DOIS OPÚSCULOS
i
Carlos Nougué
Crítica da
crítica kantiana
das provas da “existência” de Deus
Notas prévias
• Com respeito a Deus, é inconveniente
usar existir ou existência: porque, falando propriamente, só os
entes criados ex-sistem (‘provêm de’), justo enquanto são ex-causis,
ao passo que Deus é incausado. Em resumo, Deus é, mas não “existe”.
– Como porém aqui se trata de proceder à crítica de uma crítica kantiana, e
como Kant não tinha a menor ideia do que se acaba de dizer, usaremos os termos
usados por ele: “existência” e “existir”, sempre todavia entre aspas.
• Diz-se que Kant nunca lera a Santo
Tomás e a Aristóteles senão por alguns artigos de vulgarização. E parece que
tal seja verdade, porque, com efeito, se não o fosse, não se explicaria o total
desconhecimento deles que mostra nesta crítica.
• Mais que isso, no entanto, como se
verá, não há de ser senão por desconhecimento da lógica aristotélico-tomista –
a lógica por antonomásia – que Kant comete tantos paralogismos nesta crítica
(como nas demais).
• Tudo quanto vier entre colchetes no
meio dos textos de Kant e de outros será nosso.
I
É nas provas da “existência” de Deus
que se concentra o exame kantiano da “ideia de Deus”, a terceira ideia de sua Dialética.
Trata-se também para Kant de criticar a teologia filosófica (que no
aristotelismo-tomismo também se diz filosofia primeira ou metafísica), a qual
porém ele diz poder chamar-se tanto “teologia natural”, segundo a concepção do
“teísmo” (que é como chama à teologia das religiões monoteístas), como
“teologia transcendental”, segundo a concepção dos deístas, como explica no final
da Dialética (c. 3, s. 7).
1. Kant chama à ideia de Deus “ideal transcendental” ou “da razão pura” (ibid.,
s. 1 e 2): é que, segundo ele, o ideal se distingue da ideia por parecer “mais
afastado da realidade objetiva que a ideia” (ibid., s. 1).
Ou seja, para Kant o ideal transcendental ou ideia de Deus é
ainda um a priori, mas ainda mais afastado do númeno (ou noúmeno)
ou coisa-em-si que constituiria a realidade objetiva chamada Deus... Tampouco
quanto a isto o Alemão conhece o tomismo: porque, se a “ideia” kantiana quer
dizer o mesmo que conceito ou definição, então Tomás de Aquino foi o primeiro a
dizer que não podemos ter conceito ou definição de Deus, porque não se tem
conceito ou definição senão daquilo cuja essência se conhece: e nesta vida não
podemos conhecer a Deus por essência. Se todavia “ideia” quer dizer para Kant
algo semelhante ao que é o conceito dos análogos supremos (como os transcendentais),
então tampouco tem razão de ser: porque tampouco podemos ter tal conceito de
Deus, que não é um transcendental, senão que é transcendental a todas as séries
de causas e de entes criados, razão por que só
pelos efeitos que causa, ou seja, a criação, pode conhecer-se que é e, de certo modo, algo quiditativo seu. Mas prossiga-se com Kant.
Para ele, o “ideal transcendental” contém todas as perfeições que podemos
“representar” nos objetos, o que é impreciso e conflita com o que ele mesmo
parece querer dizer: porque, se Deus fosse o simples somatório das perfeições
das criaturas, e não essas perfeições enquanto, porém, são eminentes e
sobre-elevadas transcendentalmente e enquanto não podem considerar-se
senão analogamente, então a diferença entre Deus e os demais entes seria
tão somente de grau: e uma diferença de grau não justificaria a distinção
kantiana entre “ideia” e “ideal transcendental”. Como no entanto para
Kant “o ideal serve de protótipo para a determinação completa da cópia” (idem),
até parece que se estaria no platonismo. Mas não se trata disso, porque para
Platão as ideias – incluída a que Kant poderia chamar “ideal transcendental”,
ou seja, a ideia do uno-bem – são não só cognoscíveis, mas, falando
propriamente, são mais cognoscíveis que as coisas de que são protótipo ou
modelo, enquanto para Kant a razão, ainda que sem poder alcançar seu númeno,
busca algo supremo que unifique tudo do mundo psicológico e do mundo cósmico e
que seja a condição de possibilidade de todas as coisas – de coisas que, porém,
como àquele algo supremo, não podemos conhecer em si. Mas tal é para Kant a
ideia de Deus, ou seja, o ideal ou modelo das coisas, que como cópias suas
imperfeitas tiram dele sua possibilidade. Por isso Deus se chama princípio
fundamental de todas as coisas, ao qual convém uma “existência” não só
necessária, mas de todo incondicionada, porque todo e qualquer outro ente é por
ele condicionado (ibid., s. 3).
2. Releve-se aqui a imprecisão destas últimas expressões, mas assinale-se
desde já que Kant incorre aqui em flagrante paralogismo: para que Deus fosse
tal modelo incondicionado, sem cuja “existência” não se daria a condição de
possibilidade das coisas, não só seria necessário que fosse real, senão que
Kant o reconhecesse tal. Sucede todavia que, apesar da urgente necessidade que
tem de supor tal ser como princípio para a determinação completa de seus
conceitos, o Alemão, ao examiná-lo criticamente, vê que se trata de uma ideia
pura, ou seja, que “esta suposição é ideal fictício [...], simples criação do
pensamento” (ibid.). É o que Kant vai “demonstrar” com o exame e a
“refutação” das provas da “existência” de Deus. Pois bem, sempre segundo seu
próprio apriorismo, Kant reduz tais provas a três argumentos possíveis: o argumento
ontológico; o argumento cosmológico; e o argumento teleológico ou
físico-teleológico – e “demonstra” que não têm a menor valia,
porque “a razão nada pode estabelecer, nem por uma via nem por outra”, e
“inutilmente bate as asas para elevar-se, pela só força da especulação, sobre o
mundo sensível” (ibid., s. 3 fin.). Mas então não se vê, insista-se,
como terá podido concluir pela “existência” daquele modelo incondicionado que
seria a condição de possibilidade de todas as coisas. Trata-se do círculo
infernal a que Kant e seus seguidores se condenaram. Acompanhemos todavia de
perto sua crítica das provas da “existência” de Deus.
a) Explica Kant que o argumento ontológico pretende demonstrar
que Deus “existe” a partir do “conceito” dele de ser perfeitíssimo e
realíssimo, e pois “existente”. Mas, segundo o Alemão, este argumento não prova
nada, pois do mero “conceito” de algo não se pode deduzir sua possibilidade; e
é falso se se julga que no “conceito” de Deus está implícita sua “existência”,
porque então já não se trataria de simples “conceito”. Não é suficiente,
prossegue ele, acrescentar ao conceito de uma coisa possível (Deus?) o de sua
existência para que essa coisa exista. A categoria “modal” da existência não é
atributo que acrescente nada à essência da coisa. “Cem táleres reais não contêm
mais que cem táleres possíveis” quanto a seu conceito ou essência (ibid., s.
4). Para que sejam reais,
há que acrescentar “sinteticamente” (é ainda o jargão kantiano) a existência
real, e para isso há que ter experiência sensível que dê conteúdo ao conceito.
Mas Deus está fora de toda e qualquer experiência. Logo, o argumento
ontológico não é válido.
Examine-se e refute-se esta crítica
kantiana.
• Antes de tudo, já dissemos que se
alcança que Deus é mediante demonstrações quia, ou seja, do efeito para
a causa (demonstrações que são o contrário da demonstração propter quid,
ou seja, da causa para o efeito). Por isso, não é necessário
ter experiência sensível de Deus para concluir por sua “existência”.
• Depois, o argumento “ontológico”
deveria chamar-se ao menos “ideológico-ontológico”, porque versa não só sobre o
Ente (gr. Ón [donde ontológico] = lat. ens), mas também (e até antes, como se verá)
sobre a ideia do Ente. Cunhou-o pois equivocadamente Kant.
