segunda-feira, 23 de maio de 2022
quarta-feira, 18 de maio de 2022
“Smartphones e os meios de comunicação”, opúsculo do Padre Álvaro Calderón
A comunicação é assunto da maior importância para o ser humano, pois este é social por natureza. Sem comunicação não há família, nem sociedade, nem educação, e o homem não desenvolve sua personalidade.
E a comunicação é ainda mais importante para o cristão, porquanto Jesus
Cristo quer que entre Ele e seus fiéis haja uma união grande ao ponto de ser
semelhante à que há no seio da própria Santíssima Trindade: “E eu não rogo somente por eles (os Apóstolos), mas rogo também por aqueles que hão de crer em mim por meio da
sua palavra, para que sejam todos um, como tu, Pai, és em mim, e eu em ti, para
que também eles sejam um em nós, e creia o mundo que tu me enviaste”
(São João, 17). Daí se segue que aquilo que nos comunica e une com Deus seja
também aquilo que nos comunica e une com os demais homens: a caridade, o amor
divino, que tem ao mesmo tempo por objeto a Deus e ao próximo. Sem comunicação
não há Igreja nem salvação.
Por isso tem também fundamental importância o meio de comunicação. Sim, usamos propositadamente essa
expressão, já que tanto se fala hoje em “meios de comunicação”. Qual é o
principal meio de comunicação cristão? O principal meio de comunicação cristão
é a Eucaristia. Sempre os homens se uniram a Deus pelos
sacrifícios e se comunicaram entre si compartilhando uma refeição, e a
Eucaristia é ambas as coisas: Sacrifício divino e divina Refeição pela qual o
cristão se une a Deus e aos seus irmãos, tornando-se assim membro do Corpo
místico, cuja cabeça é Jesus Cristo.
A Eucaristia é o Sacramento da unidade
eclesiástica, o Meio que engendra, engrandece e fortalece a
sociedade divina que é a Igreja. Sinal puro e sensível, apto a ser compreendido
pelas mais simples inteligências sem que deixe de ser eficacíssimo, pois nas sagradas
espécies do pão e do vinho está presente o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo.
E a fim de explicar esse Sinal do amor divino, pelo qual Jesus Cristo se
entrega ao Pai como Vítima e se entrega a nós como Refeição, a Igreja engastou
a joia da dupla consagração na Liturgia da Santa Missa, pela qual somos
formados no verdadeiro catolicismo e da qual brota toda a riquíssima cultura
cristã. O meio de comunicação cristão é certamente a Eucaristia.
Mas também existem os meios de comunicação humanos, que na medida em que
não são usados de maneira cristã merecem ser chamados meios de comunicação mundanos, e estes se têm
aperfeiçoado de maneira assombrosa nos últimos tempos.
Esses meios se têm incorporado aos homens numa sociedade também universal
– é oportuno dizer – que constitui uma verdadeira anti-igreja, cuja cabeça invisível já podemos adivinhar
quem é: Satanás. E hoje o principal meio de comunicação é o smartphone (em inglês, que é a língua sagrada
da antiliturgia mundana), o telefone astuto que constitui
uma espécie de antieucaristia pela qual se
comunga nesta nova sociedade invertida. Isso é hoje, porque muito provavelmente
amanhã todos terão um chip no cérebro e o 666 na fronte. Esta é uma
sociedade antitradicional em que tudo
muda a uma velocidade cada vez maior.
Talvez tu sejas tão ingênuo que a exagerada oposição que pusemos entre o
celular e a Eucaristia te surpreenda. Por acaso não te dás conta de como esses
aparelhinhos cativam e encantam, arrancando-te da oração, da família e da boa
amizade? Quantas vezes não se interrompe uma conversa por causa da matreira
vozinha do celular! Ou não se vê uma pessoa olhando para o vazio enquanto fala
durante uma reunião! Não é à toa que se pede que se desliguem os celulares ao
entrar na igreja: eles são contrários a Nosso Senhor. E o são muito mais do que
geralmente se está disposto a reconhecer.
Os meios de comunicação e a revolução anticristã
É muito clara a ligação entre o progresso dos meios de comunicação e o
avanço da revolução anticristã. O processo que vivemos
começa em 1300 com o mal chamado Renascimento humanista,
quando tantos cristãos deixaram de pôr Deus no centro de suas vidas e começaram
a pôr-se a si mesmos. Mas é um fato histórico reconhecido que esse movimento de
antropocentrismo foi determinantemente influenciado pela invenção do papel e da
imprensa, e do consequente barateamento dos livros. Os homens cultos já não
quiseram ter como mestres os sacerdotes e os teólogos, pois preferiram acessar
as fontes de sabedoria por si mesmos: a Bíblia e os filósofos antigos.
Dois séculos depois, em 1500, a propagação de traduções da Bíblia e de
livros fáceis de autodeclarados teólogos provocou a mal chamada Reforma protestante (os nomes dessa história foram
dados pelos revolucionários), a qual jamais poderia ter acontecido sem o
progresso dos sistemas de fabricação de papel e de impressão dos escritos. Da
mesma maneira, mas ainda mais intensa, foi o caso da Revolução francesa, que se deu
no início do século XVIII (agora os historiadores começaram a chamar as coisas
pelo seu nome, embora os bons franceses não gostem do adjetivo). Ela foi
possível por causa de uma inundação de revistas e folhetins muito simples que
denegriam a ordem cristã sem o cuidado argumentativo que tomavam os heresiarcas
luteranos. Observe-se que, quanto maior a pujança do meio
de comunicação, maior a pobreza do conteúdo comunicado.
Dois séculos depois e chegamos, no século XX, ao Concílio Vaticano II, onde
a revolução modernista contagiou a própria hierarquia da Igreja. Pois bem, este
foi o Concílio dos jornalistas, pois foi nele que os padres
conciliares prestaram mais atenção aos jornais que ao Espírito Santo. É um fato
patente que a reforma conciliar – que não é outra coisa que uma infecção de
revolução anticristã na Igreja – não teria sido possível sem os modernos meios
de comunicação: as impressoras rotativas, que vomitavam todos os dias milhões
de jornais; o rádio, que aturde com seu incansável palavreado; e a televisão,
que com sua vertigem enlouquece a imaginação. Os jornais bateram à porta, o
rádio entrou em casa, e a televisão assentou-se de frente para a mesa familiar.
Os católicos então não puderam mais pensar.
No entanto, os meios de comunicação que temos à disposição hoje são
imensamente mais poderosos, e não estão em casa, pois já se meteram em nossos bolsos!
