domingo, 27 de março de 2022
sábado, 26 de março de 2022
O neotomismo, suas grandezas, suas misérias
Carlos Nougué
1) Como pus no opúsculo “A questão dos
jesuítas”, não se deve idealizar nada na história da Igreja militante. À parte o
Novo Testamento e o magistério autêntico da Igreja enquanto tal, ou seja,
enquanto doutrina, tudo o mais tem mescla de verdade e de erro, ainda que em
graus muitíssimo variáveis; no caso dos santos, ademais, não há erro algum quanto
à fé. Aplique-se pois o dito também ao neotomismo, que no entanto suscita ou
oposições virulentas ou defesas apaixonadas.
2) Neotomismo é a ampla corrente suscitada
pela encíclica de Leão XIII Aeterni Patris, que exigia o retorno do
tomismo como a doutrina filosófico-teológica da Igreja. (Já iniciara de certo
modo tal movimento o Papa Pio IX, e lhe darão prosseguimento todos os papas até
Pio XII, inclusive). É que, praticamente esquecido ao cabo de séculos de
revolução religiosa, política e ideológica, o tomismo era o único antídoto contra
a imensa infiltração de racionalismo, de subjetivismo e de liberalismo nas
fileiras da Igreja. Mas não se pode considerar o neotomismo uma corrente
homogênea, longe disso; seus únicos traços perfeitamente comuns são o bravo atendimento da convocação papal ao retorno do tomismo e, ainda que muito desigualmente,
o combate ao modernismo.
Observação:
falando propriamente, o neotomismo termina com o Concílio Vaticano II, quando
se interromperam bruscamente os progressos que, como se verá abaixo, o
neotomismo vinha experimentando em meio a suas mesmas debilidades.
3) Em sua talvez inclassificável variedade,
o neotomismo tem grandezas (inegáveis e próprias) e misérias (caudatárias de
alguma maneira das do tomismo anterior) que se podem, grosso modo, reunir em cinco
campos principais: a lógica, a física, a metafísica, a teologia sagrada especulativa,
e a política teológica.
a) No da lógica,
temos por um lado a continuidade do erro do Cardeal Caetano quanto à analogia
de atribuição intrínseca (assumido especialmente por Jacques Maritain e pelo
Padre Maurício Teixeira-Leite Penido, mas refutado por Santiago Ramírez O.P.) e
por outro lado a continuidade dos erros de João de Santo Tomás resultantes de seguir
o defeituosíssimo opúsculo Summa totius Logicae Aristotelis por
julgá-lo da pena de Santo Tomás (o que se acusa mais formalmente na Lógica
Menor de Jacques Maritain, nos Elementa
Philosophiae aristotelico-thomisticae de Iosepho
Gredt O.S.B. e no Tratado
de Filosofia: Lógica e Cosmologia
de Régis Jolivet, ainda que neste último haja ainda certo diálogo com a
filosofia moderna; mas também, ainda que em grau muito menor, na Logica
de Édouard Hugon O.P., um tomista que sempre buscou sinceramente ser fiel ao
Mestre). Temos no entanto o imenso progresso de Santiago Ramírez O.P. no âmbito
da analogia: com efeito, seu volumosíssimo De analogia é o estudo mais
cabal e mais perfeito sobre o tema; sistematiza o que Santo Tomás deixou disperso
e/ou apenas incoado.
b) No da física
(ou seja, no de todas as ciências naturais), nenhuma contribuição de nota deu o
neotomismo. O único mérito de alguns foi repetir a magnífica física geral de
João de Santo Tomás , repetindo igualmente, porém, ou aprofundando sua
incapacidade de assimilar criticamente as descobertas feitas pela ciência
moderna (além de sua imprecisa concepção de causa final, ou seja, não como id cuius causa aliquid fit). Ao contrário, aliás, de assimilá-los criticamente, o neotomismo em geral oscilou entre sua
rejeição pura e simples e a adesão pura e simples a elas. É o caso de um Jacques
Maritain, que foi capaz de, ele mesmo, fazer ambas as coisas contraditoriamente
(cf. para isto os Umbrales de la Filosofía,
do Padre Álvaro Calderón); ou de um Régis Jolivet, que, menos talentoso mas mais
franco, simplesmente aderiu a eles acriticamente. Mas, repita-se, todos os neotomistas se mostraram de
algum modo afetados dessa incapacidade (vide, por exemplo, o caso de Garrigou-Lagrange O.P. referido
pelo Padre Calderón em El orden sobrenatural).
c) No da
metafísica, a descrição e a análise dos erros e acertos do neotomismo requereriam
dois ou mais grossos volumes inteiros.
• Diga-se,
contudo, que quanto à distinção real entre essência e ser – o eixo da doutrina
de Santo Tomás – os neotomistas dividem-se em três correntes: duas falsas, a
essencialista e a existencialista, e a verdadeira, a do Padre Cornelio Fabro.
Ambas as falsas pecam por entitatismo ou fisicismo, ou seja, o considerar que a
essência e o ser são não coprincípios – como de fato o são –, mas como que entes
eles mesmos. A essencialista – caudatária do avicenismo e, de certo modo, do
Santo Tomás jovem, além de predominante no neotomismo – privilegia a essência
em detrimento do ser; como que a “desencarna” e “substancializa”, com o que se aproxima
de algum modo do platonismo. A existencialista, cujo expoente é Étienne Gilson,
apesar de acusar corretamente o erro essencialista, incorre no erro oposto, e acaba
por fazer concessões ao existencialismo ambiente. Ademais, como aliás de algum
modo a mesma corrente essencialista, e na esteira agora do Cardeal Caetano, confunde
ser e existência, incapaz de entender que o ser é o ato de ser,
enquanto a existência
é o ser em ato ou fato de ser. Por isso é que quase todos
os neotomistas, como muito por exemplo Garrigou-Lagrange O.P., escrevem em
latim esse (= ser), mas em suas línguas nacionais existência. O único, repita-se, que acerta perfeitamente
quanto à distinção real entre essência e ser é o Padre Cornelio Fabro. Infelizmente,
todavia, não consegue ele aplicar devida e analogicamente esta distinção ao intelecto
e à vontade (cf. para isto El orden sobrenatural,
do Padre Calderón), e, pior, para o fim da vida, acaba por tornar-se um voluntarista
um pouco ao modo de Duns Scot.
