segunda-feira, 22 de junho de 2015

Outra multidão de questões sobre a Gramática (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


RESPOSTAS DO PROFESSOR
NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO

1) Assisti à aula de número 23 na qual o senhor fala do Evolucionismo. Após assistir-lhe, venho formular questões relacionadas à Linguagem – nossa área de atuação profissional.
Como sabemos, as ideias evolucionistas também têm sido aplicadas ao estudo da linguagem. Resultado disso, por exemplo, é a opinião de que com o decorrer do tempo as línguas evoluem, quer dizer, estão em constante progresso, sai-se do menos e vai-se ao mais. Neste sentido, não se pode afirmar que uma língua se corrompe ou que está em crise, pois está sempre melhorando – tese esta que se afina com o Panteísmo.
Mattoso Câmara (2011, p. 139) diz do vocábulo “evolução”: “Conjunto de mudanças (v.) que sofre uma língua em sua história interna (v.). O nome foi adotado nos meados do séc. XIX, a exemplo das ciências naturais, onde ‘evolução’ significa o crescimento gradual e paulatino de um organismo até atingir a plenitude. Muitos linguistas rejeitam ou pelo menos evitam o termo, porque na língua não há a rigor um crescimento, mas apenas mudanças e, muito menos, a marcha para a plenitude. A ilusória impressão em contrário resulta de uma confusão entre o crescimento em certos aspectos da cultura (técnicas, pensamento científico, atividade literária) com a língua que serve de veículo a essa cultura (v.). Apesar de tudo, o caráter paulatino e gradual das mudanças, num encadeamento estrito, é inegável para muitas mudanças na língua e por isso o uso do termo se justifica, despojada em linguística a sua significação da noção de crescimento ou progresso.”
O senhor concorda com a posição do linguista Mattoso Câmara no tocante ao uso da expressão “evolução da língua” e seu significado?

RESPOSTA. Sem ser destituída de interesse, a posição de Mattoso Câmara (que aliás é dos poucos linguistas de que nos podemos valer algum tanto para a parte especulativa da Gramática) peca por imprecisão e confusão. Por quê?
a) Antes de tudo, a língua não é um todo substancial como o é um vivente; é um todo em parte de ordem (como uma cidade ou um exército), em parte de composição (como uma casa), mas com um caráter único: como produto artificial que é, e conquanto sirva ao modo de paradigma social a todo um povo, individualiza-se na mente de cada membro deste povo.
b) Além do fato de o evolucionismo darwinista e quejandos serem já por si insustentáveis cientificamente, erra Mattoso ao defini-lo: não é como o diz que os mesmos evolucionistas o entendem.
c) À parte tudo isso, o fato é que as línguas não só se corrompem, mas progridem.
• Corrompem-se cada vez que algum de seus paradigmas se esboroa socialmente, e perecem quando o conjunto ou grande parte deles se desfaz.
• Progridem, ao contrário, cada vez que se consolida ou estabelece algum paradigma seu. E isto é assim por que a Linguagem tende a refletir em suas construções a própria constituição da realidade; e tanto mais se atualizará esta tendência quanto mais cultivada for a língua, ou seja, quanto mais se valerem dela e a aprimorarem verdadeiros mestres. Vide, por exemplo, o caso de Platão e de Aristóteles com respeito ao grego ático: não só lhe deram todo um conjunto de novas palavras para significar os mais profundos conceitos filosóficos, mas, pela necessidade mesma de fazer servir a língua à Filosofia, contribuíram até para o aprimoramento de seus paradigmas casuais. (Cf. para o Estagirita o Aristóteles de Émile Boutroux, Rio de Janeiro, Record, 2000.)

2) José Carlos de Azeredo (2012, p.61), na Gramática Houaiss, escreve: “Outra ideia muito difundida no passado, também hoje superada, é que as línguas ‘evoluem para um estado de perfeição’, ilustrado na maneira como a praticam seus grandes oradores e poetas, e que, atingido este estágio, elas precisam ser defendidas ‘da corrupção daqueles que a utilizam mal’, e, portanto, de toda mudança que as afaste daquele ideal de perfeição.”