• O mais célebre defensor deste argumento
foi Santo Anselmo. Posteriormente, o argumento foi retomado por Duns Scot,
ainda que, como diz ele mesmo, “colorindo-o”. Mas pode refutar-se o
“colorido” ou retoque feito por Scot ao argumento de Anselmo, assim. Diz com
efeito o Franciscano que “pode ser colorida [ou seja, completada ou
interpretada] a razão anselmiana do sumo cogitável [cf. Anselmo, Proslogium,
2-3]. Deve entender-se assim sua descrição: ‘Deus é algo tal que’, pensado sem
contradição, ‘não se pode conceber nada maior’ sem contradição. Sim, porque
aquilo cuja concepção inclui contradição não se pode dizer cogitável, e assim
é; se fosse cogitável, haveria dois cogitáveis opostos, que de maneira alguma
poderiam constituir um cogitável, pois que nenhum deles
determinaria o outro. Segue-se que tal sumo cogitável, pelo qual se descreve a
Deus, se dá realmente; dá-se realmente, antes de tudo, com ser quididativo,
porque o intelecto descansa sumamente nele; por conseguinte, tem razão de
primeiro objeto do intelecto, ou seja, tem razão de ente e em grau sumo”.
Refute-se. Eis as palavras precisas com que Santo Anselmo conclui seu
argumento: “Existit ergo dubio aliquid quo majus cogitari non valet, et in
intellectu et in re (Sem dúvida alguma, portanto, existe algo tal, que não se
pode conceber nada maior – e existe tanto no intelecto como na realidade)”. –
No entanto, com respeito à “existência” de Deus, e diferentemente de Santo
Anselmo, Santo Tomás de Aquino recorre (como dito) a demonstrações quia,
isto é, a partir dos efeitos causados por Ele, e não parte de nenhuma
“evidência” racional. Tomás reprova a Anselmo (sem nomeá-lo) o confundir que
algo seja enquanto meramente concebido e que algo seja enquanto
dado fora de nosso intelecto. Diz ele na Suma Teológica (I, q.
2, a. 1, ad 2): “... talvez aquele que ouve este nome, Deus,
não intelija que signifique algo tal, que não se possa cogitar nada maior, até
porque alguns creram que Deus é corpo. Dando ainda, porém, que todos intelijam
que o nome Deus significa o que se disse, a saber, [o ser algo
tal,] que não se pode conceber nada maior, nem por isso, no entanto, se segue
que intelijam que isto que é significado pelo nome seja in rerum natura, [senão que podem inteligir
que seja] só na apreensão
do intelecto. Tampouco se pode arguir que ele seja in re [na coisa, na realidade], se não se dá que
haja in re este algo que é tal, que não se pode cogitar nada maior: o
que não é dado pelos que põem que Deus não é”. Vê-se, assim, que tampouco a “coloração lógica” que dá Duns
Scot ao argumento de Santo Anselmo escapa à justa crítica de Santo Tomás.
• Ou seja, Santo Tomás já criticara – e
com muito mais precisão e proficiência que Kant – o argumento “ontológico”,
mas com uma diferença fundamental: Tomás não o refuta para cair no círculo
infernal a que se consagrou Kant, senão que logo depois (nos dois artigos
seguintes da questão 2 da Suma Teológica I) não só provará que
se pode demonstrar que Deus é, mas demonstrará efetivamente, por cinco vias,
que Deus é.
• Por fim, Anselmo estava muito acima
de Kant: concluía de seu argumento que Deus é in rerum natura, não só na
apreensão do intelecto. Era um realista, ainda que, como mutatis mutandis
Platão, de um realismo exagerado. Mas jamais cairia no círculo kantiano: era um
grande teólogo e estava no caminho certo para o realismo stricto sensu.
b) Quanto ao argumento cosmológico, diz Kant que vai da
contingência do mundo à necessidade do ser supremo. Por isso tem de provar duas
coisas. Antes de tudo, que da experiência que se tenha do ente contingente se
pode concluir aquela necessidade. Mas, segundo o Alemão, tal trânsito é
ilegítimo, porque o princípio de conexão causal é aplicado para além dos fenômenos
(ou seja, das capas sensíveis com que unicamente se podem “conhecer” as coisas,
pela doutrina kantiana), quando não teria sentido senão entre os mesmos
fenômenos. A contingência, prossegue Kant no mesmo lugar, tem explicação
“empírica” num remontar indefinido ou infinito na cadeia de causas e de
condições dos fenômenos, razão por que não pode concluir num “incondicionado”
como realidade para além da experiência. Depois, o argumento deve provar que
tal necessário é de fato o ente perfeitíssimo ou realíssimo, porque só no
“conceito” de Deus (mas já vimos que, por não conhecermos a Deus por essência,
nos é impossível formar seu conceito) se supõe tal necessidade. Mas desse modo,
continua o Alemão, a “existência” do ser supremo é tirada do conceito de necessidade,
o que implica um retorno ao argumento “ontológico”. Logo, o argumento
cosmológico funda-se no “ontológico”, não na experiência – razão por que é
falso também.
Refute-se.
• Kant alude aqui a Leibniz, que
chamava a este argumento ex contingentia mundi e que, com ele, se
aproximava da terceira via de Santo Tomás.
• A terceira via de Tomás, como as
outras quatro, é uma demonstração quia. Ei-la:
A terceira via é tomada do possível e do necessário, e é a
seguinte. Encontramos coisas que podem ser e não ser, pois, se as vemos
gerar-se e corromper-se, é porque podem ser e não ser. Ora, é impossível que
coisas que são assim sejam sempre, porque o que pode não ser não é em algum
momento. Se, pois, todas as coisas podem não ser, houve um momento em que nada
era. Ora, se isso fosse verdadeiro, nada seria agora, porque o que não é não
começa a ser senão pelo que é; se, portanto, nenhum ente tivesse sido, teria
sido impossível que algo começasse a ser, e por isso mesmo nada seria, o que
patentemente é falso. Nem todos os entes, portanto, são possíveis, senão que é
preciso que algo seja necessário nas coisas. Ora, tudo o que é
necessário ou tem a causa de sua necessidade em outro, ou não. Ademais, não é
possível proceder ao infinito nas coisas necessárias que têm uma causa para sua
necessidade, assim como tampouco nas causas eficientes, como se provou. Logo, é
necessário admitir algo que seja necessário per se, que não
encontre em outro a causa de sua necessidade, mas seja a causa da necessidade
para os outros, e é a este algo que todos chamam Deus.
Ou seja, por esta demonstração quia
(como pelas outras quatro) chega-se a que Deus é in rerum natura a partir justamente da experiência com
as coisas sensíveis (“Encontramos coisas que podem ser e não ser,
pois, se as vemos gerar-se e corromper-se, é porque podem ser e não
ser”), enquanto Kant, para refutá-la, se detém em sua experiência com as
aparências impenetráveis, sem atentar sequer a que nesta via não se trata de
conceitos ou definições de essências. Trata-se tão somente, para ponto de
partida, da mesma experiência sensível que tanto Kant reclama. Mas Kant é como
a serpente que morde a própria cauda.
• Ademais, insiste Kant em que este
argumento procede ao infinito. Mas diz Tomás, cujo texto, repito-o,
provavelmente o Alemão não conheceu de modo direto: “Ademais, não é possível
proceder ao infinito nas coisas necessárias que têm uma causa para sua
necessidade, assim como tampouco nas causas eficientes”. Pois bem, exponha-se
como é impossível fazer remontar ao infinito as causas eficientes.
