercer poder para efetuar mudanças em nosso mundo e nos mundos celestiais além do nosso. Este poder é gerado pela execução dos mandamentos, convocação e controle de forças angélicas e demoníacas e, de outra forma, aproveitando as energias sobrenaturais presentes na Criação ... O verdadeiro mestre desta arte cumpre o potencial humano para ser um cocriador com Deus ...

Se tudo isso – o dualismo, o panteísmo, os segredos, a feitiçaria – atinge o leitor católico como distintamente impregnado da heresia gnóstica, ele não se engana. O filósofo israelense Gershom Scholem, o proeminente estudioso judeu moderno da Cabala, admite isso na Enciclopédia Judaica:

Desde o início de seu desenvolvimento, a Cabala abraçou um esoterismo muito semelhante ao espírito do gnosticismo, que não se restringia à instrução no caminho místico, mas também incluía ideias sobre cosmologia, angelologia e magia.”

Com base na bolsa de estudos de Scholem, o falecido professor Orlando Fedeli, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explica que, como os gnósticos, “a Cabala admite que existem dois princípios opostos em Deus: o do bem e o do mal ... [citando Scholem:] ‘Tudo o que é diabólico tem suas raízes em alguma parte do mistério de Deus’. “

O caráter inegavelmente gnóstico desse misticismo judaico é igualmente reconhecido por Joseph Dan, professor de Cabala da Universidade Hebraica de Jerusalém, que observou a apresentação pela Cabala “do universo como um campo de batalha entre poderes divinos satânicos e poderes divinos bons, traçando um paralelo mundo das divinas ‘emanações da esquerda’ que são os inimigos de Deus, mas eles são divinos no sentido pleno do termo ... A Cabala acredita fortemente que o destino dos poderes divinos é decidido pelas boas e más ações dos seres humanos, e que é tarefa do povo judeu ‘corrigir’ (tikkun) a incompletude da própria divindade “; isto é, unificando os opostos de Deus e Satanás, bem e mal, ser e não ser, ordem e caos.

Ai de vocês que chamam o mal de bem, e o bem de mal: que colocam as trevas por luz, e a luz por trevas; que consideram amargo por doce, e doce por amargo.” (Isaias 5:20) “Até quando vocês vão oscilar para um lado e para o outro? Se o Senhor é Deus, sigam-no; mas, se Baal é Deus, sigam-no.” (3 Reis 18:21) “Ninguém pode servir a dois senhores. Pois ou ele odiará um e amará o outro; ou se dedicará a um e desprezará o outro.” (Mateus 6:24) “Que parte tem a justiça com a injustiça? Ou que comunhão tem a luz com as trevas? E que concórdia tem Cristo com Belial? “ (2 Coríntios 6: 14-15) Estas são as perguntas bíblicas que eu colocaria não apenas para o maçom Pike e o judeu Dennis, mas para os autores católicos promovidos pela “principal editora de livros católicos tradicionais imaginativos e intelectualmente rigorosos”, Angelico Press: Valentin Tomberg, Prof Jean Borella, Roger Buck, Stratford Caldecott, Prof. Wolfgang Smith e Dr. Michael Martin, como também para aqueles outros católicos supostamente tradicionais de uma persuasão teológica semelhante (alguns dos quais encontraremos nas Partes IV e V).

Já vimos (na Parte I) que a Cabala é uma grande influência nas Meditações sobre o Tarô de Tomberg, em que, para citar apenas um exemplo, o leitor é informado de “que Jesus Cristo é a chave do mundo, e que o mundo – tal como era antes da queda e tal como será depois de sua reintegração – é a Palavra, e essa Palavra é Jesus Cristo ... “(p. 195). Nesta curta passagem estão contidas as duas mais fundamentais (e, creio, mais errôneas) doutrinas da Cabala: emanacionismo e apocatástase, que foram condenadas – e seus proponentes anatematizados – no Concílio Vaticano I [1] e no 2º Concílio de Constantinopla [2], respectivamente. Foram essas heresias gêmeas as que o notável Pe. Reginald Garrigou-Lagrange criticou quando escreveu seu famoso ensaio de 1946, “Para onde vai a Nova Teologia?“:

Autores como Téder e Papus, em sua explicação da ‘doutrina martinista’, ensinam um panteísmo místico e um neognosticismo pelo qual tudo vem de Deus por emanação (há então uma queda, um ‘mal cósmico’, um ‘ pecado original sui generis), e todos aspiram a ‘ser reintegrados’ na divindade, e ‘todos’ chegarão lá. Isso está em muitos trabalhos recentes de ocultistas sobre o ‘Cristo moderno’ e ‘plenitude em termos de luz astral’, ideias que não são da Igreja e que são inversões blasfemas porque são sempre a negação panteísta do verdadeiro sobrenatural, e muitas vezes até a negação da distinção do bem moral e do mal moral, a fim de permitir apenas o que é um bem útil ou desejado, incluindo o mal cósmico ou físico, que com a reintegração [isto é, apocatástase] de todos, sem exceção, vai desaparecer.”