Hoje não somente se têm as bibliotecas do mundo no celular mas todos estão
chamados a ser autores; hoje não somente se ouve a incessante voz do rádio mas
todos são instigados a tornar-se emissoras que falam sem parar; e não somente
se abre estupidamente a boca diante do programa de televisão mas todos agora
são convidados a atuar. Se deixamos a ingenuidade, o que hoje se pode esperar
que ocorra quando vemos os poderosíssimos instrumentos à disposição de Satanás
para possuir a mente dos homens?
As oito desventuranças do smartphone
Nós, os sacerdotes, não deixamos de assombrar-nos com os multifacetados
danos produzidos por esses aparelhos endiabrados. Assombrados e atemorizados de
fato, e, se não estamos horrorizados como deveríamos, é porque pouco a pouco
acabamos por acostumar-nos com a situação. Tentamos fazer uma lista de males,
daqueles que às vezes são tão graves que é inconveniente descrever, mas
acreditamos que precisamos ser suficientemente claros.
Desventurança da
impureza
Leva-se no bolso uma ampla biblioaudiovideoteca com uma seção quase
infinita de pornografia, e para acessá-la não é preciso passar a vergonha de
entrar na fila de um cinema de má fama, nem mostrar a triste cara na banca de
jornal, que vive de enriquecer à custa da miséria alheia; basta apenas apertar
um discreto botão. Vive-se em perpétua ocasião com um saco de gasolina suja na
mão, pronta para explodir com a primeira fagulha de tentação. Quanta virtude é
preciso ter para nunca acabar por incendiar-se?
Desventurança da
indecência
No homem se dá mais a tentação de ver; na mulher a de ser vista. Que a
vejam mas não a toquem. E, em seu orgulho, a jovenzinha quer ser vista sem que
se note que se mostra, como que por surpresa. Pois bem, a tela oferece a
maneira mais gradual e mais medida de nutrir a vaidade e enfraquecer o pudor,
porque permite manejar sua imagem e aparecer defendida por uma barreira de
proteção. Ainda há aqueles que se escandalizam com a podridão dos reality shows, e não se dão conta de que, com os
milhões de filmadoras que registram a todo momento, a sociedade moderna inteira
se está mostrando da mesma maneira. Papais tranquilos quando o namoradinho tem
uma janelinha aberta para entrar no quarto de sua filha.
Desventurança da
sedução
O sedutor tem à sua disposição o melhor meio para ter acesso à sua presa. A
jovenzinha tem o cuidado de não falar com qualquer homem, mas quem resiste a
ler uma mensagem?! Ninguém deixa que qualquer pessoa se aproxime de sua filha e
sussurre ao ouvido dela – ou do esposo, ou da esposa –, mas o celular consegue
fazer isso. Pior ainda são as conversas anônimas, porque é sedutor lidar com o
perverso ou a prostituta, assim como Eva foi atraída pela ciência do bem e do
mal. E os aparelhos permitem entrar nesses infernos com a aparente segurança de
poder sair instantaneamente com um movimento do dedo. Mas a cada momento que
ali está cativa, como o ratinho hipnotizado pela serpente, a jovem caminha
rumo à casa de seu estrangulador.
Desventurança da
cobiça
O desejo das coisas cresce ao infinito. O cartão de crédito já era uma
ocasião de gastos imoderados que poucos podem controlar, de modo que era
preciso segurar em casa os compradores compulsivos. Mas agora já não é
necessário passear no shopping, pois o
celular é uma vitrine de tudo o que se vende no universo, tudo pronto para ser
comprado em parcelas com um clique. E há também os gastos em telecomunicação.
Pobres católicos tradicionais com muitos filhos: como fazem para pagar a conta
de celular de cada um? Antes as crianças mendigavam uma moeda para as
guloseimas ou para as figurinhas do álbum; agora é para carregar o celular.
Desventurança da
irrealidade
O ser humano, por sua própria natureza, sempre sofreu o conflito entre
aparência e realidade, porque os rostos nem sempre manifestam o que acontece na
alma, e quase todos cobrem sua personalidade real com a máscara de uma
personalidade artificial. Como é difícil conhecer até o próprio irmão! Mas
agora, neste cenário virtual em que toda a sociedade inteira está encenando,
este problema foi elevado ao nível de verdadeira loucura coletiva, de uma
toxicodependência em massa, ou, pior, de certa possessão diabólica social. Se
examinarmos bem, concluímos que não há exagero aqui. A sofisticada aparência
virtual cria ilusões muito difíceis de dissipar. Hoje, até nossos bons fiéis
creem ter amizade virtual, apostolado virtual, caridade virtual, e a distância
que se toma do real pode ser imensa (advertimos, não condenamos). Um triste
dado confidencial: temos certeza de que grande parte dos sacerdotes que nos
últimos tempos deixaram a Fraternidade foi por se terem deixado enganar por uma
ilusória fraternidade virtual. E se isso nos acontece a nós, em nossa família
sacerdotal, não menos se passa convosco, queridos fiéis, em vossas próprias
famílias. Ou não?
Desventurança da
irreflexão
Já observamos que, quando cresce o meio, diminui o pensamento. Aquele que
lê pouco pensa muito, e aquele que lê muito pensa pouco (entenda-se que não
estamos contra o hábito da boa leitura!). E, se a letra esgota o espírito,
quanto mais a imagem sonora em movimento! Hoje se têm mil cinemas abertos no
bolso, se mantêm mil conversas, e mil notícias ao vivo bombardeiam o cérebro.
Não sobra um segundo de contemplação nem de pensamento. A ebulição da atividade
imaginativa torna-se obsessiva e tende a anular toda atividade propriamente
intelectual. Não se dá de outra maneira a possessão demoníaca.
Desventurança da
charlatanice
Há aqueles que querem ter uma vida intelectual e descobrem o ambiente
universitário virtual. Mas à irrealidade que padece soma-se outro pecado: o
desconhecimento da autoridade. Não importa quem sabe; todo o mundo tem direito
de ensinar. É como uma imensa praça, a Ágora da nova Atenas, onde qualquer pessoa
instaura sua cátedra. Centenas de milhares falam e milhões escutam (porquanto
não há blog que não tenha visitas), mas não se ensina nem se aprende
nada, pois as verdades que são ditas acabam por ser desperdiçadas num oceano de
ninharias e já ninguém acredita em nada.