RESPOSTA. Se é verdade a primeira parte do que diz este autor – ou seja, as línguas não evoluem para um estado de perfeição, e a afirmação em contrário é de cariz positivista –, por outro lado propende ele à posição geral da Linguística, a saber, a de que as línguas não se corrompem, senão que mudar é o que lhe é próprio per se – o que por sua vez é do mais puro heraclitismo. Deixada porém à deriva, sem gramática, como querem muitos linguistas que, porém, o mais das vezes, defendem sua tese sem nenhuma deriva gramatical, a língua seria como a realidade-rio de Heráclito: seria puro fluxo, a ponto de não poder falar-se duas vezes como a mesma língua. Com efeito, para o filósofo grego Heráclito de Éfeso (século V a.C.) nada na realidade teria estabilidade: tudo seria e fluiria como um rio, em que não se poderia entrar duas vezes porque, na segunda vez, já não seria o mesmo rio. Como escrevi em outro lugar, para esse filósofo “nada é senão enquanto não é”.

3) Eu entendo que deveríamos evitar o termo “evolução da língua”, pois assim assumimos que a língua apenas evolui, quando na verdade podemos encontrar deficiências, como, por exemplo, a ausência em português de um correspondente ao pronome “one” em inglês quando nos referimos à ideia de pessoa, pronome esse que, numa aula de língua portuguesa avançada, o senhor disse que existia antigamente no português e se perdeu... Ora, esta perda seria uma prova de que a língua não evolui, mas ao contrário se deteriorou (neste aspecto pelo menos); assim como a queda do gênero neutro em português, ainda existente no alemão, apesar de resquícios nos pronomes “isso”, “isto”, “aquilo”.

RESPOSTA. Concedo perfeitamente o que diz. Precisaria apenas, todavia, que tais corrupções podem ser pontuais e compensadas pelo estabelecimento de novo paradigma (e veja que a função precípua da gramática, em todos os sentidos desta, é fechar paradigmas). Assim, em inglês o uso do indeterminador man corrompeu-se, mas substituiu-se pelo uso de one, o que porém não se deu de forma estável em português. Uma saída deu-a o povo: o uso universal de se em lugar de homem: vende-se casas, aluga-se bicicletas, a par de estuda-se muito aqui, precisa-se de empregados. Ora, a gramática espanhola aceita-o (pode dizer-se tanto se venden casas como se vende casas, com claro sentido distinto); mas a gramática portuguesa nunca o aceitou, apesar de sua defesa por Said Ali. Prossegue portanto tal instabilidade entre nós. 

4) Assim sendo, preferiria o termo “transformação da língua” ou “mudanças linguísticas” que por si não implicam ideia nem de progresso, nem de decadência da língua. No entanto, acredito que por influência do Evolucionismo, encontramos pessoas que apreciam a constante transformação da língua, aderindo facilmente à ideia de que se deve deixar a língua solta, sujeita às transformações, porque é organismo vivo, enfim, conforme o senhor afirma no blog Contra Impugnantes, o heraclitismo da língua.

RESPOSTA. Perfeito. Só acrescentaria que se pode falar de progresso ou progressos linguísticos no sentido referido acima: fechamento de paradigmas e maior capacidade de expressar a realidade.

5) De qualquer modo, dado que a língua se transforma, ou que ocorrem mudanças linguísticas, o que dizer do metaplasmo? Ele se refere à língua (portanto, palavras que sofrem prótese, síncope, aférese... são gramaticais) ou ao uso da língua (as pessoas falam erroneamente, visto que “alembrá”, “adevogado”... não pertencem à língua)?

RESPOSTA. A ambas as coisas. De início os metaplasmos se dão na mente de alguns usuários da língua, o que implica corrupção individual; quando porém atingem o conjunto ou a maioria dos falantes, implica corrupção global. Em algumas línguas, há um verdadeiro abismo entre a linguagem culta e a da maioria da população: é o caso, por razões diferentes, do português brasileiro e do inglês americano. Era bem menos o caso do espanhol; mas a decadência global da humanidade está levando a que o mesmo espanhol se corrompa progressivamente e, portanto, a que se abra também ali, progressivamente, tal abismo.