O pensamento gnóstico-cabalístico do autor de Meditações é similarmente aparente em uma observação feita por seu amigo (ainda vivo), Dr. Martin Kriele, executor literário e herdeiro de Tomberg:

Ocasionalmente, ele [Tomberg] falava do mal em que via não apenas uma ‘falta de ser’, mas poderes muito reais, múltiplos e caóticos ... Para contrariar estes, havia a necessidade de um Esoterismo Cristão do Bem ‘branco’, o único que estava em alta para esta tarefa. Isso poderia revelar efeitos ‘mágicos’ se a vontade do homem estiver em perfeita harmonia com a vontade de Deus.”

Essas ideias, como diria o Pe. Garrigou-Lagrange, “não são de forma alguma as da Igreja”, porque toda a tradição da Igreja testemunha com Santo Tomás de Aquino que “a bondade e o ser [sic: o ente] são realmente a mesma coisa ... [Portanto,] nenhum ser [ente] pode ser chamado de mal, formalmente como ser [ente], mas apenas na medida em que lhe falta ser.” Afirmar que o mal tem ser é insistir em que Deus criou o mal e, portanto, Ele mesmo é em certa medida mau – o que, desnecessário dizer, é tanto uma blasfêmia no catolicismo quanto evidentemente um truísmo na Cabala: “Quando o Santo, bendito seja Ele, criou o mundo “, ensina o Zohar, o texto fundamental da Cabala, “... todas as coisas estavam contidas umas nas outras, a inclinação para o bem e a inclinação para o mal, direita e esquerda, Israel e as nações, branco e negro. Todas as coisas dependiam umas das outras”.

Nada disso, no entanto, impediu a “luz guiadora” da Angelico Press, o falecido Stratford Caldecott, de exaltar Valentin Tomberg como um profeta quase como Elias clamando no deserto de um catolicismo decrépito, como ele faz quando proclama por trás capa da edição revisada e atualizada da Angelico do magnum opus de Tomberg, “As Meditações sobre o Tarô mostram que o Cristianismo não se perdeu, mas vive e respira”. Além disso, dois dos livros de Caldecott – All Things Made New [3] e The Radiance of Being – fazem excursões frequentes à Cabala, em cujos textos obscuros, ele afirma, se pode encontrar “o anel da verdade”.

Um amigo e colega de Caldecott, Dr. Michael Martin, um católico bizantino que, em suas próprias palavras, “se inspira muito nas formas espiritualmente nutritivas do catolicismo ... na obra de Stratford Caldecott”, está igualmente apaixonado por Tomberg: “As Meditações sobre o Tarot têm sido uma fonte constante de renovação espiritual e de companheirismo", escreve ele, e defende a crença do autor na reencarnação (que ele considera “provavelmente verdadeira”) com base no fato de que, embora “alguns sugiram que a Bíblia não ensina a reencarnação, não acho que seja tão simples assim ... [porque] a cabala, um ensino místico judaico nascido da profunda contemplação das escrituras, propõe uma doutrina de sod ha-gilgul, ‘a revolução das almas’”. O Dr. Martin também se inspira no trabalho de outro “cristão esotérico”, Rudolf Steiner, cujas especulações metafísicas são semelhantemente cabalísticas:

Nos últimos anos, achei a concepção de Lúcifer e Ahriman de Rudolf Steiner muito útil para diagnosticar nossas próprias lutas com o Espírito da Idade. Embora eu discorde de Steiner em certos aspectos de sua cristologia ... acho que ele descobriu algo com Lúcifer e Ahriman.

Para Steiner, Lúcifer é o princípio (ou ser espiritual) que nos tenta com promessas de ‘liberdade’, o desejo de autoexpressão, individualização e uma criatividade absoluta. Ahriman, por outro lado, é o princípio (ou ser espiritual) que promete ordem e um tipo de eficiência tecnológica e corporativa que nos escraviza ao subumano, nos transforma efetivamente em máquinas. Entre essas duas polaridades, Steiner aponta para Cristo como aquele princípio que nos guia através dos perigos das promessas feitas por Lúcifer e Ahriman e nos ajuda a permanecer no real.”

Na postagem do blog citada acima – publicada no site da Angelico Press – vemos mais uma expressão do dualismo gnóstico no cerne da Cabala, que, na cristologia de Steiner, como na de Tomberg (e aparentemente também na de Martin), torna Nosso Senhor o “princípio” harmonizante no qual a ordem (Ahriman) e o caos (Lúcifer) encontram seu equilíbrio. Tal é a concórdia que Cristo tem com Belial; São Paulo tem sua resposta.