Desventurança da
liberdade
A internet é o ilusório triunfo da liberdade de expressão. Escutamos isso
até de um sacerdote: “Os jornais e a televisão estão dominados, mas
pela internet podemos falar”. Que falsa ilusão! O inimigo do homem
sabe perder dez para ganhar um milhão. Deixem que diga o que quiser o padreco
tradicional, que a única coisa de que me vou encarregar é pôr simultaneamente
outras mil pessoas falando a favor e contra a Tradição. Vão todos à Ágora de
Atenas para conhecer a verdade!
Terminamos aqui,
mas todos sabem perfeitamente que a lista dos males poderia alongar-se muito
mais.
Se nossa justiça não é melhor…
Nossas queridas famílias vivem, neste ponto, certa hipocrisia farisaica de
que não estamos totalmente isentos os sacerdotes. O apego aos celulares é tão
grande, e os males que traz são tão vergonhosos, que aquilo que seguramente se
reconhece nos confessionários nem é mencionado na mesa familiar e é de difícil
trato no púlpito. Mas Nosso Senhor nos adverte: “Se vossa justiça não for maior
que a dos escribas e que a dos fariseus, não entrareis no reino dos céus”
(São Mateus, 5). Não façamos igual ao avestruz, que fecha os olhos diante do
mal que sofre. Se a imprensa deu lugar à reforma protestante, se o rádio e a
televisão permitiram a revolução conciliar, que nova etapa nos preparam a
internet e o smartphone? É preciso fazer algo.
É verdade que a atitude católica ante o mundo e suas coisas não é a de
separação material, como no Antigo Testamento ou como fazem hoje os menonitas.
Nosso Senhor disse: “Não peço que vos tireis do mundo, mas que vos
guardeis do mal” (São João, 17, 15). Os santos imprimiram livros e
folhetos, e hoje utilizarão aparelhos, porque o mal não está nos circuitos
eletrônicos, mas no uso que se faz deles. Trata-se de usar das coisas deste
mundo com virtude cristã, tomando o que é bom e deixando o que é mau. Não é
solução universal pretender não usar nunca um computador ou um celular; este é
remédio material que geralmente termina pior. Mas também é muito católica a
humildade de saber-se inclinado ao mal pelo pecado original. Temos pouca
virtude, e por causa disso não precisamos propor-nos a condutas que só podem
sustentar-se com virtude heroica. Necessitamos apartar-nos o quanto possível
das ocasiões de pecado, e isso é que é o celular.
O que fazer? Não a todos convém a mesma coisa, nem todos são capazes das
mesmas coisas, razão por que pode ser até contraproducente dar receitas
universais:
• A posse de um celular traz uma falsa sensação de segurança, e acaba que te
assaltam para roubar o aparelho: confia mais no anjo da guarda, que não é
virtual.
• Quando for preciso usá-lo, convém não ter celulares pessoais, mas apenas
familiares, que são usados apenas quando necessário.
• Não usá-lo em casa, mas apenas quando sair; e deixá-lo na entrada, como
se deixam os guarda-chuvas.
• Impedir a conexão wi-fi em casa.
Ah! Para que seguir esses conselhos, se nada bastará se não se odeia a fonte de tanto mal?! É preciso falar mal dele, difamá-lo merecidamente, lutar contra o feitiço sob o qual ele nos mantém. Eucaristia ou smartphone. Aquela atrai para o alto, este puxa para baixo: é verdadeira a oposição. Se não o desligarmos, perderemos a Nosso Senhor!
__________________
Publicado na
revista Iesus Christus, n.º 155, no penúltimo trimestre de 2016.
sábado, 14 de maio de 2022
segunda-feira, 9 de maio de 2022
segunda-feira, 2 de maio de 2022
domingo, 10 de abril de 2022
A radical diferença entre a teologia moral de Santo Tomás de Aquino e a teologia moral de Santo Afonso de Ligório
Carlos Nougué
domingo, 27 de março de 2022
sábado, 26 de março de 2022
O neotomismo, suas grandezas, suas misérias
Carlos Nougué
1) Como pus no opúsculo “A questão dos
jesuítas”, não se deve idealizar nada na história da Igreja militante. À parte o
Novo Testamento e o magistério autêntico da Igreja enquanto tal, ou seja,
enquanto doutrina, tudo o mais tem mescla de verdade e de erro, ainda que em
graus muitíssimo variáveis; no caso dos santos, ademais, não há erro algum quanto
à fé. Aplique-se pois o dito também ao neotomismo, que no entanto suscita ou
oposições virulentas ou defesas apaixonadas.
2) Neotomismo é a ampla corrente suscitada
pela encíclica de Leão XIII Aeterni Patris, que exigia o retorno do
tomismo como a doutrina filosófico-teológica da Igreja. (Já iniciara de certo
modo tal movimento o Papa Pio IX, e lhe darão prosseguimento todos os papas até
Pio XII, inclusive). É que, praticamente esquecido ao cabo de séculos de
revolução religiosa, política e ideológica, o tomismo era o único antídoto contra
a imensa infiltração de racionalismo, de subjetivismo e de liberalismo nas
fileiras da Igreja. Mas não se pode considerar o neotomismo uma corrente
homogênea, longe disso; seus únicos traços perfeitamente comuns são o bravo atendimento da convocação papal ao retorno do tomismo e, ainda que muito desigualmente,
o combate ao modernismo.
Observação:
falando propriamente, o neotomismo termina com o Concílio Vaticano II, quando
se interromperam bruscamente os progressos que, como se verá abaixo, o
neotomismo vinha experimentando em meio a suas mesmas debilidades.
3) Em sua talvez inclassificável variedade,
o neotomismo tem grandezas (inegáveis e próprias) e misérias (caudatárias de
alguma maneira das do tomismo anterior) que se podem, grosso modo, reunir em cinco
campos principais: a lógica, a física, a metafísica, a teologia sagrada especulativa,
e a política teológica.
a) No da lógica,
temos por um lado a continuidade do erro do Cardeal Caetano quanto à analogia
de atribuição intrínseca (assumido especialmente por Jacques Maritain e pelo
Padre Maurício Teixeira-Leite Penido, mas refutado por Santiago Ramírez O.P.) e
por outro lado a continuidade dos erros de João de Santo Tomás resultantes de seguir
o defeituosíssimo opúsculo Summa totius Logicae Aristotelis por
julgá-lo da pena de Santo Tomás (o que se acusa mais formalmente na Lógica
Menor de Jacques Maritain, nos Elementa
Philosophiae aristotelico-thomisticae de Iosepho
Gredt O.S.B. e no Tratado
de Filosofia: Lógica e Cosmologia
de Régis Jolivet, ainda que neste último haja ainda certo diálogo com a
filosofia moderna; mas também, ainda que em grau muito menor, na Logica
de Édouard Hugon O.P., um tomista que sempre buscou sinceramente ser fiel ao
Mestre). Temos no entanto o imenso progresso de Santiago Ramírez O.P. no âmbito
da analogia: com efeito, seu volumosíssimo De analogia é o estudo mais
cabal e mais perfeito sobre o tema; sistematiza o que Santo Tomás deixou disperso
e/ou apenas incoado.