• Além disso, em várias
obras diz Garrigou-Lagrange O.P. que o “princípio de identidade” é o primeiro
dos primeiros princípios; e ele certamente não foi o primeiro neotomista a
dizê-lo. Por outro lado, em sua A Essência do Tomismo, Manser O.P. põe o “princípio da razão
suficiente” entre os primeiros princípios. Mas nada disso é de Aristóteles nem
de Tomás de Aquino: ambas as coisas são de Leibniz. Não que por serem de
Leibniz sejam erradas; mas o fato é que também nisso errou Leibniz. O “princípio
de identidade” (“todo ser é o que é”) responde ao matematicismo
cartesiano-leibniziano, e corresponde à famosa e vácua fórmula 1 = 1 ou,
algebricamente, A = A. Aí está um modo de ser profundo sem dizer absolutamente
nada. Quanto todavia ao “princípio da razão suficiente” (“nada existe sem razão
suficiente”), responde ao idealismo de Leibniz: Deus conhecia todos os mundos
possíveis, mas, como por sua sabedoria não podia agir sem razão suficiente, de
todos os mundos possíveis só fez o melhor. É o chamado “otimismo” leibniziano,
o núcleo de sua teodiceia. Mas Tomás de Aquino demonstra na Suma Teológica que Deus poderia ter criado outro e melhor mundo, ainda
que nenhum mundo que Deus criasse pudesse ser inconveniente.
• Quanto contudo
ao “constitutivo formal” da essência divina, e segundo no-lo mostra Garrigou-Lagrange
O.P. em De Deo Uno (in
Commentarium in Primam Partem S. Thomae),
parte dos neotomistas segue o tomismo espúrio de João de Santo Tomás, dos
Salmanticenses, de Billuart, de Gonet e de outros, parte segue o tomismo
autêntico de Capréolo, de Báñez, de Ledesma e de outros, como é o caso de Norberto
del Prado O.P. e do Cardeal Billot S.J., jesuíta que tentou fazer-se perfeito tomista
por perfeita docilidade ao magistério da Igreja.
• Quanto ademais
à ordem das disciplinas e quanto ao caráter mesmo da metafísica, predominou no
neotomismo o mais perfeito antiaristotelismo-tomismo, como se pode ver
emblematicamente nos quatro tomos dos Elementos de
Filosofia de D. Thiago Sinibaldi (onde a metafísica, de todo
integral que é, se torna todo universal por sua espúria divisão em ontologia e teodiceia,
por certa influência remota de Leibniz).
• E fico por
aqui, sob pena de não terminar este opúsculo.
d) No da
teologia sagrada especulativa, destaca-se boa parte do neotomismo por seu valente
e árduo combate ao modernismo. Por vezes, como no caso da dupla Charles Journet
O.P. e Jacques Maritain, é combate antes aparente, o que porém melhor se vê no
campo da política teológica. Mas absolutamente não há negar a importância, muito
por exemplo, de um Garrigou-Lagrange O.P. para a redação por Pio XII da
Encíclica Humani generis,
ou a perfeição tomista do Cardeal Ottaviani na redação dos esquemas
preparatórios do Vaticano II (excluída, como se verá no próximo ponto, a parte
referente às relações entre estado e Igreja). Nada disso no entanto deve calar o
fato de que os defeitos metafísicos do neotomismo tiveram lá seus reflexos na
teologia sagrada especulativa do mesmo neotomismo, nem sobretudo, como já se
verá, o fato de que quase como um todo o neotomismo falhou lamentavelmente no
campo da política teológica.
e) Com efeito, é
no terreno da política teológica (que faz parte da teologia sagrada enquanto
prática) que o neotomismo se mostrou incapaz de fazer frente ao modernismo por
incompreensão da doutrina magisterial e tomista da realeza social de Cristo
(ou, o que é o mesmo, da doutrina dos dois gládios ou da subordinação essencial
do poder temporal ao poder espiritual). Como diria o Padre Calderón, o neotomismo
foi neste campo um “muro com brechas”. Isto porém só em parte do neotomismo,
porque outra parte sua não só se aliou mas até liderou o modernismo no
destronamento de Nosso Senhor Jesus Cristo. (A decadência começara no século
XVI com o nominalismo que se cria tomista de Francisco de Vitoria O.P. e
prosseguira com ecletismo de Francisco Suárez S.J., o introdutor nas escolas
católicas de uma noção análoga à da vontade geral de Jean-Jacques Rousseau. Dessa decadência
só não participara de modo algum o Cardeal Pie de Poitiers, a quem se deve
tributar essencialmente o lema do pontificado de São Pio X: Instaurar tudo
em Cristo.) Arrolem-se quanto a isto os principais neotomistas,
dentro, claro, das estreitas medidas de um opúsculo como este.
• O Padre Garrigou-Lagrange
O.P. foi o inventor da infausta distinção entre indivíduo e pessoa que fundará
o humanismo integral de Jacques Maritain. Como se lê em Crítica de la concepción de Maritain sobre la persona humana,
do Padre tomista Julio Meinvielle,
este convenceu a Garrigou-Lagrange de que tal distinção era equivocada. Nem
assim, contudo, talvez por respeito humano, o dominicano fez autocrítica
pública de seu erro. Se o tivesse feito, talvez Maritain não tivesse alcançado
a ascendência que alcançou entre os católicos, e talvez a hierarquia da Igreja
não tivesse tomado os rumos mesmos que tomou na segunda metade do século XX.