6) Quanto à língua, na resposta às dúvidas 52, o senhor escreve: “Vê-se pois que os ‘modelos’ fonéticos não são ideias platônicas, sem existência material, das quais participassem umas ‘realizações’; mas são, eles mesmos, fonemas materialmente realizados, enquanto aquelas ‘realizações’ têm, do ângulo fonético mais concreto, o mesmo estatuto que seus ‘modelos’.”

RESPOSTA. Veja que o que digo aí se refere tão somente aos fonemas. A única maneira de entender a questão fonética da língua é fazê-lo segundo uma analogia de atribuição, e é assim que a estudo na referida passagem.

7) Gostaria que explicasse melhor a natureza (ontológica) da língua utilizando terminologia metafísica (ato/potência, essência/existência, substância/acidente...). A mim parece que ela não existe realmente, assim como o Pégaso ou o Minotauro também não.

RESPOSTA. Mas é claro que existe realmente e que não é um ente quimérico. É evidente, e não podemos provar o evidente; mas podemos defendê-lo. E, com efeito, se se tratasse de um Pégaso, a língua não serviria de signo de nossas concepções mentais, e você nem sequer poderia dizer com pretensão de verdade que ela é um Pégaso. Logo, é verdade que a língua é verdadeiramente real. Ademais, que será isto que falamos e escrevemos? Um ente imaginário? Se o fosse, nós mesmos seríamos parte da imaginação de alguém, assim como também o seria a cidade ou sociedade, quando de fato esta decorre realmente de nossa mais que real natureza racional.

8) Mas, a partir de certos elementos (a princípio, palavras compostas de fonemas – /a/, /b/, /s/...) combinados segundo normas, formamos a ideia de “língua portuguesa”, assim como a partir de elementos como corpo de cavalo, asas, cabeça de touro... combinados entre si, formamos as ideias de “Pégaso” e de “Minotauro”. Assim me parece que a língua portuguesa, assim como as outras, é um constructo mental, ou melhor, ideia, que elaboramos, que não é sensível, mas intelectivo, ou seja não iremos encontrar materializado como este celular ou esta carteira, mas que podemos apreender; enfim, a língua seria ente concreto. Mas o senhor diz nas dúvidas 52 que “Todas as línguas são igualmente Linguagem.” e que “... as diferenças entre as línguas são acidentais, assim como são acidentais as diferenças raciais entre os homens ou entre os cães.”. Assim, por serem acidentes da linguagem (verbal), as línguas não seriam concretas? Tampouco o raciocínio acima valeria?

RESPOSTA. Quanto à primeira parte desta pergunta, já a considero resolvida na resposta anterior. Quanto à segunda parte, divido-a.
a) Os acidentes não só se seguem à substância, mas são o que mais terminantemente a concretiza. Eles não subsistem sem a substância; mas são o que termina de fazer que substância seja hoc aliquid, este algo, e não aquele outro. E sobretudo quando se trata do acidente quantidade: porque, com efeito, as formas são individuadas pela matéria signada ou delimitada pela quantidade.
b) Logo, o raciocínio acima efetivamente não vale.

9) Se as línguas são essencialmente (uma só) Linguagem e suas diferenças são acidentais (por exemplo, modificações no plano de expressão não alteram a “lógica” de que após o verbo deva vir um objeto, de que os substantivos podem ser próprios ou comuns, de que consoantes se realizam acompanhadas de vogais etc.), então poderíamos, como gostaria Chomsky, elaborar uma gramática universal da qual decorrem as gramáticas particulares (da língua portuguesa, inglesa, italiana...)?

RESPOSTA. De modo algum, e Chomsky não faz com isso senão criar, agora sim, um ente de razão quimérico, ou antes, uma ideia platônica. As únicas regras comuns a todas as línguas são as regras lógicas; e as gramáticas não são senão reduções analógicas de tais regras.

10) Considerando a explicação que espero que dê sobre a natureza da língua, acredito que devamos rejeitar a concepção de que a língua é prática social, conforme há autores que afirmam, correto?