b) No da física
(ou seja, no de todas as ciências naturais), nenhuma contribuição de nota deu o
neotomismo. O único mérito de alguns foi repetir a magnífica física geral de
João de Santo Tomás , repetindo igualmente, porém, ou aprofundando sua
incapacidade de assimilar criticamente as descobertas feitas pela ciência
moderna (além de sua imprecisa concepção de causa final, ou seja, não como id cuius causa aliquid fit). Ao contrário, aliás, de assimilá-los criticamente, o neotomismo em geral oscilou entre sua
rejeição pura e simples e a adesão pura e simples a elas. É o caso de um Jacques
Maritain, que foi capaz de, ele mesmo, fazer ambas as coisas contraditoriamente
(cf. para isto os Umbrales de la Filosofía,
do Padre Álvaro Calderón); ou de um Régis Jolivet, que, menos talentoso mas mais
franco, simplesmente aderiu a eles acriticamente. Mas, repita-se, todos os neotomistas se mostraram de
algum modo afetados dessa incapacidade (vide, por exemplo, o caso de Garrigou-Lagrange O.P. referido
pelo Padre Calderón em El orden sobrenatural).
c) No da
metafísica, a descrição e a análise dos erros e acertos do neotomismo requereriam
dois ou mais grossos volumes inteiros.
• Diga-se,
contudo, que quanto à distinção real entre essência e ser – o eixo da doutrina
de Santo Tomás – os neotomistas dividem-se em três correntes: duas falsas, a
essencialista e a existencialista, e a verdadeira, a do Padre Cornelio Fabro.
Ambas as falsas pecam por entitatismo ou fisicismo, ou seja, o considerar que a
essência e o ser são não coprincípios – como de fato o são –, mas como que entes
eles mesmos. A essencialista – caudatária do avicenismo e, de certo modo, do
Santo Tomás jovem, além de predominante no neotomismo – privilegia a essência
em detrimento do ser; como que a “desencarna” e “substancializa”, com o que se aproxima
de algum modo do platonismo. A existencialista, cujo expoente é Étienne Gilson,
apesar de acusar corretamente o erro essencialista, incorre no erro oposto, e acaba
por fazer concessões ao existencialismo ambiente. Ademais, como aliás de algum
modo a mesma corrente essencialista, e na esteira agora do Cardeal Caetano, confunde
ser e existência, incapaz de entender que o ser é o ato de ser,
enquanto a existência
é o ser em ato ou fato de ser. Por isso é que quase todos
os neotomistas, como muito por exemplo Garrigou-Lagrange O.P., escrevem em
latim esse (= ser), mas em suas línguas nacionais existência. O único, repita-se, que acerta perfeitamente
quanto à distinção real entre essência e ser é o Padre Cornelio Fabro. Infelizmente,
todavia, não consegue ele aplicar devida e analogicamente esta distinção ao intelecto
e à vontade (cf. para isto El orden sobrenatural,
do Padre Calderón), e, pior, para o fim da vida, acaba por tornar-se um voluntarista
um pouco ao modo de Duns Scot.
• Além disso, em várias
obras diz Garrigou-Lagrange O.P. que o “princípio de identidade” é o primeiro
dos primeiros princípios; e ele certamente não foi o primeiro neotomista a
dizê-lo. Por outro lado, em sua A Essência do Tomismo, Manser O.P. põe o “princípio da razão
suficiente” entre os primeiros princípios. Mas nada disso é de Aristóteles nem
de Tomás de Aquino: ambas as coisas são de Leibniz. Não que por serem de
Leibniz sejam erradas; mas o fato é que também nisso errou Leibniz. O “princípio
de identidade” (“todo ser é o que é”) responde ao matematicismo
cartesiano-leibniziano, e corresponde à famosa e vácua fórmula 1 = 1 ou,
algebricamente, A = A. Aí está um modo de ser profundo sem dizer absolutamente
nada. Quanto todavia ao “princípio da razão suficiente” (“nada existe sem razão
suficiente”), responde ao idealismo de Leibniz: Deus conhecia todos os mundos
possíveis, mas, como por sua sabedoria não podia agir sem razão suficiente, de
todos os mundos possíveis só fez o melhor. É o chamado “otimismo” leibniziano,
o núcleo de sua teodiceia. Mas Tomás de Aquino demonstra na Suma Teológica que Deus poderia ter criado outro e melhor mundo, ainda
que nenhum mundo que Deus criasse pudesse ser inconveniente.
• Quanto contudo
ao “constitutivo formal” da essência divina, e segundo no-lo mostra Garrigou-Lagrange
O.P. em De Deo Uno (in
Commentarium in Primam Partem S. Thomae),
parte dos neotomistas segue o tomismo espúrio de João de Santo Tomás, dos
Salmanticenses, de Billuart, de Gonet e de outros, parte segue o tomismo
autêntico de Capréolo, de Báñez, de Ledesma e de outros, como é o caso de Norberto
del Prado O.P. e do Cardeal Billot S.J., jesuíta que tentou fazer-se perfeito tomista
por perfeita docilidade ao magistério da Igreja.
• Quanto ademais
à ordem das disciplinas e quanto ao caráter mesmo da metafísica, predominou no
neotomismo o mais perfeito antiaristotelismo-tomismo, como se pode ver
emblematicamente nos quatro tomos dos Elementos de
Filosofia de D. Thiago Sinibaldi (onde a metafísica, de todo
integral que é, se torna todo universal por sua espúria divisão em ontologia e teodiceia,
por certa influência remota de Leibniz).