Talvez.
• Jacques Maritain, o corruptor-mor do tomismo no século XX, é o criador
do autointitulado “humanismo integral” e da heterodoxa noção política de Reino de Deus que sairá
vitoriosa no CVII. Para aprofundamento disso, cf. Padre Álvaro Calderón, El Reino de Dios – la Iglesia y el orden político; e Carlos Nougué, “Corte e costura
humanista”, in Estudos Tomistas – opúsculos II, e “O Reino de Deus no humanismo integral”, podcast
no Youtube.
• Charles Journet O.P., o parceiro de Maritain feito cardeal por Paulo VI, foi o mais perigoso dos corruptores do tomismo e em especial da doutrina da
realeza social de Cristo, justo porque era o que melhor sabia apresentar-se com
roupagem e linguagem tomistas ortodoxas. Para o desmonte de suas sutis falácias
quanto à realeza social de Cristo, vide meu “Corte e costura humanista”, in Estudos Tomistas – opúsculos II.
• O Padre Mateo Liberatore S.J. foi um dos grandes combatentes do liberalismo
no final do século XIX e um dos principais fundadores do neotomismo. Sobre porém
o primeiro livro de seu La Chiesa e lo Stato, escreve o Padre Calderón num opúsculo (El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II) não publicado:
“Parece a Liberatore que ‘se o governante
político se persuadisse de que… seu objeto… é propriamente a salvação eterna das
almas e também a cristã honestidade dos costumes, quer dizer, a virtude enquanto
foi elevada pelo Evangelho à ordem sobrenatural… por isto mesmo se arrogaria o
direito de fazer leis em matéria religiosa, e pôr diretamente as mãos no que diz
respeito à fé e à moral’ (p. 106). Deve então o governante promover uma moral natural,
dispor seus súditos segundo as virtudes naturais adquiridas e não sobrenaturais
infusas? E como farão os indivíduos para crescer ao mesmo tempo segundo uma dupla
personalidade moral, uma segundo a fé e a outra segundo a simples razão? Em umas
mesas haverá que comer segundo a temperança filosófica, e em outras segundo a
temperança cristã. O importante é que o governante não se meta de modo algum em
matéria religiosa: ‘O poder político pelo advento do Cristianismo foi reduzido
a mais estreitos limites… porque, como sabiamente observa Suárez [!!], lhe foi inteiramente
tirada a ordem religiosa’ (p. 109). Que não apareça uma Isabel de Castela preocupada
em reformar os clérigos! – Não quereríamos ser injustos; o espírito de
Liberatore é excelente. Todo o seu segundo livro é dedicado a condenar
eficazmente o naturalismo político. Mas a herança doutrinal que recebeu está maculada
por um pecado original daquele, porque a distinção que denunciamos é a raiz do
mesmo naturalismo político combatido”.
• Louis Lachance O.P., por seu lado, escreve o volumoso L’humanisme politique [!!] de Saint Thomas para combater o humanismo integral de Maritain, mas acaba por dizer
essencialmente o mesmo que este com respeito às relações entre o poder temporal
e o poder espiritual.
• Santiago Ramírez O.P., o já referido gigante da lógica e da analogia,
padece os mesmíssimos defeitos que Lachance no campo da política teológica,
ainda que em menor grau e com uma finura especulativa incalculavelmente superior
à daquele. E escreve Calderón no referido opúsculo:
“Ramírez fala-nos de um Estado filosófico, como o de
Ottaviani, ao qual o máximo que se pode pedir é uma concordata com a Igreja. Mas,
assim que sejamos sinceros e reconheçamos a enorme dificuldade que tem a religião
de Cristo para convencer a quem quer que seja à base de pura apologética, resignar-nos-emos
a exigir no máximo a liberdade religiosa como um direito humano. O resto do livrinho
[de Ramírez, Doctrina política de Santo Tomás] é um bonito tratado de
virtudes cívicas e patriotismo, onde, numa Espanha que acaba de sofrer o martírio
numa verdadeira Cruzada, nunca, nunca se trata da realeza social de Cristo!”
• O Padre Julio Meinvielle foi talvez
um dos dois únicos neotomistas que brandiram, incansavelmente aliás, a doutrina
da realeza social de Cristo. Seu mérito é pois incalculável. Quanto porém a
isto mesmo, tropeça no segundo capítulo de De Lamennais a Maritain por
contágio da autoridade do Cardeal Billot.
• O outro campeão da realeza
social de Cristo foi o leigo Jean Ousset, o fundador do movimento La Cité
Catolique por estímulo de Pio XII e de D. Marcel Lefebvre. Seu livro Pour
qu’Il Règne (Para que Ele reine) é um primor, cujo único defeito, a meu
ver, é crer que forçosamente Cristo haveria de fazer o mundo recristianizar-se.
Abstraía, assim, o fato de que já se estava havia sete séculos no processo de
apostasia das nações, processo que é um dos sinais
dados por Nosso Senhor da proximidade do Anticristo e do fim dos tempos.
(Mas entenda-se proximidade como marcha.)
• A tal
ponto porém estava fendido o muro do antiliberalismo tomista no seio da Igreja, que nem
sequer o Cardeal Billot S.J. entendeu perfeitamente a doutrina magisterial e
tomista dos dois gládios ou realeza social de Cristo. Era tão frágil seu dique
antiliberal, que se opôs à condenação por Pio XI da Action Française de Charles
Maurras não por inoportuna – e teria tido então razão –, mas por ver naquele
movimento de caráter nada católico um verdadeiro aliado da Igreja. Onde ficava
para Billot a Quas primas de Pio XI? Nos dias da festa litúrgica de Cristo
Rei? Mas explica-se: como sempre o disse ele mesmo, o nosso grande Cardeal era
discípulo de seu irmão de religião Francisco Suárez quanto à política teológica.