Diz Santo Tomás no Comentário à
Física: “Não é possível que a causa que se diz ‘unde principium
motus’, isto é, a causa eficiente, proceda ao infinito, como quando dizemos que
o homem é movido a deixar o agasalho por causa do ar quente, que o ar foi
esquentado pelo sol, que o sol foi movido por alguma outra coisa, e assim ao
infinito”. E isso é assim pelo seguinte. Na causalidade eficiente, o
efeito é sempre posterior à causa (ainda que seja posterior só por natureza,
e não na duração: como se vê de
que, sendo Deus a causa eficiente primeira e estando todavia fora do tempo,
nada lhe pode ser posterior na duração, sendo-lhe tudo porém posterior por
natureza). Por conseguinte, se há três coisas que se ordenam causalmente
entre si como primeira, média e última, necessariamente a primeira será causa
das posteriores, ou seja, tanto da média como da última. Não se pode dizer que
a última seja causa das outras, porque não pode ser causa de nenhuma: se fosse
causa de alguma, não seria última. Repita-se: o efeito é sempre posterior à
causa no âmbito da causalidade eficiente. Mas tampouco pode suceder que uma
causa média seja causa de todas, porque não pode ser causa senão da
seguinte. Se porém não houver uma só coisa média, mas muitas, para estas valerá
igualmente o que se disse para aquela: não podem ser causas de todas, porque
enquanto são médias não podem ser causa da anterior. Mas – atenção! – dá-se o
mesmo se as causas médias são potencial e sequencialmente infinitas em número
(ou seja, efetivamente sem começo e
potencialmente sem fim no tempo, não sem começo nem fim na
eternidade, donde a possibilidade de que o mundo tivesse sido criado desde sempre): porque, enquanto são
médias, nenhuma delas pode ser causa da primeira (entendida agora, devidamente,
como a causa que é a primeira da série mas estando acima da
série). Com efeito, toda causa eficiente que não seja a primeira (ou seja, que
seja segunda e pois causada) requer a causa eficiente primeira e incausada. Por
conseguinte, se há causa média (uma, muitas ou potencialmente infinitas), tem
de haver uma causa primeira que de modo algum seja, ela mesma, média. Se
todavia se admite, insista-se, um processo simpliciter
ao infinito das causas eficientes e que pois não se detivesse numa
primeira, todas as causas seriam médias e nenhuma seria primeira e incausada.
Mas a causa primeira é a causa de todas. Logo, se se eliminasse a causa
primeira (ou seja, a que não é causada por nenhuma anterior), seguir-se-ia que
se eliminariam também todas as causas – e, eliminadas todas as causas,
eliminar-se-ia também tudo aquilo de que tais causas são causas. Ter-se-ia
assim o nada.
Rui também, desse modo, a crítica
kantiana deste argumento.
c) Por fim, examina Kant o argumento teleológico ou físico-teleológico
ou de finalidade. Respeitava-o o Alemão: “Este argumento é digno de ser
citado com respeito. É o mais antigo, o mais claro e o mais adequado à razão
comum ou vulgar” (ibid., s. 6). Mas, ah! também
implica falácia, segundo Kant. Pretende, com efeito, remontar-se da ordem do
mundo a seu ordenador. Esse mesmo ordenador, todavia, não é mais que um ente
muito sábio, mas não onisciente, incapaz, portanto, de efetivamente impedir
toda desordem no mundo; e tampouco é criador, senão que, por isso mesmo, é tão
só o grande arquiteto do universo. Mas já nem isso Kant aceitará na Crítica
do Juízo (cf. p. 2, § 75), onde dirá que ao princípio de finalidade
falta “valor objetivo”. Para que se pudesse prová-lo, seria preciso voltar ao
argumento cosmológico, que, como já disse Kant, incorre no problema de proceder
ao infinito e que, por sua vez, como também já disse, se funda no argumento
“ontológico”. Por isso conclui o Alemão: a “prova ontológica é a única
possível” e é “tirada de simples conceitos da razão” – ou seja, é a única
possível não para demonstrar que Deus seja
in rerum natura, mas tão só na razão. Consigne-se no entanto que, se
como quer que seja é o único possível, o argumento ontológico é válido.
Mas na Dialética Kant o tinha considerado inválido.
Refute-se.
• Antes de tudo, como diz Teófilo
Urdánoz, O. P. (em Historia de la Filosofía, IV, Madrid, BAC, mcmxci,
p. 69, n. 35), “a prova tradicional pela ordem e finalidade do mundo termina
não só num demiurgo ordenador do mundo, como diz Kant, mas no Deus criador.
Santo Tomás considerou, antes de tudo, a ordem intrínseca na natureza
das coisas. Essa ordem essencial imersa nas leis e inclinações das coisas só a
pôde imprimir seu criador. Daí o adágio dos antigos: Opus naturae opus
Intelligentiae [Obra da natureza, obra da Inteligência], porque só a
inteligência é capaz de ordenar. Ao contrário, Kant, cuja Crítica intenta
primordialmente pôr limites ao intelecto humano, caiu na fátua presunção de
crer que nosso intelecto é o que prescreve as leis à natureza”.
• Depois, leia-se a quinta e última via
de Santo Tomás (a que se toma justamente do governo das coisas e de sua
finalidade), e ver-se-á que, como as outras, tem perfeito “valor objetivo”,
justamente porque, enquanto demonstração quia, termina num primeiro que é de fato in rerum natura:
A quinta via é tomada do governo das coisas. Com
efeito, vemos que as coisas desprovidas de cognição, como os corpos naturais,
operam conforme a um fim, o que se mostra pelo fato de que, sempre ou
frequentemente, têm o mesmo modo de operar, para alcançar o ótimo; donde se
patenteia que não por acaso, mas por uma intenção, alcançam seu fim. Ora,
aquilo que é desprovido de cognição não tende a um fim senão na medida em que é
dirigido por algo cognoscente e inteligente, assim como a flecha o é pelo
arqueiro. Logo, há algo inteligente pelo qual todas as coisas naturais são
ordenadas a seu fim, e a este algo chamamos Deus.
Mas Kant parece não tê-la lido sequer.
II
Por fim, não terá sido difícil observar
as várias vezes em que Kant incorre em paralogismos. É que, como antecipado,
Kant de fato nunca se debruçou sobre o ínfimo dos manuais lógicos
aristotélico-tomistas, ou, se o fez, não o entendeu. Mas, mais que incorrer em
paralogismos, Kant vê-se o tempo todo preso no referido círculo, que quanto
à “existência” de Deus parte da necessidade de um “ser
transcendental” como condição de possibilidade de todas as coisas, passa porém
pela negação da possibilidade de conhecê-lo, e no entanto volta a afirmar que
sem ele não se dá tal condição, ainda que negue a possibilidade de
conhecê-lo – e assim sucessiva, circular e indefinidamente, sem jamais
encontrar saída. É isso o que pode explicar de algum modo a “inadvertência” de
Kant quanto à contradição em que incorre ao implicar na Dialética,
primeiro, que a prova ontológica é inválida e na Crítica do Juízo,
depois, que a prova ontológica é válida.
Baste porém o dito com respeito à
crítica kantiana das provas da “existência” de Deus.
As vias pelas quais alcançamos
ciência das coisas
1) Para que se compreendam as vias pelas quais alcançamos a ciência, é
preciso antes de tudo precisar perfeitamente três noções que estão implicadas
naquelas: princípio, causa e elemento.
Pois bem, princípio é aquilo que
na ordem de um processo vem por primeiro, enquanto causa é aquilo
de que algo depende segundo o ser (esse) ou o fazer-se (fieri).
Desse modo, o que se chama causalidade implica um processo ordenado
em que primeiro vem a causa e depois o causado, razão por que toda e qualquer
causa pode dizer-se princípio do mesmo processo causal. Há todavia processos
ordenados que não são causais, razão por que nem todo princípio pode ter-se por
causa. Por seu lado, elemento é aquilo de que se compõe
primeiramente uma coisa permanecendo nela, razão por que todo e qualquer
elemento pode considerar-se causa: porque todo composto depende do elemento
tanto segundo seu ser como segundo seu fazer-se. Nem toda causa, porém, é
elemento, porque há causas que se dão ou fora da coisa, ou na coisa mas não
primeiramente.
Desse modo, a aurora é princípio do dia
e o ponto é-o da linha, mas não são suas respectivas causas. O fogo, por outro
lado, é causa do calor da água, mas, por aplicar-se exteriormente, não é
elemento seu. Ademais, a água é causa (material) do chá que se bebe, mas não é
elemento seu porque não é algo primeiro; enquanto, na ordem das substâncias, o
hidrogênio e o oxigênio são elementos da água, porque não só a compõem como
algo primeiro, mas se mantêm nela. Diga-se algo análogo na ordem das coisas
artificiais (os exemplos são nossos): as letras são os elementos da escrita,
assim como as notas o são da música.