• E fico por
aqui, sob pena de não terminar este opúsculo.
d) No da
teologia sagrada especulativa, destaca-se boa parte do neotomismo por seu valente
e árduo combate ao modernismo. Por vezes, como no caso da dupla Charles Journet
O.P. e Jacques Maritain, é combate antes aparente, o que porém melhor se vê no
campo da política teológica. Mas absolutamente não há negar a importância, muito
por exemplo, de um Garrigou-Lagrange O.P. para a redação por Pio XII da
Encíclica Humani generis,
ou a perfeição tomista do Cardeal Ottaviani na redação dos esquemas
preparatórios do Vaticano II (excluída, como se verá no próximo ponto, a parte
referente às relações entre estado e Igreja). Nada disso no entanto deve calar o
fato de que os defeitos metafísicos do neotomismo tiveram lá seus reflexos na
teologia sagrada especulativa do mesmo neotomismo, nem sobretudo, como já se
verá, o fato de que quase como um todo o neotomismo falhou lamentavelmente no
campo da política teológica.
e) Com efeito, é
no terreno da política teológica (que faz parte da teologia sagrada enquanto
prática) que o neotomismo se mostrou incapaz de fazer frente ao modernismo por
incompreensão da doutrina magisterial e tomista da realeza social de Cristo
(ou, o que é o mesmo, da doutrina dos dois gládios ou da subordinação essencial
do poder temporal ao poder espiritual). Como diria o Padre Calderón, o neotomismo
foi neste campo um “muro com brechas”. Isto porém só em parte do neotomismo,
porque outra parte sua não só se aliou mas até liderou o modernismo no
destronamento de Nosso Senhor Jesus Cristo. (A decadência começara no século
XVI com o nominalismo que se cria tomista de Francisco de Vitoria O.P. e
prosseguira com ecletismo de Francisco Suárez S.J., o introdutor nas escolas
católicas de uma noção análoga à da vontade geral de Jean-Jacques Rousseau. Dessa decadência
só não participara de modo algum o Cardeal Pie de Poitiers, a quem se deve
tributar essencialmente o lema do pontificado de São Pio X: Instaurar tudo
em Cristo.) Arrolem-se quanto a isto os principais neotomistas,
dentro, claro, das estreitas medidas de um opúsculo como este.
• O Padre Garrigou-Lagrange
O.P. foi o inventor da infausta distinção entre indivíduo e pessoa que fundará
o humanismo integral de Jacques Maritain. Como se lê em Crítica de la concepción de Maritain sobre la persona humana,
do Padre tomista Julio Meinvielle,
este convenceu a Garrigou-Lagrange de que tal distinção era equivocada. Nem
assim, contudo, talvez por respeito humano, o dominicano fez autocrítica
pública de seu erro. Se o tivesse feito, talvez Maritain não tivesse alcançado
a ascendência que alcançou entre os católicos, e talvez a hierarquia da Igreja
não tivesse tomado os rumos mesmos que tomou na segunda metade do século XX.
Talvez.
• Jacques Maritain, o corruptor-mor do tomismo no século XX, é o criador
do autointitulado “humanismo integral” e da heterodoxa noção política de Reino de Deus que sairá
vitoriosa no CVII. Para aprofundamento disso, cf. Padre Álvaro Calderón, El Reino de Dios – la Iglesia y el orden político; e Carlos Nougué, “Corte e costura
humanista”, in Estudos Tomistas – opúsculos II, e “O Reino de Deus no humanismo integral”, podcast
no Youtube.
• Charles Journet O.P., o parceiro de Maritain feito cardeal por Paulo VI, foi o mais perigoso dos corruptores do tomismo e em especial da doutrina da
realeza social de Cristo, justo porque era o que melhor sabia apresentar-se com
roupagem e linguagem tomistas ortodoxas. Para o desmonte de suas sutis falácias
quanto à realeza social de Cristo, vide meu “Corte e costura humanista”, in Estudos Tomistas – opúsculos II.
• O Padre Mateo Liberatore S.J. foi um dos grandes combatentes do liberalismo
no final do século XIX e um dos principais fundadores do neotomismo. Sobre porém
o primeiro livro de seu La Chiesa e lo Stato, escreve o Padre Calderón num opúsculo (El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II) não publicado:
“Parece a Liberatore que ‘se o governante
político se persuadisse de que… seu objeto… é propriamente a salvação eterna das
almas e também a cristã honestidade dos costumes, quer dizer, a virtude enquanto
foi elevada pelo Evangelho à ordem sobrenatural… por isto mesmo se arrogaria o
direito de fazer leis em matéria religiosa, e pôr diretamente as mãos no que diz
respeito à fé e à moral’ (p. 106). Deve então o governante promover uma moral natural,
dispor seus súditos segundo as virtudes naturais adquiridas e não sobrenaturais
infusas? E como farão os indivíduos para crescer ao mesmo tempo segundo uma dupla
personalidade moral, uma segundo a fé e a outra segundo a simples razão? Em umas
mesas haverá que comer segundo a temperança filosófica, e em outras segundo a
temperança cristã. O importante é que o governante não se meta de modo algum em
matéria religiosa: ‘O poder político pelo advento do Cristianismo foi reduzido
a mais estreitos limites… porque, como sabiamente observa Suárez [!!], lhe foi inteiramente
tirada a ordem religiosa’ (p. 109). Que não apareça uma Isabel de Castela preocupada
em reformar os clérigos! – Não quereríamos ser injustos; o espírito de
Liberatore é excelente. Todo o seu segundo livro é dedicado a condenar
eficazmente o naturalismo político. Mas a herança doutrinal que recebeu está maculada
por um pecado original daquele, porque a distinção que denunciamos é a raiz do
mesmo naturalismo político combatido”.
• Louis Lachance O.P., por seu lado, escreve o volumoso L’humanisme politique [!!] de Saint Thomas para combater o humanismo integral de Maritain, mas acaba por dizer
essencialmente o mesmo que este com respeito às relações entre o poder temporal
e o poder espiritual.
• Santiago Ramírez O.P., o já referido gigante da lógica e da analogia,
padece os mesmíssimos defeitos que Lachance no campo da política teológica,
ainda que em menor grau e com uma finura especulativa incalculavelmente superior
à daquele. E escreve Calderón no referido opúsculo:
“Ramírez fala-nos de um Estado filosófico, como o de
Ottaviani, ao qual o máximo que se pode pedir é uma concordata com a Igreja. Mas,
assim que sejamos sinceros e reconheçamos a enorme dificuldade que tem a religião
de Cristo para convencer a quem quer que seja à base de pura apologética, resignar-nos-emos
a exigir no máximo a liberdade religiosa como um direito humano. O resto do livrinho
[de Ramírez, Doctrina política de Santo Tomás] é um bonito tratado de
virtudes cívicas e patriotismo, onde, numa Espanha que acaba de sofrer o martírio
numa verdadeira Cruzada, nunca, nunca se trata da realeza social de Cristo!”
• O Padre Julio Meinvielle foi talvez
um dos dois únicos neotomistas que brandiram, incansavelmente aliás, a doutrina
da realeza social de Cristo. Seu mérito é pois incalculável. Quanto porém a
isto mesmo, tropeça no segundo capítulo de De Lamennais a Maritain por
contágio da autoridade do Cardeal Billot.