• Quanto por fim ao também grande Cardeal Ottaviani, dou a palavra in extenso ao Padre Calderón (El Reino de Dios – la Iglesia y el orden político, p. 47-48):
“A
doutrina da ‘subordinação indireta’ é ambígua e necessita esclarecimento. Mas onde
não há ambiguidade mas erro é em adjudicar à ordem política um fim natural. Os
neoteólogos que prepararam o triunfo da liberdade religiosa no Concílio
Vaticano II se apoiaram nesse princípio, no qual não se pode deixar de reconhecer
certa coerência. E o grave do caso, ainda que não se explique de outra maneira,
é que os teólogos que deviam combatê-los negavam as consequências mas compartilhavam
o princípio. Pois bem, quando olhamos para trás, para de onde vem este erro, o fio
faz-se longo. Na exposição dessa tese, o Cardeal Ottaviani segue o Cardeal
Billot, e ambos declaram seguir o ensinamento de Francisco Suárez e de Francisco de Vitoria. E
a linha não acaba neles. Descobrimos na referida tese, numa comparação de mau gosto
mas a que não resistimos, a síndrome
de imunodeficiência antiliberal (não chegaremos ao extremo de usar sua sigla) que afetou a teologia
desde o início da crise da Cristandade no século XIV. Os teólogos da época moderna
caíram na tentação de afrouxar tensões entre os Papas e os governos cristãos com
esse recurso, e deixaram a Igreja sem anticorpos em face do liberalismo. É isto,
em síntese, o que mostraremos ao longo – bastante longo – de nosso estudo.
Como a relação de fins e autoridades da ordem eclesiástica e da ordem política
é assunto delicado, antes de empreender a tarefa é indispensável formar um
critério sadio acerca deste ponto de doutrina, o que só se pode conseguir voltando
a Santo Tomás. Convém também porque o momento em que Santo Tomás ensinou é,
historicamente, o ponto de inflexão na questão que estudamos. Do cume da doutrina
tomista poderemos compreender melhor o que veio progredindo a partir dos
Apóstolos, e o que decaiu até o Concílio Vaticano II.”
Observação final: a referida síndrome é causada pelo retrovírus do humanismo.
sexta-feira, 25 de março de 2022
Restrição mental ou mentira?
Carlos Nougué
Nota prévia. Se eu mesmo tiver dito em comentários de FB qualquer coisa que contradiga de qualquer modo o que direi aqui, seja anátema.
1) O oitavo Mandamento da Lei de Deus: “Não
levantarás falso testemunho”, proíbe-nos a atestação de falsidade em juízo, o
juízo temerário, a detração e a calúnia, a adulação, e todo tipo de mentira.
E diz o Catecismo Maior de São Pio X: “A mentira é um
pecado que consiste em afirmar como verdadeiro ou como falso, por meio de
palavras ou de ações, o que não se tem por tal”. É de três espécies a mentira: a
jocosa, a oficiosa e a prejudicial. A jocosa é a que se diz por gracejo e sem
prejuízo do próximo; a oficiosa, por sua vez, consiste na afirmação de uma falsidade
para benefício próprio ou de outrem, sem prejuízo do próximo; e a perniciosa ou
prejudicial, por fim, é a afirmação de uma falsidade com prejuízo do próximo. E
pergunta ainda o referido Catecismo: “É lícito
mentir alguma vez?”, e responde: “Nunca é lícito
mentir, nem por gracejo nem para proveito próprio ou alheio, porque é coisa má
em si mesma”. Quanto todavia à espécie de pecado, a jocosa e a oficiosa são
pecados veniais; a prejudicial, contudo, sobretudo se é grave o prejuízo que
causa ao próximo, é pecado mortal. – Naturalmente, não nos é necessário dizer
tudo quanto pensamos, sobretudo se quem no-lo pergunta não tem o direito de
saber o que pergunta.
Observação 1. A quem pecou por mentira prejudicial não
lhe basta confessar ao sacerdote o feito, senão que tem obrigação de
retratar-se de algum modo diante do próximo e reparar da melhor maneira
possível o dano que lhe causou.
Observação 2. Para que se trate de efetiva mentira, é
preciso que haja contradição entre o pensado e o dito. Desse modo, se alguém
pensa efetivamente e diz uma falsidade sobre algo real, esse não mente, apenas
se equivoca.
2) Santo
Agostinho definiu assim a mentira: “uma significação falsa unida à intenção de
enganar” (Contra mendacium, 26; PL 40, 537). Põe no entanto Santo Tomás que
a intenção de enganar (voluntas fallendi) pertence à perfeição mas não à essência da mentira (Summa,
II-II, q. 110, a.1): esta já se qualifica pela falsidade formal, ou seja, pela vontade
de dizer algo contrário ao que se pensa. Daí sua definição mais precisa: uma
locução contra a mente.
3)
A doutrina de Santo Agostinho e de Santo Tomás sobre a mentira é de todo
condizente com a mente da maioria tanto dos Padres como dos teólogos escolásticos.
