sexta-feira, 27 de abril de 2018

Quer-se um esporte reto e honrado? Cumpram-se os mandamentos


Carlos Nougué

Por ocasião da próxima Copa do Mundo, meditemos um pouco sobre o esporte. Sim, porque que fim ou fins buscam os homens quer com as várias modalidades de atletismo, quer com os diversos esportes coletivos?
Antes de tudo, relembre-se o que digo no livro Da Arte do Belo: a arte do belo ordena-se ou deve ordenar-se a alguns fins, adquirindo porém cada um desses fins caráter de intermediário ou de meio com relação ao fim último do homem. Tal caráter de intermediário ou de meio decorre de algo ineludível, assim expresso filosoficamente: é impossível à vontade humana apetecer mais de um fim último. (Para o perfeito entendimento do dito, leia-se Santo Tomás, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 1, a. 5, artigo intitulado, precisamente, “Pode um homem ter muitos fins últimos?”.)
Pois bem, algo semelhante sucede com o esporte: porque, como disse há mais de 50 anos o Papa Pio XII em Esporte e Ginástica, “tudo o que serve para a consecução de determinado fim deve extrair sua regra e sua medida de tal fim. Ora, o esporte e a ginástica têm como fim próximo educar, desenvolver e fortificar o corpo em seu aspecto estático e dinâmico; como fim mais remoto, a utilização, por parte da alma, do corpo assim preparado para o desenvolvimento da vida interior ou exterior da pessoa; também como fim mais profundo, contribuir para a sua perfeição; por último, como fim supremo do homem em geral e comum a toda e qualquer forma de atividade humana [grifo nosso], aproximar o homem de Deus”.
Estabelecidos assim os fins do esporte em geral, “segue-se que neles se deve aprovar tudo quanto serve para alcançar os fins indicados, naturalmente na ordem que lhes convém; deve-se rejeitar, pelo contrário, tudo quanto não conduz a tais fins, ou se afasta deles, ou sai do lugar que lhes é [devidamente] atribuído” (idem), exatamente, aliás, como no caso da arte do belo.
Não que o senso religioso e moral desconheça e rejeite o que é próprio do corpo (que é o fim próximo do esporte) ou a necessidade estética do homem (que é o fim próximo da arte do belo). Mas vai muito além e, ensinando a relacioná-los com a sua primeira origem, atribui-lhes “um caráter sagrado de que as ciências naturais e a arte não têm, de per si, nenhuma ideia” (idem).
Sim, porque Deus coroou a criação visível formando do barro o corpo humano e “inspirou-lhe na face”, prossegue Pio XII, “um sopro de vida que fez do corpo a habitação e o instrumento da alma, o que é o mesmo que dizer que, com isso, elevou a matéria ao serviço imediato do espírito” (idem). Estava preparado o corpo humano, portanto, para receber a dignidade de templo de Deus, “com aquelas prerrogativas, também superiores, que correspondem a um edifício a Ele consagrado” (idem), razão por que dizia o Apóstolo: “Glorificai e levai Deus no vosso corpo”, que “pertence ao Senhor” (ver Cor., VI, 13, 15, 19-20).
Por tudo isso, se é verdade que o esporte não deve temer de modo algum tais princípios religiosos e morais, é preciso, no entanto, excluir dele algumas coisas que se opõem ao que acaba de ser indicadotal como, analogamente, se deve fazer na arte do belo. É ainda do Papa a palavra: “A sã doutrina ensina a respeitar o corpo, mas não a estimá-lo mais que o devido. A máxima é esta: Cuidado do corpo, fortalecimento do corpo, sim; culto do corpo, divinização do corpo, não”, porque “o corpo não ocupa no homem o primeiro lugar, nem o corpo terreno e mortal, como é agora, nem o glorioso e espiritualizado, como será um dia. Ao corpo tirado do barro não cabe a primazia no composto humano, a qual corresponde ao espírito, à alma espiritual” (Pio XII, Esporte e Ginástica).
Além do mais, assim “como há uma ginástica e um esporte que com sua austeridade concorrem para refrear os instintos, assim também há formas de esporte que os despertam, quer com uma força violenta, quer com as seduções da sensualidade. Ainda do ponto de vista estético, com o prazer da beleza, com a admiração do ritmo na dança e na ginástica, o instinto pode inocular seu veneno nas almas. Há, além disso, no esporte e na ginástica, na rítmica e na dança, certo nudismo que não é necessário nem conveniente. Não sem razão [...] disse um observador totalmente imparcial: ‘O que interessa à massa neste campo não é a beleza do nu, mas o nu da beleza’. Diante de tal maneira de praticar a ginástica e o esporte, o senso religioso e moral põe seu veto” (idem), assim como o põe na arte do belo.
Mais ainda, na própria prática do esporte devem ou deveriam ser observados certos requisitos, como “franqueza, lealdade, cavalheirismo”, que excluem, “como a uma mácula infamante, o emprego da astúcia e do engano” (idem), devendo o bom nome e a honra do adversário ser tão queridos e respeitados como os próprios.
O fato evidente, porém, é que no mundo moderno o esporte (como a arte do belo) desatende a tudo quanto se disse acima. Mais que nunca, ele transformou-se em ídolo, e não raro em objeto supremo da vida. Mas, como a arte do belo, o esporte deveria “converter-se quase numa ascese de virtudes humanas e cristãs [...], por mais penoso que seja o esforço exigido, a fim de que o exercício do esporte se supere a si mesmo, consiga um de seus objetivos morais e seja preservado de desvios materialistas que rebaixariam seu valor e nobreza. Aí está resumido o que significa a fórmula: Quereis agir retamente na ginástica, no jogo, no esporte? Guardai os mandamentos em seu sentido objetivo, simples e preciso” (idem).
Ora, se o esporte não se converte em tal, mas antes em ídolo, é porque o mundo atual já se esqueceu culpavelmente do principal dos mandamentos do Decálogo: Eu sou o Senhor teu Deus, e tu não terás outro Deus além de mim, “nem sequer o próprio corpo nos exercícios físicos e no esporte’, o que representaria “quase uma volta ao paganismo” (idem).
Mais de cinquenta anos após o Papa Pio XII ter escrito isso, já se deu cabalmente tal volta ao paganismo. Mais que isso, porém: se o mundo pagão como que ansiava uma justiça e uma verdade que ele não podia alcançar por si mesmo, o mundo atual, neopagão, impugna a própria Verdade e Justiça, que, feita Carne, habitou entre nós.