Há quatro e só quatro espécies de
causas: eficiente/final, material/formal, das quais dependem as coisas em seu
ser. Mas podem chamar-se princípios às causas motoras ou agentes: porque, com
efeito, é a partir delas que mais manifestamente as coisas procedem. Ademais,
chamam-se causas antes à causa final e à formal, porque é destas que
maximamente dependem as coisas não só em seu ser, mas em seu fazer-se. E, por
fim, podem entender-se por elementos, latamente, as causas intrínsecas –
a matéria e a forma – e, estritamente, as causas materiais
primeiras.
2) No âmbito de cada ciência, dá-se certa
circularidade em razão da distância que há entre os princípios do
conhecimento e os das coisas mesmas. Com efeito, toda e qualquer investigação
científica tem de começar pelos princípios evidentes quanto a nós (quoad
nos), ainda que não sejam os efetivos princípios das coisas. Por isso,
antes de tudo havemos de determinar, por via de resolução ou de análise
(a via resolutionis), os princípios ou causas efetivas da coisa
investigada.
3) Mas à via de resolução ou análise contrapõe-se a via de composição ou
de síntese (via compositionis). Insista-se em que pela via resolutionis
se resolve ou se divide o composto em seus elementos. Ao contrário, pela via
compositionis se unem os elementos no composto. Na primeira, por
conseguinte, vai-se do composto ao simples, ou do divisível ao indivisível, ou
do acidente à essência, ou do efeito à causa, ou enfim do potencial ao atual;
na segunda, no entanto, dá-se o inverso.
4) Sucede, porém, que a resolução ou análise pode dar-se de dois modos.
Quando os princípios do composto são evidentes, a resolução dá-se por
demonstração propter quid, ou seja, aquela em que se chega aos efeitos a
partir das causas. Se porém os princípios do composto não são evidentes, então
a resolução se dá por demonstração quia, ou seja, aquela em que se chega
às causas a partir dos efeitos (como é o caso das vias tomistas para demonstrar
que Deus é).
5) Não obstante, ainda que a via resolutionis se dê pela
simples solução ou distinção evidente dos princípios, ainda assim permanece que
não só as causas ou princípios sempre nos serão menos cognoscíveis que os
efeitos, mas também o todo sempre nos será menos cognoscível que suas partes.
Sucede, todavia, que em si mesmos os princípios ou causas são mais
evidentes – assim como Deus é de si o inteligível por excelência evidente,
ainda que não seja evidente quanto a nós –, razão por que, ainda que se trate
de demonstração quia, as causas que se alcançam supõem um conhecimento
mais claro dos mesmos efeitos de que se partiu. Como diz o Padre Álvaro
Calderón, “esta
mútua dependência cognoscitiva dos princípios do conhecimento e das coisas, a
qual não pode suprimir-se totalmente por nosso modo de conhecer, põe outro véu
no desenvolvimento de cada ciência, pois a luz de evidência com que se conhecem
as demais conclusões da ciência depende da luz com que se conhecem seus
princípios e causas” – trata-se, ainda, da circularidade referida mais acima.
Insisto, todavia, em que tal circularidade, se não permite solução total,
permite ao menos solução parcial, ao contrário da circularidade aporética ou
aporemática de Kant.
6) Há porém outra distinção: a que se faz entre a via de invenção (via
inventionis) e a via de juízo (via iudicii). A primeira
dá-se quando se parte do conhecimento dos princípios e se chega ao conhecimento
de uma nova conclusão, enquanto a segunda se dá quando se parte do conhecimento
não científico de uma conclusão e se chega a seu conhecimento científico por se
terem encontrado os princípios que a explicam. Na primeira, como se vê, tem-se
novo conhecimento, enquanto na segunda se tem um novo modo de conhecer, ou
seja: a invenção desce dos princípios à conclusão, enquanto o juízo primeiro
sobe da conclusão aos princípios e depois desce com nova luz à conclusão.
7) Alguns tomistas confundem a distinção entre via inventionis e via
iudicii com a distinção entre via resolutionis e via
compositionis; mas elas não se equivalem. A primeira diz respeito antes ao
conhecimento, enquanto a segunda diz respeito antes às coisas mesmas. É
inegável, todavia, que têm certa relação entre si. Com efeito, na demonstração
a via inventionis vai das premissas às conclusões; mas, como visto, a
demonstração pode ser propter quid ou quia, e, ainda como visto,
a primeira procede das causas para os efeitos, enquanto a segunda procede dos
efeitos para a causa. Logo, a via inventionis supõe na demonstração propter
quid um processo compositivo, enquanto supõe na demonstração quia um
processo resolutivo.
A via iudicii, por seu lado,
supõe os dois processos, porque, com efeito, “para achar os princípios que
explicam a conclusão, deve fazer-se uma resolução, e depois uma composição ou
síntese para ver a conclusão à luz dos princípios; mas, como o mais importante
e difícil é o primeiro processo, Santo Tomás costuma dizer que o iudicium [juízo]
se faz por meio da resolutio [resolução], ainda que inclua também
uma compositio [composição]”.
Apêndice 2
Defesa da terceira via de Santo Tomás
I. Apresentaram-se-nos as seguintes objeções à terceira das cinco vias com
que Tomás de Aquino demonstra que Deus é.
• O “argumento da contingência” ou
“argumento cosmológico” (segundo a terminologia kantiana), ou seja, a terceira
via de Santo Tomás, tem valor meramente provável.
Até porque o definido pelo Concílio Vaticano I –
“Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza
pela luz natural da razão humana a partir das coisas criadas; porque ‘o
invisível dele, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas
feitas, tornou-se visível’ (Rom. 1, 20)” – afirma meramente que a prova da
“existência” de Deus pode ser dada, não que já o foi.
• Ora, o “argumento da
contingência” é uma prova apenas do ponto de vista estritamente lógico ou
lógico-formal, mas não do ponto de vista real ou material-substantivo, porque
parte do mero conceito de contingência e não das coisas efetivamente criadas,
como pede o definido pelo Vaticano I.
• Ademais, não se tem nenhuma
garantia de que o ente necessário que a prova descobre seja Deus, e não outra
coisa.
1. É a seguinte a resposta à
primeira objeção.
a) As cinco vias
de Santo Tomás são demonstrativas, não prováveis. Para entendê-lo, deve
começar-se por mostrar a diferença entre silogismo demonstrativo e silogismo
provável. Com efeito, o silogismo demonstrativo (estudado por Aristóteles nos Analíticos Posteriores) e o silogismo
dialético ou provável (estudado por Aristóteles nos Tópicos) também diferem em que o primeiro não pode ser circular,
enquanto o segundo pode sê-lo. É que o silogismo dialético procede precisamente
ex probabilibus (de prováveis, de proposições
prováveis), ou seja, do que é mais manifesto ou para os sábios ou para muitos.
Sucede, no entanto, que uma mesma coisa pode ser mais ou menos manifesta quanto a diversas razões e quanto a
diversos homens, razão por que nada proíbe, repita-se, que o silogismo
dialético se faça circularmente. O silogismo demonstrativo, porém, faz-se ex notioribus simpliciter (de
absolutamente notórios, de proposições absolutamente notórias), razão por que
não pode haver demonstração circular.
Dubium. As causas são mais notórias ou
manifestas que seus efeitos. Como dito, porém, as cinco vias de Santo Tomás são
demonstrações quia, isto, do efeito
que é a criação (manifesto quod nos) para a causa que é Deus, que de si é
notória simpliciter. Parece, assim,
que ou a argumentação quia – e pois
as cinco vias tomistas – não é demonstrativa, mas provável; ou pode haver
demonstração circular.