Apenas uma minoria desses julgou não constituísse pecado a mentira nos casos em
que dizer a verdade pode implicar consequências graves para o próximo. Nesta
minoria se contam, por um lado, Clemente de Alexandria, Orígenes, São João
Crisóstomo, Santo Hilário e, por outro lado, Guilherme de Auxerre, Alexandre de
Hales e São Boaventura. – O magistério da Igreja, por sua parte, se nunca definiu
extraordinariamente a mentira e suas espécies, já o fez, sim, ordinariamente (e
os catecismos de São Pio X, o Maior, como vista acima, e o de 1912, são somente
dois de muitos exemplos), sempre segundo a mente ou de Santo Agostinho ou de
Santo Tomás. E, como todos sabemos ou deveríamos saber, o magistério ordinário
da Igreja – e ainda mais se se trata, como é o caso, de magistério ordinário
infalível por repetição de atos – deve ser acatado docilmente pelos católicos
(cf. Pio XII, Humani
generis, sobre a altíssima autoridade do magistério
mere autêntico:
“Não se deve pensar que o que se expõe nas encíclicas não exige de si
assentimento, pelo fato de nelas os Pontífices não exercerem o supremo poder de
seu magistério; dado que estas coisas são ensinadas pelo magistério ordinário, ao
qual também se aplica o ‘quem vos ouve, a Mim me ouve’”).
4)
O dito até aqui, contudo, não implica que a questão da mentira não seja árdua.
Com efeito, já dizia o mesmo Santo Agostinho que não só é assunto difícil mas amiúde
nos angustia (De mendacio I, 1; PL 40, 487). E foi essa mesma arduidade o
que deu ensejo ao teólogo protestante Hugo Grócio (1583-1645) para conceber a mentira
como rejeição da verdade devida, com o que a mentira deixa de
ser considerada má em si para sê-lo com respeito ao direito do próximo à
verdade. Se todavia mingua ou não se dá tal direito, a mentira passa a lícita.
Neste último caso, já não se teria mentira formalmente, tão só materialmente: é
o “falsilóquio”. Desse modo, assim como para Einstein o tempo com que se mede o
movimento depende sempre de um marco de referência relativo, assim também a qualificação
da mentira depende sempre de um direito subjetivo relativo. Esta doutrina foi
ganhando cada vez mais espaço entre os protestantes e os jurisconsultos e acabou
por granjear o assentimento de não poucos teólogos católicos. Pois bem, aceitar
o católico esta doutrina implica indocilidade não só à maioria dos Padres, não
só aos dois maiores doutores da Igreja (Santo Agostinho e Santo Tomás), não só
ao Doutor Comum da Igreja (Santo Tomás), mas ao próprio magistério da Igreja, a
quem devemos ouvir como se ouvíssemos a Cristo mesmo.
5)
Isto todavia ainda não soluciona o conflito real que sempre se pode dar entre o
reconhecimento da malícia intrínseca da mentira e os casos singulares em que dizer
a verdade traz ou pode trazer algum prejuízo para o próximo. Dêmos exemplos de
tais casos singulares. Por um lado, o filho viciado em drogas que pergunta ao
pai se ele tem dinheiro em casa; os soldados a mando de um tirano que perguntam
a alguém se está escondendo um padre foragido que ele de fato esconde; o de uma
criança de menos de 7 anos com câncer que pergunta aos pais se vai morrer. Por
outro lado, o responsável por uma sala de concertos que diante de um início de
incêndio dá ao público outro motivo para evacuar o lugar a fim de evitar tumulto;
o agente policial que se finge de bandido para infiltrar-se numa gangue de traficantes
e assim desbaratá-la; o governo que dá alguma informação falsa pelos meios de
comunicação como isca para capturar terroristas que ameaçam a vida dos
cidadãos, de uma cidade, do país. São casos potencialmente infinitos.
6)
Diante de tais casos, é que surgiu entre teólogos católicos a doutrina da “restrição
mental” ou “anfibolia”, que se divide em “restrição mental estrita” (restrictio stricte mentalis) e “restrição mental lata”
(restrictio late mentalis). Explica-o assim o P. Teodoro da Tôrre del Greco
O.F.M (Teologia Moral, São Paulo, Paulinas, 1959, p. 389-390): “Distingue-se
da mentira a restrição mental, que consiste em dar às palavras um
significado diverso do comum. // Há restrição mental, por exemplo, quando
alguém interrogado acerca de um fato responde: não sei, subentendendo, para
revelá-lo. (...) // A restrição mental pode ser tomada em sentido lato, ou
em sentido estrito. // É tomada em sentido lato (ou impropriamente
dita), quando o significado das palavras é facilmente perceptível, pelas
circunstâncias da pergunta, da resposta, do costume, ainda que não seja
apreendido; por exemplo, ‘não tenho o livro’, subentendendo, ‘para dar-te’. // É
tomada em sentido estrito (ou propriamente dita), quando o
significado das palavras não é de nenhum modo perceptível, por exemplo, se
perguntam a uma pessoa: ‘estiveste em Paris?’ – esta responde que 'sim',
subentendendo ter estado com o desejo”. E diz pouco mais ou menos o mesmo Antonio
Royo Marín O.P. (Teologia Moral para seglares, Madrid, Biblioteca
de Autores Cristianos, 1996, tomo I, p. 745-746). Pois bem, a “restrição mental estrita” foi
condenada como abuso por decreto de Inocêncio XI no ano de 1679. Muitos porém julgam
que a não condenação formal pela Igreja da “restrição mental lata” equivaleria
a uma autorização. Mas obviamente não é assim: a Igreja apenas não a desautorizou,
assim como não desautorizou a doutrina da predestinação de Santo Tomás nem a de
Luis de Molina. Por isso, assim como podemos criticar qualquer das duas referidas
doutrinas da predestinação (embora, como mostro alhures, a de Tomás esteja
fundada no próprio magistério), assim também podemos criticar e rejeitar a
doutrina da “restrição mental lata” – mais ainda: como creio, devemos fazê-lo.