• O outro campeão da realeza
social de Cristo foi o leigo Jean Ousset, o fundador do movimento La Cité
Catolique por estímulo de Pio XII e de D. Marcel Lefebvre. Seu livro Pour
qu’Il Règne (Para que Ele reine) é um primor, cujo único defeito, a meu
ver, é crer que forçosamente Cristo haveria de fazer o mundo recristianizar-se.
Abstraía, assim, o fato de que já se estava havia sete séculos no processo de
apostasia das nações, processo que é um dos sinais
dados por Nosso Senhor da proximidade do Anticristo e do fim dos tempos.
(Mas entenda-se proximidade como marcha.)
• A tal
ponto porém estava fendido o muro do antiliberalismo tomista no seio da Igreja, que nem
sequer o Cardeal Billot S.J. entendeu perfeitamente a doutrina magisterial e
tomista dos dois gládios ou realeza social de Cristo. Era tão frágil seu dique
antiliberal, que se opôs à condenação por Pio XI da Action Française de Charles
Maurras não por inoportuna – e teria tido então razão –, mas por ver naquele
movimento de caráter nada católico um verdadeiro aliado da Igreja. Onde ficava
para Billot a Quas primas de Pio XI? Nos dias da festa litúrgica de Cristo
Rei? Mas explica-se: como sempre o disse ele mesmo, o nosso grande Cardeal era
discípulo de seu irmão de religião Francisco Suárez quanto à política teológica.
• Quanto por fim ao também grande Cardeal Ottaviani, dou a palavra in extenso ao Padre Calderón (El Reino de Dios – la Iglesia y el orden político, p. 47-48):
“A
doutrina da ‘subordinação indireta’ é ambígua e necessita esclarecimento. Mas onde
não há ambiguidade mas erro é em adjudicar à ordem política um fim natural. Os
neoteólogos que prepararam o triunfo da liberdade religiosa no Concílio
Vaticano II se apoiaram nesse princípio, no qual não se pode deixar de reconhecer
certa coerência. E o grave do caso, ainda que não se explique de outra maneira,
é que os teólogos que deviam combatê-los negavam as consequências mas compartilhavam
o princípio. Pois bem, quando olhamos para trás, para de onde vem este erro, o fio
faz-se longo. Na exposição dessa tese, o Cardeal Ottaviani segue o Cardeal
Billot, e ambos declaram seguir o ensinamento de Francisco Suárez e de Francisco de Vitoria. E
a linha não acaba neles. Descobrimos na referida tese, numa comparação de mau gosto
mas a que não resistimos, a síndrome
de imunodeficiência antiliberal (não chegaremos ao extremo de usar sua sigla) que afetou a teologia
desde o início da crise da Cristandade no século XIV. Os teólogos da época moderna
caíram na tentação de afrouxar tensões entre os Papas e os governos cristãos com
esse recurso, e deixaram a Igreja sem anticorpos em face do liberalismo. É isto,
em síntese, o que mostraremos ao longo – bastante longo – de nosso estudo.
Como a relação de fins e autoridades da ordem eclesiástica e da ordem política
é assunto delicado, antes de empreender a tarefa é indispensável formar um
critério sadio acerca deste ponto de doutrina, o que só se pode conseguir voltando
a Santo Tomás. Convém também porque o momento em que Santo Tomás ensinou é,
historicamente, o ponto de inflexão na questão que estudamos. Do cume da doutrina
tomista poderemos compreender melhor o que veio progredindo a partir dos
Apóstolos, e o que decaiu até o Concílio Vaticano II.”
Observação final: a referida síndrome é causada pelo retrovírus do humanismo.
sexta-feira, 25 de março de 2022
Restrição mental ou mentira?
Carlos Nougué
Nota prévia. Se eu mesmo tiver dito em comentários de FB qualquer coisa que contradiga de qualquer modo o que direi aqui, seja anátema.
1) O oitavo Mandamento da Lei de Deus: “Não
levantarás falso testemunho”, proíbe-nos a atestação de falsidade em juízo, o
juízo temerário, a detração e a calúnia, a adulação, e todo tipo de mentira.
E diz o Catecismo Maior de São Pio X: “A mentira é um
pecado que consiste em afirmar como verdadeiro ou como falso, por meio de
palavras ou de ações, o que não se tem por tal”. É de três espécies a mentira: a
jocosa, a oficiosa e a prejudicial. A jocosa é a que se diz por gracejo e sem
prejuízo do próximo; a oficiosa, por sua vez, consiste na afirmação de uma falsidade
para benefício próprio ou de outrem, sem prejuízo do próximo; e a perniciosa ou
prejudicial, por fim, é a afirmação de uma falsidade com prejuízo do próximo. E
pergunta ainda o referido Catecismo: “É lícito
mentir alguma vez?”, e responde: “Nunca é lícito
mentir, nem por gracejo nem para proveito próprio ou alheio, porque é coisa má
em si mesma”. Quanto todavia à espécie de pecado, a jocosa e a oficiosa são
pecados veniais; a prejudicial, contudo, sobretudo se é grave o prejuízo que
causa ao próximo, é pecado mortal. – Naturalmente, não nos é necessário dizer
tudo quanto pensamos, sobretudo se quem no-lo pergunta não tem o direito de
saber o que pergunta.
Observação 1. A quem pecou por mentira prejudicial não
lhe basta confessar ao sacerdote o feito, senão que tem obrigação de
retratar-se de algum modo diante do próximo e reparar da melhor maneira
possível o dano que lhe causou.
Observação 2. Para que se trate de efetiva mentira, é
preciso que haja contradição entre o pensado e o dito. Desse modo, se alguém
pensa efetivamente e diz uma falsidade sobre algo real, esse não mente, apenas
se equivoca.
2) Santo
Agostinho definiu assim a mentira: “uma significação falsa unida à intenção de
enganar” (Contra mendacium, 26; PL 40, 537). Põe no entanto Santo Tomás que
a intenção de enganar (voluntas fallendi) pertence à perfeição mas não à essência da mentira (Summa,
II-II, q. 110, a.1): esta já se qualifica pela falsidade formal, ou seja, pela vontade
de dizer algo contrário ao que se pensa. Daí sua definição mais precisa: uma
locução contra a mente.
3)
A doutrina de Santo Agostinho e de Santo Tomás sobre a mentira é de todo
condizente com a mente da maioria tanto dos Padres como dos teólogos escolásticos.