Solutio. Quanto a que não possa haver
demonstração circular, baste o dito. Quanto porém a que a argumentação quia seja de fato demonstrativa e não
provável, diga-se o seguinte. Em primeiro lugar, na demonstração quia se parte do manifesto não segundo mais e menos quanto a diversas razões e quanto a diversos homens, mas do
manifesto quanto a uma mesma razão e quanto a todos os homens. Assim nas cinco
vias de Santo Tomás: é notório quanto a todos que algumas coisas se movem e que
são movidas por outras; que as coisas se fazem ou se geram e que são feitas ou
geradas por outras; que nas coisas algumas são somente possíveis; que as coisas
têm qualidades segundo mais e menos; que, enfim, coisas não inteligentes se
ordenam a um fim. Mas o silogismo provável pode partir de coisas mais ou menos manifestas quanto a
diversas razões e quanto a diversos homens (enquanto, como se acaba de ver, as
coisas de que partem as demonstrações quia,
como as cinco vias tomistas, são manifestas quanto ao mesmo e quanto a todos).
Logo, a argumentação quia não se
identifica com o silogismo provável ou dialético, e a demonstração quia é, com o perdão da redundância,
demonstrativa. – Mas, em segundo lugar, o que se demonstra é duplo. 1) Antes de
tudo, com efeito, a ciência é um saber, ou seja, um conhecimento do necessário por suas causas, e alcança-se a ciência
justamente pela demonstração. Mas da demonstração pela causa – ou seja, a demonstração propter quid, a que vai, insista-se, da causa para o efeito, e que
é a propriamente científica – diz-se por isso mesmo não só que parte do
necessário, mas que é do necessário. Em outras palavras, a demonstração propter quid parte de princípios
necessários para alcançar uma conclusão necessária, ou seja, o demonstrado simpliciter, porque, com efeito, como os
princípios são a causa da conclusão, e hão de ser evidentes e necessários por
si,
então por eles a conclusão também será necessária.
2) Depois, no entanto, se a demonstração quia
não é a propriamente científica, como o é a demonstração propter quid, a argumentação quia
não se identifica, porém, como dito, com o silogismo provável ou dialético e é
verdadeira demonstração, enquanto conclui na existência da causa a partir do
efeito (causa que pode ser eficiente ou final, material ou formal). – Quanto
ainda, todavia, à diferença entre a demonstração quia e a demonstração propter
quid, reside ademais em que, ao contrário do que se dá nesta, naquela a
necessidade se diz tão somente quanto a que
a causa existe ou é, mas não quanto a quod
quid est (ou seja, à quididade).
b) Sem dúvida, o
definido pelo Vaticano I não diz expressamente que já se provou que Deus é. Mas
definiu-o fundado explicitamente nas palavras de São Paulo “o invisível dele [de
Deus], depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas,
tornou-se visível”; e tais palavras são justamente uma como argumentação quia, ou seja, não por modo de
silogismo. Ademais, é justamente nelas que se pode encontrar a fonte primeira
das cinco vias de Santo Tomás de Aquino.
2. É a seguinte, ademais, a
resposta à segunda.
a) Antes de tudo,
não se vê por onde se diz que a terceira via “parte do mero conceito de
contingência e não das coisas efetivamente criadas”. Com efeito, parte não do
“conceito de contingência”, mas de que nas coisas que vemos (e que são criadas)
algumas são meramente possíveis, ou seja, um dia deixarão de ser. E isto é
evidentíssimo, e não se nos peça que provemos o evidente: é evidente que é
evidente. Somente as doutrinas “filosóficas” mais estultas, como o subjetivismo
ou o idealismo mais radicais, o poderiam negar.
b) Depois, não há
prova estritamente lógica ou “lógico-formal” no sentido tomado pela objeção.
Naturalmente, como se vê pelo tratado dos predicáveis,
podem fazer-se demonstrações no âmbito dos entes lógicos de razão ou universais
de segunda intenção (gênero, espécie, diferença, próprio, acidente – enquanto
tais). Mas os universais de segunda intenção têm fundamento in re, ainda que remoto (enquanto os de
primeira intenção o têm próximo). Ademais, como diz o Padre Calderón em Tratado de la demostración – Lógica de la
terceira operación del intelecto (não publicado), “toda consequência lógica
se funda em alguma causalidade real; porque, para que um silogismo seja válido,
alguma das premissas deve ser universal (de dois particulares nada se segue),
quer dizer, necessária, e não pode dar-se nada necessário que não tenha um
fundamento real. Os silogismos são científicos ou são aplicação da ciência ao
particular: não há possibilidade de discurso silogístico sem referência à
ciência, isto é, ao universal. Que sentido pode ter uma lógica ‘formal’
esquecida das essências?” – Por fim, “contingência” não é universal de segunda
intenção, mas conceito de acidente na categoria qualidade.
3. E é a seguinte, por fim, a
resposta à terceira.
Se não é Deus o ente de si e simpliciter necessário, não se pode
saber o que o será. – Outra coisa – podemos dá-lo à objeção – é que por esta
via, como pelas outras quatro, não se alcance como Deus é. Justamente, porém,
as cinco vias não buscam alcançá-lo, mas antes que Deus é. Como Deus (não) é,
Tomás de Aquino deixa-o para as questões restantes da parte I da Suma Teológica. É que o próprio do sábio
é ordenar, e é da ordem das coisas que a questão an sit (se é) anteceda à questão quomodo sit (como é). Naturalmente, não se dá questão an sit se se trata de ente manifesto aos
sentidos. Mas Deus não é manifesto aos sentidos (além de não poder ser
conhecido por essência nesta vida). A conclusão impõe-se.
Dubium. Se, todavia, como se mostrou, as objeções
apresentadas não procedem, resta porém uma última dificuldade. Com efeito, a
frase da terceira via “é preciso haver algo necessário nas coisas”, explica-a assim uma nota da
tradução da Suma Teológica publicada
pelas Edições Loyola: “Nesta demonstração, que
como as quatro outras é muito reduzida, Santo Tomás prefere passar dos seres
corruptíveis, cuja contingência é manifesta, aos entes incorruptíveis – os
puros espíritos, também os astros”. Mas não parece convir com as cinco vias,
que partem, como dito, do sensível, o recurso a entes não sensíveis. Ademais,
já se sabe desde Galileu que os astros não são incorruptíveis. Logo, parece
inválida a terceira via tomista.