7)
Com efeito, diz Del Greco que a “restrição mental” “é tomada em sentido
lato (ou impropriamente dita) quando o significado das palavras é
facilmente perceptível, pelas circunstâncias da pergunta, da resposta, do
costume, ainda que não seja apreendido; por exemplo, ‘não tenho o livro’,
subentendendo ‘para dar-te’”. Mas, se do dizer “não tenho o livro” é facilmente
perceptível o subtendido (“para dar-te”), então qual é a razão da restrição mental?
por que não dizer o que é facilmente perceptível? Ou seja, se o subentendido é
facilmente perceptível (razão por que só não será apreendido pelo auditor se
este tiver algum problema cognitivo), então não é necessário; se não o é, quer
dizer, se o subentendido não é facilmente perceptível ou não é perceptível de
modo algum, então a “restrição mental lata” se reduz à condenada “restrição
mental estrita” ou “propriamente dita”. Tertium non datur.
Observação: note-se, ademais, que
Del Greco (e pouco mais ou menos Royo Marín) distingue mentira de “restrição
mental”, ou seja, para ele a restrição mental não é mentira. Como terá sido
possível, contudo, que os Padres da Igreja, os teólogos escolásticos, incluindo
Santo Tomás, e o magistério da Igreja nunca tivessem atinado para tal
distinção?
8) Objetar-se-á, contudo: Cristo parece
ter-se valido de uma “restrição mental lata” ao dizer que “Quanto àquele dia e àquela
hora [da Parusia], ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai”
(Mateus 24, 36; cf. também Marcos 13, 32), porque de fato é inconcebível que o
Filho não soubesse o mesmo que o Pai. Responda-se, antes de tudo, dizendo com
São Jerônimo que “em alguns códigos latinos se tem acrescentado ‘nem o Filho’,
enquanto nos exemplares gregos, especialmente os de Adamâncio e de Piério, não
se encontra isso acrescentado. Mas, uma vez que isto se lê em alguns deles,
parece-me algo que discutir” (apud Santo Tomás de Aquino, Catena
aurea, Evangelho de São Mateus,
lectio XI, v. 36). É o que faz Santo Tomás no Compêndio de Teologia, (l.
I, cap. 242): “A causa do fim do mundo é a vontade de Deus, que nos é desconhecida.
Por isso tampouco o fim do mundo pode ser previsto por nenhuma criatura, mas
apenas por Deus, segundo aquilo de Mateus (24, 36): ‘Quanto porém àquele dia e
àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas só o Pai’. Porque todavia
em Marcos se lê ‘nem o Filho’, alguns [por exemplo, Ário] fizeram disso matéria
de erro, dizendo que o Filho é menor que o Pai, porque ignora o que o Pai sabe.
Mas pode evitar-se isto dizendo [com São Basílio Magno] que o Filho ignora tais
coisas segundo a natureza humana assumida, não porém segundo a divina, segundo
a qual tem uma única sabedoria com o Pai, ou, para dizê-lo mais claramente, é a
mesma sabedoria concebida no coração. Mas [agora contra São Basílio Magno,
Rábano Mauro, a Glosa, et alii] também pareceria inconveniente que o
Filho ignorasse o juízo divino segundo a natureza humana, uma vez que sua alma,
pelo testemunho do Evangelista [João 1, 14], é cheia da graça e da verdade de
Deus, como se disse acima. Tampouco pareceria ter razão que Cristo, como aceitasse
o poder de julgar porque é Filho do homem, ignorasse o tempo de seu juízo
segundo a natureza humana. Com efeito, o Pai não lhe teria dado todo o juízo se
lhe fosse subtraído o juízo que determina o tempo de seu advento. Por
conseguinte, deve entender-se isto segundo um modo de falar costumeiro nas
Escrituras, segundo o qual se diz que Deus então conheceu uma coisa quando deu
notícia dela, tal como disse a Abraão [o que se lê] no Gênesis (22, 12): ‘Agora
conheci que temes ao Senhor’: não que o que conhece todas as coisas desde a
eternidade começasse [então] a saber, mas porque mostrou a devoção [de Abraão]
por aquele fato. Assim também se diz, portanto, que o Filho ignora o dia do juízo,
porque não deu notícia aos discípulos, senão que lhes respondeu: ‘Não vos
pertence saber os tempos nem os momentos que o Pai reservou para seu poder’.
Mas o Pai não ignora deste modo, porque ao menos pela geração eterna deu notícia
disto ao Filho. Alguns porém se desembaraçam mais brevemente [quanto a isto] dizendo
que isso deve entender-se do filho adotivo. Por isso, porém, quis o Senhor que
o tempo do juízo futuro fosse oculto, para que os homens vigilassem
solicitamente e não se achassem acaso despreparados no tempo do juízo, porque
também quis que o tempo da morte de cada um fosse desconhecido. Com efeito,
cada um aparecerá no juízo tal qual partiu daqui pela morte: por isso o Senhor
disse [o que se lê] em Mateus (24, 42): ‘Vigiai, porque não sabeis a que hora
virá o vosso Senhor’”.
9) Permanecemos pois com o conflito humano
entre o reconhecimento da malícia intrínseca da mentira e o fato de que alguma
verdade dita pode ser prejudicial ou perniciosa ao próximo. Trata-se porém de
conflito humano consequente do pecado original, porque, com efeito, no
estado de justiça original não se daria. Diante pois desse conflito, desse
dilema, o primeiro a que havemos de recorrer é o silêncio. Se todavia sabemos
que permanecerá o problema apesar do silêncio, havemos de recorrer ao dito por
Santo Tomás citando a Santo Agostinho, o mesmo Santo Tomás que sustenta que não
é lícito mentir nem sequer para afastar o próximo de algum perigo: “é lícito esconder prudentemente a verdade com
alguma escusa” (Summa, II-II, q. 110, a.
3, ad 4). Este como preceito parece vago, mas na maioria dos casos um homem
vivido e prudente saberá aplicá-lo perfeitamente segundo o exijam as circunstâncias.
Não obstante, nem todos os homens são vividos e/ou prudentes, afora o fato de
que mesmo para os vividos e prudentes este recurso nem sempre evitará o dano ao
próximo. Encontramo-nos assim, neste caso, num
beco sem saída? De certo modo sim, em consequência, repita-se, do pecado original.