RESPOSTA. A língua é um todo, como disse, tanto de ordem como de composição, e, como decorre da natureza social ou política do homem, é, sim, e antes de tudo, de caráter social, conquanto, como já dito também, se individualize segundo os membros de dada sociedade. E naturalmente é prática social, o que não implica seja construída per se pela sociedade: como diz Sócrates no Crátilo platônico, depende antes de tudo dos legisladores, ou seja, dos fazedores de língua – assim como, conquanto a pólis seja de todo coletiva, depende das leis elaboradas por seus legisladores.

11) O senhor afirmou nas dúvidas 52 que “Toda e qualquer língua é, propriamente, um todo composto por determinados sons e palavras que se combinam gramaticalmente para significar nossas concepções mentais e comunicá-las aos demais, o que implica uma compreensibilidade geral”. Outra questão é: esse todo composto comporta as variedades e variantes linguísticas?

RESPOSTA. Como mostrei em alguma resposta do mesmo documento 52, o conceito de língua é analógico, e diz-se de muitos modos. Segundo um anterior e um posterior, mais propriamente se diz língua a língua culta. Leiamos o que diz sobre isto o importante gramático espanhol Andrés Bello: “prefere-se o uso linguístico da gente educada porque é o mais uniforme nas várias províncias e povoados que falam uma mesma língua, e portanto [é] o que faz que mais fácil e geralmente se entenda o que se diz; ao passo que as palavras e frases próprias da gente ignorante variam muito de uns povoados e províncias a outros, e não são facilmente entendidas fora daquele estreito âmbito em que as usa o vulgo”. Desse modo, a língua mais propriamente dita, o analogado principal desta analogia, não comporta variantes linguísticas, senão que estas variantes se dizem língua apenas como analogado secundários. – Por isso é que digo que, muitas vezes, se se tomam variantes como o português brasileiro e o lusitano, o autêntico analogado principal é a língua escrita

12) Como creio que o senhor também entende de Música, creio também que poderá avaliar bem a seguinte comparação (também da Gramática Houaiss):
“Para melhor caracterizar o conceito que vamos apresentar nesta seção, faremos uma comparação entre a língua e a música. Imaginemos uma canção qualquer que já tenha sido interpretada por três diferentes cantores ou conjuntos musicais. Por maiores que sejam as diferenças entre as três interpretações, sempre seremos capazes de reconhecer nelas a mesma canção. Vamos chamar de A ao conjunto de características estruturais que permitem reconhecer nas três interpretações a mesma canção, e de An (isto é, A1, A2, A3) cada uma das interpretações. Agora vamos imaginar que a interpretação A2 se torne uma espécie de modelo de interpretação copiado por vários outros cantores ou conjuntos musicais, de maneira que ao ouvi-los possamos facilmente dizer que esses novos intérpretes estão repetindo uma interpretação anterior, que por alguma razão, não necessariamente musical, se tornou a preferida deles. A2 é agora algo mais do que A1 e A3; A2 tornou-se uma interpretação padrão. De tal sorte que muitas pessoas passam a considerar A2 a forma ideal de A. Vamos batizar esta nova concepção de A2 como Ap (p = padrão). Isto não impede, é claro, que outros intérpretes inovem na maneira de executar ou cantar a canção, realizando com as novas interpretações novas variantes de An (A4, A5, A6...), dentre as quais algumas poderão ser obras de boa qualidade estética.” (AZEREDO, 2012)