Solutio. Segundo o mesmo caráter de
demonstração quia das cinco vias,
nenhuma delas poderia partir de entes
não sensíveis. Mas a terceira via parte de entes sensíveis, como as outras
quatro; e em momento algum refere as substâncias separadas ou os corpos
celestes. Diz apenas, em sua
concisão, “que é preciso que algo seja necessário nas coisas”. E, se parece
supor aqui os corpos celestes, que segundo sua natureza incorruptível não
poderiam deixar de ser e se contraporiam assim ao entes possíveis, que podem
ser ou não ser, a via porém não se
vê invalidada pelo fato de ter caducado tal doutrina a respeito dos corpos
celestes. Antes de tudo, porque as substâncias separadas são incorruptíveis
segundo sua natureza e estão entre as coisas, entre as criaturas. Depois, no
entanto, porque não é somente segundo uma natureza incorruptível que alguma
coisa pode dizer-se necessária. Explique-se. De duas
maneiras gerais se diz que algo é necessário: ou por si mesmo, ou por alguma
causa. Como porém necessário por
si não pode ser senão Deus (ou algo divino), se nas coisas que vemos há algo
necessário, não será senão por alguma causa. E, com efeito, como diz Santo
Tomás, “causa é aquilo ao qual por necessidade se segue outro”. Mas o necessário per causam pode sê-lo simpliciter ou secundum quid; e assim é necessário simpliciter aquilo cuja necessidade depende de uma causa anterior,
enquanto é necessário secundum quid
aquilo cuja necessidade depende do que é posterior no ser. Pois bem, que haja tal
necessário simpliciter ou absolute “se patenteia do necessário que
depende da matéria. Que
o animal, com efeito, seja corruptível é necessário absolutamente: segue-se,
com efeito, de que o animal seja composto de contrários. Similarmente, também o
que tem da causa formal [sua] necessidade é necessário absolutamente; assim
como o homem ser racional, ou o triângulo ter três ângulos iguais a dois retos,
o que se reduz à definição do triângulo. E, similarmente, o que tem da causa
eficiente [sua] necessidade é necessário absolutamente; assim como é necessário
haver alternância de noite e de dia pelo movimento do sol”. Quanto ao necessário secundum quid ou ex suppositione, depende da causa final, que, se é posterior no
ser, é porém anterior na intenção do agente. Sua necessidade, com efeito, provém
do fim, e da forma enquanto é o fim da geração. Aprofunda-o e ilustra-o o
Padre Calderón:
“Nos
entes naturais, tanto minerais como vegetais e animais, podemos às vezes
descobrir que sua existência e natureza cumpre um serviço em ordem ao maior bem
do mundo. Este serviço, difícil de determinar na maioria dos casos, se segue
com necessidade absoluta da natureza da coisa. Podemos também descobrir que a
natureza de cada coisa responde com necessidade absoluta à disposição de suas
partes e ao processo de sua geração. Esta investigação e a comparação com os
processos artificiais nos permitem descobrir a finalidade nos processos naturais, achando então a necessidade
hipotética [ex suppositione] dos
elementos materiais e dos processos de geração, que se ordenam à forma e
natureza destas coisas como a seu fim. E, por sua vez, podemos, ao menos em
alguns casos, demonstrar a necessidade hipotética da existência de entes de tal
natureza em razão do serviço que prestam à ordem do mundo, que é sua finalidade
última”. – Pois bem, é provável que Santo Tomás tenha intencionado exprimir com a
referida frase ao menos também o que se acaba de dizer, o que se pode ver
expondo a via da seguinte maneira: “A terceira via é tomada do
possível e do necessário, e é a seguinte. Encontramos coisas que podem ser e
não ser, pois, se as vemos gerar-se e corromper-se, é porque podem ser e não
ser. Ora, é impossível que coisas que são assim sejam sempre, porque o que pode
não ser não é em algum momento. Se, pois, todas as coisas podem não ser, houve
um momento em que nada era. Ora, se isso fosse verdadeiro, nada seria agora,
porque o que não é não começa a ser senão pelo que é; se, portanto, nenhum ente
tivesse sido, teria sido impossível que algo começasse a ser, e por isso mesmo
nada seria, o que patentemente é falso. Nos
entes, portanto, há de haver algum ou algo de algum modo necessário; e diz-se
necessário o que não pode ser de outra maneira. Ora, tudo o que é
necessário ou tem a causa de sua necessidade em outro, ou não. Ademais, não é possível
proceder ao infinito nas coisas necessárias que têm uma causa para sua
necessidade, assim como tampouco nas causas eficientes, como se provou. Logo, é
necessário admitir algo que seja necessário per se, que não
encontre em outro a causa de sua necessidade, mas seja a causa da necessidade
para os outros, e é a este algo que todos chamam Deus”.
II
Santo
Tomás de Aquino
Da
Eternidade do Mundo
«Suposto, segundo a fé católica, que o
mundo teve um início de duração, apresenta-se uma dúvida: se teria podido ter
sido sempre. Para que se esclareça esta dúvida segundo a verdade, deve
distinguir-se antes de tudo em que convimos com os adversários, e em que
diferimos deles. Se, com efeito, se intelige que algo além de Deus poderia ter sido
sempre, como se pudesse haver algo eterno além dele e não feito por ele, isso é
um erro abominável não somente na fé, mas também entre os filósofos, que
confessam e provam que tudo o que é de qualquer modo não pode ser se não é
causado pelo que máxima e verissimamente tem ser. Se porém se intelige que algo
tivesse sido sempre, e todavia tivesse sido causado por Deus segundo tudo o que
houvesse nesse algo, deve ver-se se tal pode manter-se. Se todavia se diz que é
impossível, ou se diz porque Deus não poderia ter feito algo que fosse sempre,
ou porque isso não poderia ser feito, ainda que Deus pudesse fazê-lo. Na primeira parte,
no entanto, todos consentem em que Deus poderia fazer algo que fosse sempre,
considerando sua potência infinita. Resta pois ver se é possível que fosse
feito algo que sempre fosse. Se porém se diz que algo assim não pode fazer-se,
tal não pode inteligir-se senão de dois modos, ou ter duas causas da verdade:
ou por remoção de potência passiva, ou por repugnância de intelectos [ou seja,
de coisas inteligidas]. No primeiro modo pode dizer-se que, antes que o
Anjo seja feito, o Anjo não pode ser feito, porque não preexiste a ele nenhuma
potência passiva, por não ser feito de matéria precedente; no entanto, Deus
podia fazer o Anjo, e podia fazer que o Anjo fosse feito, porque o fez, e foi
feito. Inteligindo-o assim, portanto, deve conceder-se simpliciter segundo
a fé que o criado não pode ser sempre: porque pôr isto seria pôr que a potência
passiva sempre foi, o que é herético. Mas disto não se segue que Deus não possa
fazer que algum ente seja feito desde sempre. No segundo modo se diz por
repugnância de intelectos que algo não pode fazer-se, assim como não se pode
fazer que a afirmação e a negação sejam simultaneamente verdadeiras, conquanto
Deus possa fazê-lo, como dizem alguns. Alguns contudo dizem
que nem Deus pode fazer isso, porque isso não é nada. Mas é manifesto que não
pode fazer que isso se faça porque a posição que assim se põe se destrói a si
mesma. Se todavia se põe que Deus pode fazer de modo que tais coisas sejam
feitas, a posição não é herética, ainda que, como creio, seja falsa, assim como
que o pretérito não o fosse encerra em si contradição. Por isso diz Agostinho
no livro Contra Fausto: “Alguém diz assim: ‘Se Deus é onipotente,
faça que coisas que foram não hajam sido’: estes não veem que estão dizendo:
‘Se Deus é onipotente, faça que o que é verdadeiro, enquanto é verdadeiro, seja
falso’”. E todavia alguns grandes [teólogos] disseram piedosamente que Deus
poderia fazer que o pretérito não fosse pretérito; tampouco foi reputado
herético. Deve
ver-se então, portanto, se há repugnância entre estes dois intelectos: que algo
seja criado por Deus e, no entanto, haja sido sempre. E, qualquer que seja
o verdadeiro, não será herético dizer que Deus pode fazer que algo criado por
Deus fosse sempre. Creio no entanto que, se houvesse repugnância de intelectos,
seria falso. Se porém não há repugnância de intelectos, não só não é falso,
senão que tampouco é impossível: senão seria errôneo se se dissesse de outro
modo. Como pois à onipotência de Deus pertence exceder a todo intelecto e a
toda virtude, derroga expressamente a onipotência de Deus o que diz que se pode
inteligir algo nas criaturas que não possa ser feito por Deus. Tampouco se
inste com os pecados, que enquanto tais nada são. Nisto, portanto, consiste
toda a questão: se ser criado por Deus segundo toda a substância e não ter
princípio de duração se repugnam entre si, ou não. Que todavia não se repugnam
mostra-se assim. Se com efeito se repugnam, tal não é senão por uma destas duas
razões ou por ambas: ou porque é necessário que a causa agente preceda na
duração [ao efeito], ou porque é necessário que o não ser preceda na duração
[ao ser]: porque, como se diz, o criado por Deus se fez de nada. Em primeiro
lugar, mostrarei que não é necessário que a causa agente, ou seja, Deus,
preceda na duração ao causado por ele, se assim quiser. Antes de tudo, assim.