Neste caso, portanto, sem negar nunca que a mentira é intrinsecamente má, há que
esperar o socorro da graça e da luz do Espírito. Devo cometer pecado venial e com isso livrar alguém de algum dano mais ou menos grave? Como quer que seja,
lembra-me aqui o final daquele que para mim é o mais belo romance de Agatha Christie, seu último: Cai o
Pano (Curtain: Poirot’s Last Case). O detetive belga Hercule Poirot está à beira
da morte, razão por que não tem tempo para esperar que a polícia detenha um
assassino que certamente, se nada for feito, matará outras pessoas. Mas só a
lei pode prender e matar um homem. Pensa porém Poirot (parafraseio-o contando
com a memória): Aqui, nestas circunstâncias, eu sou a lei. Vou eu mesmo matá-lo
[envenenando-o, salvo engano], e ponho-me docilmente desde já sob o juízo de
Deus que logo enfrentarei. Mata-o. Cai o pano.
quinta-feira, 24 de março de 2022
A Questão dos Jesuítas
Carlos Nougué
1) Um defeito de muitos católicos tradicionais atuais – e julgo-me tradicional – é considerar que o Concílio Vaticano II brotou como um cogumelo depois de uma chuva. Dividem a história entre um antes do CVII perfeito e um depois do CVII catastrófico. Em parte têm razão; mas não quanto ao antes do CVII, porque é nesse antes que se devem encontrar as causas remotas e as mais ou menos próximas da hecatombe conciliar.
2) Alguns, porém, embora não tenham uma
visão tão idílica do pré-CVII, têm-na com respeito a um caso particular, por
exemplo o dos jesuítas, que teriam sido magníficos até o CVII e ruinosos depois
dele. Mas tal idealização não procede.
Observação: aliás, não procede nenhuma
idealização quanto à história da Igreja. Esquecemos que o joio e o trigo sempre estiveram e sempre estarão misturados até a Parusia? Esquecemos que o mistério da
iniquidade e multidão de anticristos já estavam em ação nos tempos apostólicos?
Quanto mais não estarão, no entanto, no tempo da apostasia das nações, começado
no já remoto século XIV!
a) Surgem os jesuítas numa situação em que,
falando propriamente, já não existia cristandade, que começara a findar duzentos
anos antes, no já referido século XIV. À parte o breve interregno dos Reis
Católicos, de Carlos V e de Felipe II, já a Igreja não contava entre suas
fileiras com nações propriamente cristãs. O humanismo e o Renascimento fazem renascer o paganismo; Lutero tira
à Igreja meia Europa; e
b) O Concílio de Trento foi uma magnífica
reação da Igreja, mas nem sequer nele se voltou a falar da doutrina dos dois
gládios: ainda estava fresca na memória católica a afronta de Felipe, o Belo, a
Bonifácio VIII, e o papado, acuado diante da crescente independência e
arrogância dos reis e da burguesia, era já uma cidadela grandemente sitiada.
Mais: no âmbito do próprio tomismo, pelas mãos de Francisco de Vitoria – um
nominalista que se cria tomista –, começava a corromper-se a doutrina
magisterial e tomista da subordinação essencial do poder temporal ao espiritual
(a doutrina dos dois gládios ou da realeza social de Cristo).
c) Os jesuítas, todavia, fazem sua entrada nesse
quadro dramático com a incumbência arduíssima de restaurar a cristandade – o
que porém já era impossível (ainda que fosse então impossível sabê-lo
impossível). Conseguem recuperar metade da metade da Europa perdida para o
protestantismo, mas já se tratava de uma metade só semicatólica. Quanto ao
fundador da Companhia de Jesus, Santo Inácio, era um tomista de estrita observância,
e fez gravar na ordem que fundara o cunho tomista; ele, diga-se, e os demais grandes
santos fundadores. É verdade que Santo Inácio já dizia pouco mais ou menos a
seus padres: A doutrina tomista da predestinação é a correta (e, digo eu,
perfeitamente acorde com a definição do Concílio de Quiersy: Os
que se salvam, salvam-se por dom de Deus; os que se perdem, perdem-se por
merecimento, ou seja, por sua própria culpa), mas, continuava o nosso Santo,
não insistam nela publicamente porque pode confundir-se com
o luteranismo. A consequência, contrária à intenção do Fundador, não tardou:
morto Santo Inácio, pelas mãos de Luis de Molina a Companhia de Jesus se faz
antitomista e, pelas próprias premissas do molinismo, voluntarista. Aliás,
ainda hoje vemos entre os defensores acríticos da Companhia de Jesus afirmações
como esta: Se não tivessem impedido a livre ação dos jesuítas na China, esta se
teria tornado um Império carolíngio do Oriente. E a graça, nada?
d) É bem verdade que a disputa entre
jesuítas e dominicanos em torno do tratado da predestinação teve muito de
sectária: ordem contra ordem, não doutrina contra doutrina, pouco mais ou menos
como a Ordem Franciscana se encarniçara contra Santo Tomás de Aquino. E
certamente todo o sectarismo do enfrentamento de ordem contra ordem influiu na
crítica feita ao trabalho dos jesuítas no Império chinês. Mas sem dúvida os
jesuítas exageraram: a chamada Questão do Rito não foi algo inventado por maliciosas
mentes dominicanas e franciscanas. De fato, os sucessores de Santo Inácio
faziam já – muitos séculos antes do CVII – certa inculturação no rito da missa
para converter os chineses, assim como companheiros seus se vestiam de brâmanes
na Índia para converter os hindus... Por isso mesmo, a condenação da
inculturação jesuítica por dois papas
(Clemente XI, em 1715, e Bento XIV, em 1742) foi mantida, em 1939, por Pio XII,
que da decisão de seus predecessores só revogou um ponto preciso: autorizou os
católicos chineses a participar dos cultos cívicos confucianos, desde que não
se envolvessem em nenhuma idolatria.
e) Ademais, já predominava na teologia moral uma inflexão de
consequências nefastas: a substituição da caridade pelo tribunal da
consciência. Não foi algo próprio dos jesuítas. A enorme Teologia Moral de
Santo Afonso de Ligório peca exatamente por isso (ainda que, claro, santo que
era, o nosso teólogo não tenha dado nenhuma norma ou preceito moral falso).