Apenas uma minoria desses julgou não constituísse pecado a mentira nos casos em
que dizer a verdade pode implicar consequências graves para o próximo. Nesta
minoria se contam, por um lado, Clemente de Alexandria, Orígenes, São João
Crisóstomo, Santo Hilário e, por outro lado, Guilherme de Auxerre, Alexandre de
Hales e São Boaventura. – O magistério da Igreja, por sua parte, se nunca definiu
extraordinariamente a mentira e suas espécies, já o fez, sim, ordinariamente (e
os catecismos de São Pio X, o Maior, como vista acima, e o de 1912, são somente
dois de muitos exemplos), sempre segundo a mente ou de Santo Agostinho ou de
Santo Tomás. E, como todos sabemos ou deveríamos saber, o magistério ordinário
da Igreja – e ainda mais se se trata, como é o caso, de magistério ordinário
infalível por repetição de atos – deve ser acatado docilmente pelos católicos
(cf. Pio XII, Humani
generis, sobre a altíssima autoridade do magistério
mere autêntico:
“Não se deve pensar que o que se expõe nas encíclicas não exige de si
assentimento, pelo fato de nelas os Pontífices não exercerem o supremo poder de
seu magistério; dado que estas coisas são ensinadas pelo magistério ordinário, ao
qual também se aplica o ‘quem vos ouve, a Mim me ouve’”).
4)
O dito até aqui, contudo, não implica que a questão da mentira não seja árdua.
Com efeito, já dizia o mesmo Santo Agostinho que não só é assunto difícil mas amiúde
nos angustia (De mendacio I, 1; PL 40, 487). E foi essa mesma arduidade o
que deu ensejo ao teólogo protestante Hugo Grócio (1583-1645) para conceber a mentira
como rejeição da verdade devida, com o que a mentira deixa de
ser considerada má em si para sê-lo com respeito ao direito do próximo à
verdade. Se todavia mingua ou não se dá tal direito, a mentira passa a lícita.
Neste último caso, já não se teria mentira formalmente, tão só materialmente: é
o “falsilóquio”. Desse modo, assim como para Einstein o tempo com que se mede o
movimento depende sempre de um marco de referência relativo, assim também a qualificação
da mentira depende sempre de um direito subjetivo relativo. Esta doutrina foi
ganhando cada vez mais espaço entre os protestantes e os jurisconsultos e acabou
por granjear o assentimento de não poucos teólogos católicos. Pois bem, aceitar
o católico esta doutrina implica indocilidade não só à maioria dos Padres, não
só aos dois maiores doutores da Igreja (Santo Agostinho e Santo Tomás), não só
ao Doutor Comum da Igreja (Santo Tomás), mas ao próprio magistério da Igreja, a
quem devemos ouvir como se ouvíssemos a Cristo mesmo.
5)
Isto todavia ainda não soluciona o conflito real que sempre se pode dar entre o
reconhecimento da malícia intrínseca da mentira e os casos singulares em que dizer
a verdade traz ou pode trazer algum prejuízo para o próximo. Dêmos exemplos de
tais casos singulares. Por um lado, o filho viciado em drogas que pergunta ao
pai se ele tem dinheiro em casa; os soldados a mando de um tirano que perguntam
a alguém se está escondendo um padre foragido que ele de fato esconde; o de uma
criança de menos de 7 anos com câncer que pergunta aos pais se vai morrer. Por
outro lado, o responsável por uma sala de concertos que diante de um início de
incêndio dá ao público outro motivo para evacuar o lugar a fim de evitar tumulto;
o agente policial que se finge de bandido para infiltrar-se numa gangue de traficantes
e assim desbaratá-la; o governo que dá alguma informação falsa pelos meios de
comunicação como isca para capturar terroristas que ameaçam a vida dos
cidadãos, de uma cidade, do país. São casos potencialmente infinitos.
6)
Diante de tais casos, é que surgiu entre teólogos católicos a doutrina da “restrição
mental” ou “anfibolia”, que se divide em “restrição mental estrita” (restrictio stricte mentalis) e “restrição mental lata”
(restrictio late mentalis). Explica-o assim o P. Teodoro da Tôrre del Greco
O.F.M (Teologia Moral, São Paulo, Paulinas, 1959, p. 389-390): “Distingue-se
da mentira a restrição mental, que consiste em dar às palavras um
significado diverso do comum. // Há restrição mental, por exemplo, quando
alguém interrogado acerca de um fato responde: não sei, subentendendo, para
revelá-lo. (...) // A restrição mental pode ser tomada em sentido lato, ou
em sentido estrito. // É tomada em sentido lato (ou impropriamente
dita), quando o significado das palavras é facilmente perceptível, pelas
circunstâncias da pergunta, da resposta, do costume, ainda que não seja
apreendido; por exemplo, ‘não tenho o livro’, subentendendo, ‘para dar-te’. // É
tomada em sentido estrito (ou propriamente dita), quando o
significado das palavras não é de nenhum modo perceptível, por exemplo, se
perguntam a uma pessoa: ‘estiveste em Paris?’ – esta responde que 'sim',
subentendendo ter estado com o desejo”. E diz pouco mais ou menos o mesmo Antonio
Royo Marín O.P. (Teologia Moral para seglares, Madrid, Biblioteca
de Autores Cristianos, 1996, tomo I, p. 745-746). Pois bem, a “restrição mental estrita” foi
condenada como abuso por decreto de Inocêncio XI no ano de 1679. Muitos porém julgam
que a não condenação formal pela Igreja da “restrição mental lata” equivaleria
a uma autorização. Mas obviamente não é assim: a Igreja apenas não a desautorizou,
assim como não desautorizou a doutrina da predestinação de Santo Tomás nem a de
Luis de Molina. Por isso, assim como podemos criticar qualquer das duas referidas
doutrinas da predestinação (embora, como mostro alhures, a de Tomás esteja
fundada no próprio magistério), assim também podemos criticar e rejeitar a
doutrina da “restrição mental lata” – mais ainda: como creio, devemos fazê-lo.
7)
Com efeito, diz Del Greco que a “restrição mental” “é tomada em sentido
lato (ou impropriamente dita) quando o significado das palavras é
facilmente perceptível, pelas circunstâncias da pergunta, da resposta, do
costume, ainda que não seja apreendido; por exemplo, ‘não tenho o livro’,
subentendendo ‘para dar-te’”. Mas, se do dizer “não tenho o livro” é facilmente
perceptível o subtendido (“para dar-te”), então qual é a razão da restrição mental?
por que não dizer o que é facilmente perceptível? Ou seja, se o subentendido é
facilmente perceptível (razão por que só não será apreendido pelo auditor se
este tiver algum problema cognitivo), então não é necessário; se não o é, quer
dizer, se o subentendido não é facilmente perceptível ou não é perceptível de
modo algum, então a “restrição mental lata” se reduz à condenada “restrição
mental estrita” ou “propriamente dita”. Tertium non datur.