Nenhuma causa que produz seu efeito de modo súbito precede necessariamente a
seu efeito na duração. Mas Deus é uma causa que produz seu efeito não por
movimento, mas subitamente. Por conseguinte, não é necessário que preceda na
duração a seu efeito. A primeira [proposição] patenteia-se por indução em todas
as mutações súbitas, como a iluminação e coisas assim. Pode porém provar-se por
uma razão, assim. Em qualquer instante em que se ponha que uma coisa é, pode
pôr-se o princípio de sua ação, como é patente em todas as coisas geráveis,
porque, no instante mesmo em que começa, o fogo já esquenta. Mas na operação
súbita, simultaneamente, antes o princípio e o fim seus são o mesmo, como em
todas as coisas indivisíveis. Logo, em qualquer
instante em que se ponha o agente produzindo seu efeito subitamente, pode
pôr-se o termo de sua ação. Mas o termo da [sua] ação é simultâneo à coisa
feita. Logo, não repugna ao intelecto se se põe que a causa que produz seu
efeito subitamente não precede na duração ao causado por ela. Repugnaria,
porém, nas causas que produzem seus efeitos por movimento, porque é necessário
que o princípio do movimento preceda a seu fim. E, porque os homens estão
acostumados a considerar as faturas que são por movimento, por isso mesmo não
captam facilmente que a causa agente não preceda na duração a seu efeito. E é
por isso que inexpertos em muitos [domínios], ao considerar poucas coisas,
enunciam facilmente. Não pode objetar-se a esta razão que Deus é causa agente
por vontade: porque tampouco é necessário que a vontade preceda na duração a
seu efeito; nem o agente por vontade, a não ser que aja a partir de
deliberação, o que livre-nos Deus de pôr nele. Ademais. A causa que
produz toda a sustância da coisa não pode menos ao produzir toda a substância
que a causa que produz a forma na produção da forma; antes muito mais: porque
não produz eduzindo da potência da matéria, como se dá no que produz a forma.
Mas algum agente que produz só a forma pode fazer que a forma por ele produzida
seja tanto tempo como ele mesmo, como se patenteia no sol ao iluminar. Logo,
com muito mais razão Deus, que produz toda a sustância da coisa, pode fazer que
o causado por ele seja em todo o tempo em que ele mesmo é. Ademais. Se há
alguma causa tal que, posta em algum instante, não se possa pôr o efeito
procedente dela nesse mesmo instante, isto não é senão porque a essa causa lhe
falta algo de complemento: com efeito, a causa completa e o causado são
simultâneos. Mas a Deus nunca falta nada de complemento. Logo, posto Deus, o
causado por ele sempre pode pôr-se; e assim não é necessário que preceda na
duração. Ademais. A vontade do que quer não diminui nada de sua virtude, e
precipuamente em Deus. Mas todos os que solvem as razões de Aristóteles pelas
quais se prova que as coisas sempre foram por Deus pelo fato de que o mesmo
sempre faz o mesmo dizem que isto se
seguiria se [Deus] não fosse agente por vontade. Logo, também se se
põe um agente por vontade, nem por isso se segue que não possa fazer que o
causado por ele seja sempre. E assim se patenteia que não repugna ao intelecto
dizer que a causa agente não precede a seu efeito na duração, porque as coisas
que repugnam à razão Deus não pode fazer que sejam. Resta agora ver se repugna
à razão que algo feito seja [desde] sempre, por ser necessário que seu não ser
preceda na duração [a seu ser], porque se diz que foi feito de nada. Mas que isto em nada
repugna mostra-se pelo dito de Anselmo no Monológio, cap. 8, quando
expõe de que modo a criatura se diz feita de nada. “A terceira interpretação”,
diz ele, “pela qual se diz que algo é feito de nada dá-se quando inteligimos
que algo é feito, mas não há algo de onde seja feito.” Por semelhante
significação parece dizer-se que o homem contristado sem causa se diz
contristado de nada. Segundo pois este sentido, se se intelige o que acima se
concluiu, a saber, que além da suma essência todas as coisas que provêm dela
são feitas de nada, isto é, não de algo, não se segue nada inconveniente. Por
isso é patente que segundo esta exposição não se põe nenhuma ordem do que é
feito ao nada, como se fosse necessário que antes de ser feito fosse nada, e
depois fosse algo. Ademais, suponha-se que a ordem ao nada implicada na
preposição ex [de] permaneça
afirmada, de modo que o sentido seja: a criatura é feita do nada, isto é,
depois do nada: a dicção “depois” importa absolutamente uma ordem. Mas a ordem
é múltipla: a saber, de duração e de natureza. Se pois do comum e do universal
não se segue o próprio e o particular, não seria necessário que, pelo fato de
dizer-se que a criatura é depois do nada, o nada fosse anterior na duração, e
depois houvesse algo: senão que basta que o nada seja por natureza antes que o
ente; com efeito, tudo o que convém a cada coisa em si sempre se dá nela
anteriormente por natureza ao que tem de outro. O ser, todavia, a criatura não
o tem senão por outro; ora, entregue a si mesma e considerada em si mesma, [a
criatura] não é nada: razão por que naturalmente o nada é para ela naturalmente
anterior ao ser. Nem
é necessário por isso, ou seja, por não preceder [o nada] na duração [ao ser],
que [a criatura] seja simultaneamente nada e ente: com efeito, se a criatura
foi sempre, não se põe que em algum tempo haja sido nada: senão que se põe que
sua natureza é tal, que não seria nada se fosse entregue a si mesma, assim
como, se disséssemos que o ar sempre fosse iluminado pelo sol, seria necessário
dizer que o ar foi feito luminoso pelo sol. E, como tudo o que se faz se faz do
incontingente, isto
é, do que não ocorre simultaneamente com aquilo que se diz fazer-se, é
necessário dizer que [o ar] é feito luminoso do não luminoso, ou do tenebroso;
não que alguma vez tivesse sido não luminoso ou tenebroso, senão que seria tal
se fosse entregue a si mesmo pelo sol. E o expresso é patente nas estrelas e
nos orbes, que são sempre iluminados pelo sol. Patenteia-se assim, portanto,
que nisto que se diz, a saber, que algo foi feito e sempre foi, não há nenhuma
repugnância do intelecto. Se, com efeito, houvesse alguma, seria admirável que
Agostinho não a tivesse visto: porque teria sido uma via eficacíssima para
refutar a eternidade do mundo; se ele impugna a eternidade do mundo com muitas
razões no livro undécimo e no duodécimo de Da Cidade de Deus, como
deixa passar totalmente esta? Aliás, antes parece insinuar que não há nisso
repugnância de intelectos: daí que diga no livro décimo de Da Cidade de Deus,
cap. 31, ao falar dos platônicos: “Encontraram o modo de inteligi-lo, a saber,
que se trata não de um início do tempo, mas do início de uma subjacência. Com
efeito, assim como, dizem, se um pé sempre, de toda a eternidade, estivesse no
pó, sempre subjazeria a ele a pegada, que ninguém duvidaria fosse feita pelo
que pisa; e um não seria anterior ao outro, ainda que um fosse feito pelo
outro; assim também, dizem, o mundo e os deuses criados nele sempre foram, porque
sempre foi o que os fez; e todavia foram feitos”. Nem nunca diz que isto não
possa inteligir-se, senão que procede de outro modo contra eles. Diz ainda no
livro undécimo, cap. 4: “Os que confessam que o mundo foi feito por Deus não
querem que tenha tido um início do tempo, mas só de sua criação, de sorte que
sempre seja feito de maneira dificilmente inteligível; com efeito, dizem algo,
etc.”. A causa porém pela qual é dificilmente inteligível já se tratou na
primeira razão. Também é admirável que tão nobilíssimos filósofos não tenham
visto tal repugnância. De fato, diz Agostinho no mesmo livro, cap. 5, falando
contra aqueles cuja autoridade mencionou no capítulo precedente: “Tratamos pois
daqueles que sentem conosco o Deus incorpóreo e criador de todas as
naturezas que não são o que ele mesmo [é]”, a respeito dos quais depois
acrescenta: “Estes filósofos venceram os outros em nobreza e em autoridade”. E
isso também é evidente para o que considera diligentemente o dito pelos que
puseram que o mundo sempre foi, porque todavia o põem feito por Deus, sem
perceber nisso nenhuma repugnância de intelectos. Logo, só os que tão
sutilmente a percebem são homens, e com eles nasce a sabedoria. Mas, como algumas
autoridades parecem ir em seu favor, também se deve mostrar que lhes prestam
débil suporte. Com efeito, diz o Damasceno no livro I, cap. 8: “O que é tirado
do não ser ao ser não é apto por natureza para ser coeterno ao que é sem
princípio e é sempre”. Também diz Hugo de São Vítor, no princípio de seu livro De
sacramentis: “A
virtude inefável da onipotência não pôde ter nada que lhe fosse coeterno, de
que se ajudasse para criar”. Mas estas autoridades e semelhantes intelectos se
patenteiam pelo que diz Boécio no último livro da Consolação: “Não pensam retamente alguns
que, ouvindo o dito de Platão de que este mundo não teve início no tempo nem
terá fim, pensam que deste modo se faz coeterno ao criador o mundo criado. Uma
coisa, com efeito, é levar uma vida interminável, que é o que Platão atribuiu
ao mundo, outra abraçar por igual toda a presença de uma vida interminável, o
que é manifesto que é próprio da mente divina”. Daí se patenteia que tampouco
se segue o que alguns objetam, a saber, que a criatura se igualaria a Deus em
duração; e o que desse modo se diz, a saber, que de nenhum modo pode algo
ser coeterno a Deus, ou seja, porque nada pode ser imutável além de Deus,
patenteia-se pelo que diz Agostinho, no livro XII de Da Cidade
de Deus, cap. 15: “O tempo, porquanto transcorre em razão da mutabilidade,
não pode ser coeterno à eternidade imutável. E por isso, ainda que a
imortalidade dos anjos não transite no tempo, não é pretérita como se já não
fosse, nem futura como se ainda não fosse; no entanto, seus movimentos, pelos
quais percorrem os tempos, passam de futuros a pretéritos. E por isso não podem
ser coeternos ao criador, em cujo movimento deve dizer-se que não é nem foi o
que já não seja, nem será futuro o que ainda não seja”. Semelhantemente, diz
ainda no livro oitavo de Sobre o Gênesis:
“Porque a natureza da Trinidade é totalmente imutável, por isso mesmo é de tal
modo eterna, que não pode haver nada coeterno a ela”. Diz palavras semelhantes
no livro undécimo das Confissões.