Some-se porém uma ética afinal caudatária em algum grau do racionalismo (não
será Kant quem instituirá o imperativo categórico da consciência?) ao
voluntarismo molinista, e ter-se-á o fundo teológico dos erros jesuíticos em
suas missões. Entenda-se bem: é imenso o mérito dos jesuítas em todo o mundo,
incluindo a América, quanto à conversão de grandíssima quantidade de almas
(para não falar de seus próprios mártires). Foram vítimas, ademais, de
implacável perseguição maçônica, jansenista e protestante. Nada disso, no entanto, suprime
o problema: pelo sistema circulatório do catolicismo já corria voluntarismo e,
digamos, “consciencientismo”, com o que a graça ficava como que relegada ao
papel de coadjuvante.
f) Os problemas não param por aí. Depois de São Roberto Belarmino,
jesuíta, ter reafirmado de algum modo a correta doutrina da ordenação essencial
do poder temporal ao espiritual, no seio da própria Companhia de Jesus surge um
negador de peso dessa mesma doutrina: Francisco Suárez, que dando continuidade
ao posto pelo dominicano Francisco de Vitoria e aprofundando-o introduzirá na política
teológica católica uma espécie de “vontade geral” avant la lettre, ou
seja, antes mesmo que o fizesse Rousseau. A vontade do povo é a vontade de
Deus. Pois bem, voluntarismo + “consciencientismo” + democratismo liberal em
germe = rendição (involuntária) ao mundo moderno. Não por nada a Revolução
Francesa vai fazer desmoronar facilmente o que restava das velhas nações
cristãs por toda a Europa e depois pelas Américas. Será preciso esperar Leão
XIII, São Pio X, Pio XI para que o papado, agora já completamente sitiado,
voltasse a falar da doutrina dos dois gládios, ou seja, da ordenação essencial
do poder temporal ao espiritual, ou seja, da realeza de Cristo, e tentasse
fazer voltar o tomismo. Mas este já é outro assunto, igualmente espinhoso.
g) Quanto à questão da “restrição mental”, os jesuítas não foram os
únicos a propagá-la, mas também o fizeram, sim. A distinção sutil entre
“restrição mental lata” e “restrição mental estrita” não resolve o problema.
Aliás, embora o magistério da Igreja só tenha condenado esta, não autorizou
aquela; tão só não a desautorizou. Mas será tão difícil entender que onde o
tribunal da consciência impera sobre a caridade tem lugar a “restrição mental
lata”, que afinal não é senão uma maneira de mentir julgando que não se está
mentindo? Um exemplo de “restrição mental lata”: “Não tenho este livro”, diz
alguém ao que lho pede emprestado, fazendo a “restrição mental”: “para
emprestar-to a ti”. Os defensores deste tipo de “restrição mental” arguem que
é fácil ao outro deduzir o que o “restringidor” não disse. Sem dúvida, se ele
tiver algum dom paranormal... Aliás, revisei há uns dois anos um longo tratado
de ética de um importante grupo da Igreja segundo o qual seria
preciso rever a dura doutrina agostiniano-tomista sobre a mentira: para os dois maiores doutores da Igreja, a mentira é
sempre pecado, a ponto de que nem sequer na guerra tem lugar. Por que o dizia o referido tratado? Porque hoje há a espionagem, e o
espião tem de mentir constantemente para bem cumprir seu ofício!!! Porventura
não terá passado pela cabeça do tratadista que o próprio ofício da espionagem é
pecaminoso e ilícito?
h) Se agora se soma todo o quadro traçado acima ao fato de que mesmo
grandes papas como Leão XIII, Pio XI e Pio XII – a par de uma doutrina sempre impecável
por assistência do Espírito Santo – levassem a efeito na prática uma política de
ralliement ou de relações cordiais com regimes liberais, e ao fato de
que a cúria conservadora (por exemplo, o Cardeal Ottaviani) e os tomistas em
geral já fossem muros com brechas incapazes de conter a torrente impetuosa do
modernismo quanto às relações entre o poder temporal e o espiritual, ter-se-á o
terreno perfeitamente adubado para a eclosão conciliar. Não haverá reversão?
Isso não depende de nós, mas de Deus e seus desígnios na história. Podemos
dizer tão somente que, embora o tomismo não seja capaz de salvar o mundo, sem o
tomismo o mundo não se salvará.
Observação
final. A tal ponto estava fendido o muro do conservadorismo antiliberal no seio
da Igreja, que um Cardeal Billot, jesuíta que abraçara sinceramente o tomismo
propugnado pelos papas e se transformara num paladino da reação ao modernismo e
ao liberalismo, não entendeu todavia perfeitamente a doutrina magisterial e
tomista dos dois gládios ou realeza social de Cristo. Era tão frágil seu muro
antiliberal, que se opôs à condenação por Pio XI da Action Française de Charles
Maurras não por inoportuna – e teria tido então razão –, mas por ver naquele
movimento de caráter nada católico um verdadeiro aliado da Igreja. Onde ficava
para Billot a Quas primas de Pio XI? Nos dias da festa
litúrgica de Cristo Rei? Mas explica-se: como sempre o disse ele mesmo, o nosso
grande Cardeal era discípulo de seu irmão de religião Francisco Suárez quanto à
política teológica.