Observação: note-se, ademais, que
Del Greco (e pouco mais ou menos Royo Marín) distingue mentira de “restrição
mental”, ou seja, para ele a restrição mental não é mentira. Como terá sido
possível, contudo, que os Padres da Igreja, os teólogos escolásticos, incluindo
Santo Tomás, e o magistério da Igreja nunca tivessem atinado para tal
distinção?
8) Objetar-se-á, contudo: Cristo parece
ter-se valido de uma “restrição mental lata” ao dizer que “Quanto àquele dia e àquela
hora [da Parusia], ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai”
(Mateus 24, 36; cf. também Marcos 13, 32), porque de fato é inconcebível que o
Filho não soubesse o mesmo que o Pai. Responda-se, antes de tudo, dizendo com
São Jerônimo que “em alguns códigos latinos se tem acrescentado ‘nem o Filho’,
enquanto nos exemplares gregos, especialmente os de Adamâncio e de Piério, não
se encontra isso acrescentado. Mas, uma vez que isto se lê em alguns deles,
parece-me algo que discutir” (apud Santo Tomás de Aquino, Catena
aurea, Evangelho de São Mateus,
lectio XI, v. 36). É o que faz Santo Tomás no Compêndio de Teologia, (l.
I, cap. 242): “A causa do fim do mundo é a vontade de Deus, que nos é desconhecida.
Por isso tampouco o fim do mundo pode ser previsto por nenhuma criatura, mas
apenas por Deus, segundo aquilo de Mateus (24, 36): ‘Quanto porém àquele dia e
àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas só o Pai’. Porque todavia
em Marcos se lê ‘nem o Filho’, alguns [por exemplo, Ário] fizeram disso matéria
de erro, dizendo que o Filho é menor que o Pai, porque ignora o que o Pai sabe.
Mas pode evitar-se isto dizendo [com São Basílio Magno] que o Filho ignora tais
coisas segundo a natureza humana assumida, não porém segundo a divina, segundo
a qual tem uma única sabedoria com o Pai, ou, para dizê-lo mais claramente, é a
mesma sabedoria concebida no coração. Mas [agora contra São Basílio Magno,
Rábano Mauro, a Glosa, et alii] também pareceria inconveniente que o
Filho ignorasse o juízo divino segundo a natureza humana, uma vez que sua alma,
pelo testemunho do Evangelista [João 1, 14], é cheia da graça e da verdade de
Deus, como se disse acima. Tampouco pareceria ter razão que Cristo, como aceitasse
o poder de julgar porque é Filho do homem, ignorasse o tempo de seu juízo
segundo a natureza humana. Com efeito, o Pai não lhe teria dado todo o juízo se
lhe fosse subtraído o juízo que determina o tempo de seu advento. Por
conseguinte, deve entender-se isto segundo um modo de falar costumeiro nas
Escrituras, segundo o qual se diz que Deus então conheceu uma coisa quando deu
notícia dela, tal como disse a Abraão [o que se lê] no Gênesis (22, 12): ‘Agora
conheci que temes ao Senhor’: não que o que conhece todas as coisas desde a
eternidade começasse [então] a saber, mas porque mostrou a devoção [de Abraão]
por aquele fato. Assim também se diz, portanto, que o Filho ignora o dia do juízo,
porque não deu notícia aos discípulos, senão que lhes respondeu: ‘Não vos
pertence saber os tempos nem os momentos que o Pai reservou para seu poder’.
Mas o Pai não ignora deste modo, porque ao menos pela geração eterna deu notícia
disto ao Filho. Alguns porém se desembaraçam mais brevemente [quanto a isto] dizendo
que isso deve entender-se do filho adotivo. Por isso, porém, quis o Senhor que
o tempo do juízo futuro fosse oculto, para que os homens vigilassem
solicitamente e não se achassem acaso despreparados no tempo do juízo, porque
também quis que o tempo da morte de cada um fosse desconhecido. Com efeito,
cada um aparecerá no juízo tal qual partiu daqui pela morte: por isso o Senhor
disse [o que se lê] em Mateus (24, 42): ‘Vigiai, porque não sabeis a que hora
virá o vosso Senhor’”.
9) Permanecemos pois com o conflito humano
entre o reconhecimento da malícia intrínseca da mentira e o fato de que alguma
verdade dita pode ser prejudicial ou perniciosa ao próximo. Trata-se porém de
conflito humano consequente do pecado original, porque, com efeito, no
estado de justiça original não se daria. Diante pois desse conflito, desse
dilema, o primeiro a que havemos de recorrer é o silêncio. Se todavia sabemos
que permanecerá o problema apesar do silêncio, havemos de recorrer ao dito por
Santo Tomás citando a Santo Agostinho, o mesmo Santo Tomás que sustenta que não
é lícito mentir nem sequer para afastar o próximo de algum perigo: “é lícito esconder prudentemente a verdade com
alguma escusa” (Summa, II-II, q. 110, a.
3, ad 4). Este como preceito parece vago, mas na maioria dos casos um homem
vivido e prudente saberá aplicá-lo perfeitamente segundo o exijam as circunstâncias.
Não obstante, nem todos os homens são vividos e/ou prudentes, afora o fato de
que mesmo para os vividos e prudentes este recurso nem sempre evitará o dano ao
próximo. Encontramo-nos assim, neste caso, num
beco sem saída? De certo modo sim, em consequência, repita-se, do pecado original.
Neste caso, portanto, sem negar nunca que a mentira é intrinsecamente má, há que
esperar o socorro da graça e da luz do Espírito. Devo cometer pecado venial e com isso livrar alguém de algum dano mais ou menos grave? Como quer que seja,
lembra-me aqui o final daquele que para mim é o mais belo romance de Agatha Christie, seu último: Cai o
Pano (Curtain: Poirot’s Last Case). O detetive belga Hercule Poirot está à beira
da morte, razão por que não tem tempo para esperar que a polícia detenha um
assassino que certamente, se nada for feito, matará outras pessoas. Mas só a
lei pode prender e matar um homem. Pensa porém Poirot (parafraseio-o contando
com a memória): Aqui, nestas circunstâncias, eu sou a lei. Vou eu mesmo matá-lo
[envenenando-o, salvo engano], e ponho-me docilmente desde já sob o juízo de
Deus que logo enfrentarei. Mata-o. Cai o pano.