RESPOSTA. O que o autor busca dizer parece ser o mesmo que digo: trata-se de analogia de atribuição. Mas algumas observações:
a) Fá-lo muito confusamente, e de modo tendente a considerar que tal “interpretação” ideal seja meramente acidental. É-o em certo sentido, mas, em determinado espaço de tempo, se se trata de sociedade culta (o que muito dificilmente podemos encontrar hoje em dia), tal “interpretação” ideal é, como dito, o analogado principal de nossa analogia.
b) Depois, parece-me algo pobre a analogia de proporcionalidade que faz com a Música, e dou dupla razão para o dito.
• Em primeiro lugar, na Linguagem não há interpretação, porque, com efeito, os falantes de uma língua não podem fazer como uma banda de jazz que transforma (horrivelmente, mas efetivamente) uma peça religiosa de Bach em música swing. Ao contrário, todos os falantes de dada língua têm de entender o mesmo com respeito a certa palavra, sob pena de, quanto a esta palavra, não falarem a mesma língua. Se digo casa em seu sentido próprio, todos os falantes de português hão de entendê-la como eu; não a podem interpretar.
• Em segundo lugar, embora tanto a Linguagem como a Música sejam significantes, aquela o é diretamente de nossas concepções intelectuais, ao passo que esta não o é senão ao modo de símbolo. Não posso estender-me aqui sobre a distinção entre signo e símbolo (o que faço num livro sobre as “artes do belo”, ainda em estado de escrita), mas veja que, se a Linguagem é signo das concepções do intelecto, a Música é símbolo do mesmo transcendental belo; e, enquanto a primeira tem por objeto a comunicação daquelas concepções, esta, a Música, tem por objeto fazer propender ao bem e afastar do mal mediante fruição estética e indução de sentimento. 

13) O conceito de variedade e variante linguísticas procede?

RESPOSTA. Procede como dito: se se entendem as variantes linguísticas como analogados secundários.

14) Não sei até que ponto a Sociolinguística acerta. Penso que o ensino de variedades linguísticas começou após a 2ª Guerra Mundial com o movimento pós-colonialista, em que colônias africanas da Inglaterra se tornaram independentes, pois aos olhos dos países pós-guerra seria uma atitude nazista, ou quase, continuar mantendo-as como colônias. Logo, deviam ser independentes, soberanas. Não somente isso, não poderiam ser vistas como “inferiores”, mas como “diferentes” (différance, ideia advinda do pós-estruturalismo de Derrida). Movidos por este espírito de que “não há melhor, nem pior, apenas diferentes”, dever-se-ia valorizar as diversidades – diga-se de passagem: as culturas dos (países ex-colônias) “pobres oprimidos”. Assim, começou-se a valorizar a ideia de heterogeneidade sobre homogeneidade (que, supostamente, levaria à hegemonia). Enfim, esta mentalidade de diferenças e heterogeneidade naturalmente afetou os estudos linguísticos. Então de uma visão de língua como sistema homogêneo até quando durou o estruturalismo saussuriano nos anos 60, quando a língua era vista como sistema homogêneo (“Enquanto a linguagem é heterogênea, a língua assim delimitada é de natureza homogênea” (SAUSSURE, 2012)), dos anos 70 em diante a língua passou a ser concebida como sistema heterogêneo: “Todas as línguas apresentam um dinamismo inerente, o que significa dizer que elas são heterogêneas.” (MOLLICA, 2012). Sendo heterogênea, a língua comporta não apenas a variedade padrão oficial ou ideal (“nós vamos”, “eu me comportei bem”), mas variedades linguísticas – que têm padrões linguísticos (gramaticalidade) – não padrão (“nóis vai”, “eu se comportei bem”). Pela resposta nas dúvidas 52, acredito que o senhor assuma que a língua (ou no nosso caso o dialeto brasileiro) se identifica com a chamada “variedade padrão” que é aquela utilizada pelos falantes cultos (aqueles que adquiriram cultura escrita, logo se subentende que eles entendam que devemos obedecer às normas gramaticais a fim de preservar a língua como patrimônio e não alterá-la constantemente a ponto de século depois não se poder ler, por exemplo, uma literária de uma mesma nacionalidade), ao passo que as chamadas “variedades não padrão” seriam corrupções da língua por se desviarem do padrão culto o qual deve ser mantido. Seria isso mesmo?

RESPOSTA. Em grande parte já respondi a isto. Mas digo ainda duas outras coisas:
a) A distinção saussuriana entre Linguagem e língua é das mais pobres. O correto é dizer, em analogia de proporcionalidade própria: a Linguagem está para as línguas assim a humanidade está para os homens.
b) As variedades não padrão podem ser ou corrupções da padrão, ou anteriores no tempo à padrão, assim como o grego ático padrão, o de Platão e Aristóteles, foi resultado da padronização de uma multidão de variantes vulgares.