Mas, de todos os autores da Angelico, ninguém é devoto mais entusiasta da Cabala do que o Professor Wolfgang Smith. Em nenhum lugar isso é mais claramente evidenciado do que em sua correspondência escrita com o falecido Pe. Malachi Martin, compilada pela Angelico Press sob o título In Quest of Catholicity e comercializada como uma “fascinante troca de cartas entre dois celebrados católicos tradicionalistas...”:

Se eu fosse mais jovem, adoraria seguir seus passos para aprender hebraico e me aprofundar na literatura cabalística – sem, é claro, esquecer Jacob Boehme. Na verdade, parece-me que a Cabala, o hermetismo e a doutrina de nosso místico alemão dificilmente podem ser separados. Esses três legados parecem formar uma tradição subjacente, uma grande doutrina perene, que, como você diz, brota do próprio Cristo. O que Boehme fez foi expor essa doutrina mais abertamente e em termos francamente cristãos. Talvez, graças a ele, a Igreja Católica um dia faça sua a Cabala! E eu me pergunto se talvez seja com base nesta Cabala assimilada que a Igreja acabará por resolver o enigma das ‘religiões separadas’ e, ao fazer isso, realizará sua própria catolicidade autêntica e definitiva.”[4]

Jacob Boehme, é claro, era um herege luterano. Mas o fedor da heresia não parece de forma alguma desagradável ao Prof. Smith, que não será dissuadido de “engajamento” com o pensamento de Boehme, nem com os ensinamentos místicos censurados papalmente de Mestre Eckhart (ver Parte II), como lemos na sinopse de Christian Gnosis de Smith (publicado em conjunto por Sophia Perennis e Angelico Press):

Baseando-se em fontes cristãs – literalmente ‘de São Paulo a Mestre Eckhart’ – Wolfgang Smith formula o que chama de um relato ‘não expurgado’ da ‘gnose’ e demonstra seu lugar central na perfeição da vida centrada em Cristo ... O ‘fato da gnose’... tem uma influência decisiva sobre a noção teológica de’ creatio ex nihilo ‘... O que é assim exigido, ele afirma, é a noção inerentemente cabalística de uma ‘creatio ex Deo et in Deo’ [i.e., emanacionismo], não para substituir, mas para complementar a ‘creatio ex nihilo’. Isso leva a um engajamento com a Cabala Cristã (Pico de la Mirandola, Johann Reuchlin, e Cardeal Egidio di Viterbo especialmente) e com Jacob Boehme, culminando em uma exegese da doutrina de Mestre Eckhart. O autor argumenta, em primeiro lugar, que Eckhart não defende (como muitos pensaram) uma teologia de ‘Deus além de Deus’: em outras palavras, não mantém uma visão inerentemente sabelliana da Trindade. Smith afirma que Eckhart não transgrediu de fato um único dogma trinitário ou cristológico; o que ele nega implicitamente, ele mostra, não é outro senão a ‘creatio ex nihilo’, que na verdade Eckhart substitui pela ‘creatio ex Deo’ cabalística. Além disso, nesta mudança, Smith percebe a transição de ‘exotérico’ para ‘esotérico’ dentro do domínio integral da doutrina cristã.”

Por que razão é “exigida” a integração de “noções cabalísticas” na doutrina católica? Por que é tão desejável que a Igreja “faça sua a Cabala”? Acredito ter encontrado a resposta do Prof. Smith a essas perguntas, enterrada nas páginas de Sophia: The Journal of Traditional Studies:

“Existem níveis de significado tanto no Novo Testamento quanto [no Antigo] – que podem incluir o mais alto! – que provam ser acessíveis apenas por meios cabalísticos.”

Mas se é assim; e se, como diz São Jerônimo, “Ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo”; e se, além disso, como o Catecismo de Baltimore nos assegura, “Quando O conhecemos, devemos amá-Lo ..., [e] quanto melhor O conhecermos, mais O amaremos”; então por que é, me pergunto, que no desfile de “Cabalistas Cristãos” que vieram antes de nós – Pico della Mirandola, Johann Reuchlin, Giles de Viterbo, Francesco Giorgi, Paolo Riccio, Athanasius Kircher, e assim por diante – com toda a sua erudição mundana e “conhecimento” cabalisticamente inferido de Cristo, ninguém é reconhecido como um santo?

Continua na Parte IV: Cabala para Católicos? “Católicos hebreus” e seu cardeal ... [tradução no prelo]

Notas finais:

[1] “Se alguém disser que as coisas finitas, tanto corporais como espirituais, ou pelo menos espirituais, emanam da substância divina; ou que a essência divina, pela manifestação e evolução de si mesma se torna todas as coisas ou, finalmente, que Deus é um ser universal ou indefinido que por autodeterminação estabelece a totalidade das coisas distintas em gêneros, espécies e indivíduos: seja anátema. “ (FONTE)

[2] “Se alguém disser que todos os seres racionais um dia estarão unidos em um, quando as hipóstases, bem como os números e os corpos tiverem desaparecido, e que o conhecimento do mundo por vir levará consigo a ruína dos mundos, e a rejeição dos corpos como também a abolição de [todos] os nomes, e que haverá finalmente uma identidade do γνσις e da hipóstase; além disso, que nesta pretensa apocatástase, os espíritos só continuarão a existir, como era na pré-existência fingida: seja anátema “. (FONTE)

[3] “De uma forma que é erudita e, ainda assim, acessível, encontramos excursões para a Cabala ...” (FONTE)

[4] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76.