15) Azeredo (2012, p. 66) se expressa sobre o “uso adequado” da língua: “Cabe a cada usuário da língua avaliar o contexto de uso e escolher a forma de expressão mais apropriada. Afinal, paralelamente à sua condição de sistema de unidades e regras combinatórias, a língua é expressão da imagem que os interlocutores fazem da situação social em que se encontram – ou seja, uma forma de comportamento –, e como tal requer de seus usuários discernimento para adequar as formas que empregam à situação e à finalidade do ato comunicativo. É nisso que consiste a competência verbal de um cidadão." O senhor concorda com tal colocação? A meu ver, essa regra de escolha da forma mais apropriada conforme a situação social não procede. Creio que o correto seria em todas as ocasiões nos expressarmos segundo a linguagem formal, ainda que, por relaxamento, em situações informais nos desviemos da língua padrão...

RESPOSTA. Naturalmente, em situação mais distensa tendemos a afrouxar as regras linguístico-gramaticais. Mas o autor faz aqui “muito barulho por nada”; trata-se tão somente do que acabo de dizer. Quanto ao que diz você, que “deveríamos, etc.”, eu o precisaria: quem escreve e fala correntemente a língua culta, tende naturalmente a relaxar menos em situação distensa; mas veja o que já disse no documento anterior: nunca na fala (a não ser que estejamos adestrados na arte da eloquência, e ainda assim com objeto sobreacrescido), nunca na fala conseguiremos o mesmo grau de perfeição gramatical que na escrita. Isto se deve a uma grande quantidade de razões, entre as quais talvez a principal seja o automatismo da fala, em contraposição ao reflexivo da escrita.

16) Quanto à homogeneidade/heterogeneidade da língua, pergunto: assim como em Química água mais álcool no copo forma um sistema homogêneo (partes visíveis iguais) e água mais óleo forma um sistema heterogêneo (partes visíveis diferentes), como devemos conceber a língua? Como sistema homogêneo (que comporta apenas o padrão A2, conforme citado por Azeredo) ou como sistema heterogêneo (que comporta todas as variedades A1, A2, A3...)? Não sei nem ao certo se esta questão tem sentido. A princípio, tenho uma tendência a aceitar que a língua seja um sistema homogêneo (caso a questão se a língua é homogênea ou heterogênea tenha sentido), porém a rigor me parece que homogênea a língua não pode ser, já que os fonemas de que se compõe são diferentes, há tipos diferentes de orações subordinadas, há tempos verbais diferentes, enfim todos esses elementos do sistema língua não são idênticos entre si, mas diferentes, assim como a água e o óleo se apresentam visivelmente diferentes no copo. Logo, a rigor, me parece que a língua seria heterogênea, porém não na acepção dos sociolinguistas de que a língua comporta todos os padrões linguísticos (“nós vamos”, “nóis vai”, “nói vai”...) em uso.

RESPOSTA. Outra vez, já respondi a isto, mas insisto: por ser em parte um todo de ordem, a língua é como um exército. Isso explica que uma língua permaneça a mesma ainda que, por exemplo, se lhe acrescentem palavras, ou se lhe corrompam outras, ou se lhe substituam umas por outras – tal como se dá num exército e entre seus soldados, comandantes, etc. E, se lhe posso recomendar algo, ei-lo: esqueça tal distinção homogêneo x heterogêneo, e fique com a analogia que acabo de fazer. – Quanto ao mais, de fato já não tenho nada que acrescentar.   

17) Se não estou enganado, o senhor mencionava numa aula a preservação da língua e acho que o menos pior dos critérios seria o da língua literária, ou ainda, que a gramática se conforme à língua tal como concebida pelos literatos. Mas ainda assim não seria o melhor critério haja vista as licenças poéticas, por exemplo. Poderia apresentar uma tabela comparativa desses critérios (lógico, literário, jornalístico...)?

RESPOSTA. Vou responder-lhe com minha mesma tese, que porém pensava estar clara: o gramático tem de fundar-se sobretudo não nos autores poéticos ou retóricos, mas nos autores científicos, e isto porque:
a) aqueles não necessariamente se cingem ao gramatical;

b) a Gramática se ordena à Lógica e à Filosofia ou Ciência, assim como a Lógica se ordena à Filosofia e esta à Arte com que se fez o Universo.