Acrescentam-se ainda a seu favor razões que os filósofos também trataram e resolveram,
entre as quais a mais difícil é a da infinidade de almas: porque, se o mundo
sempre foi, é necessário que agora haja infinitas almas. Mas esta razão não vem
a propósito, porque Deus teria podido fazer o mundo sem homens nem almas, ou
então fazer o homem quando o fez, ainda que a todo o restante do mundo o
tivesse feito desde sempre; e assim não permaneceriam após os corpos almas
infinitas. E, ademais, ainda não se demonstrou que Deus não possa fazer que
haja infinitos em ato. Há ainda outras razões
a que declino responder no presente, já porque já se respondeu a elas alhures, já porque algumas
delas são tão débeis, que por sua debilidade parecem conferir probabilidade à
parte contrária.»
Apêndice
Carlos Nougué
Se se
contradiz Santo Tomás ao pôr que não repugna
ao
intelecto que o mundo tivesse existido desde sempre
Não raramente se vê voltar contra Santo
Tomás a seguinte objeção:
• Em suas provas da existência de Deus,
o Aquinate diz que é impossível remontar ao infinito na série de causas, sob
pena de tornar impossível esta mesma série – razão por que é preciso reconhecer
a existência de um primeiro motor (1.ª via) que seja a causa eficiente das
causas eficientes dos entes (2.ª via) e seja, pois, não só o ente absolutamente
necessário (3.ª via), mas também a causa do ser dos demais (4.ª via) e a causa
que os conduz a seu fim (5.ª via).
• Ora, se assim é, não se entende como
Santo Tomás (em diferentes lugares, e especialmente no opúsculo Sobre a
Eternidade do Mundo contra Murmurantes) pode pôr que não repugna à razão
que o mundo existisse desde sempre. Se tal fosse possível, Deus não seria o
primeiro da série de causas motoras, nem a primeira causa eficiente dos entes,
nem a fonte de todas as perfeições destes, etc.
• Por conseguinte, contradiz-se
gravemente Santo Tomás, e, quanto à criação do mundo, ou estarão certos os que,
negando as Escrituras, negam a possibilidade da criação no tempo, ou o estarão
os que pretendem demonstrar que a criação não podia ter-se dado senão no tempo.
Mas tal objeção não procede, e tem
origem dupla:
• de modo geral, o ater-se a um passo
da doutrina do Aquinate sem relacioná-lo “organicamente” aos demais;
• e, de modo particular, o desconhecer
que, se o ponto de partida da especulação metafísica deve ser sempre de ordem
sensível, seu termo haverá de ser sempre, todavia, de ordem estritamente
analógica. Explique-se.
1) Nas cinco vias por que, na segunda questão da Suma Teológica I, Santo Tomás demonstra que Deus é, ele não cuida
de se as noções e os conceitos nelas utilizados são unívocos ou análogos, ao
passo que na terceira questão já os toma inteiramente em seu termo, ou
seja, como se disse acima, já se encontra em plena analogia. As cinco vias
estabelecem antes de tudo que Deus é, e não especialmente como ele é
(conhecimento este que, para nós, para o intelecto humano nesta vida, tem de
partir do que ele não é). Elas respondem antes de tudo, pois, à questão an
sit a respeito de Deus, mas requerem necessariamente desdobrar-se numa segunda
etapa. Em verdade, como diz o Padre Penido, “entre as duas [etapas] não há
[propriamente] separação, visto que uma fundamenta a outra, e como que a
principia”.
2) Se nos limitamos, como o antropomorfismo, a entender do seguinte modo
as cinco vias: se as coisas são movidas e movem, é porque há um Motor primeiro;
se coisas são causas eficientes de outras, é porque há uma Causa de todas; se
há entes possíveis, é porque há o Necessário; se os entes têm suas
respectivas perfeições, é porque há uma Maximidade de que estas são
efeito; se existe finalidade nas e para as coisas destituídas de inteligência,
é porque há um Intelecto que as ordena a seu fim; se pois nos limitamos a
entendê-las assim, afirmamos consequentemente que aquele Ente encontrado ao
termo de todas as séries – das quais é motor, eficiente, necessário, dador e
condutor – é de algum modo homogêneo a todas elas. Com tal limitação, de fulcro
antropomorfizante, não se escapa à crítica de Kant e similares.
3) Ora – insista-se –, para dar a razão dos motores causados, da
eficiência causada, da necessidade causada, das perfeições causadas e do fim
causado, é necessário encontrar a Causa de tudo isso; se porém esta Causa está
ela própria sujeita à mesma deficiência (ser causado), então teremos de
recomeçar e procederemos, assim, ao infinito. Para não se estar preso no
círculo de tal deficiência, é preciso um Ente que não só seja causa
dessas coisas deficientes, senão que saia delas, escape a elas. O
termo, portanto, daquelas séries, o termo que as remata enquanto primeiríssimo,
não pode ser-lhes homogêneo, o que implica dizer que está fora ou acima delas.
4) Naturalmente, tal conclusão já se encontra de modo incoado nas cinco
vias, porque nelas o Angélico não se limita a dizer: se há movimento, há o
Motor; se há eficiências, há o Eficiente; se há possíveis, há o
Necessário; se há perfeições, há o Perfeito; se há fim, há o
Ordenador a ele. Se o fizesse, insista-se, não sairia do círculo do
antropomorfismo. Mas ele vai além, e as cinco vias já afirmam, entre outras
coisas, algo positivo-negativo: motor, sim, mas imóvel; causa,
sim, mas incausada; ente necessário, sim, mas cuja necessidade não
provém de outro.
5) Dirá o pensamento de tendência antropomórfica: não só todos os motores,
causas, fins dados pela experiência sensível são necessários para nos alçarmos
ao Motor, Causa, Fim, mas também este mesmo Motor, Causa, Fim tem de ter alguma
homogeneidade com aqueles sob pena de mergulharmos no incognoscível ou no nada.
Por isso mesmo, aliás, prossegue tal pensamento, é que é preciso aplicar a Deus
o conceito de motor, o de causa, o de fim, tomados todos da ordem do sensível.
Sucede, todavia, repliquemos nós, que tais conceitos, aplicados a Deus, já não
podem tomar-se de maneira unívoca, mas análoga.
6) Ora, como se disse, tal já se dá incoadamente nas mesmas cinco vias. Já
nelas se repudia a univocidade e se evita, assim, todo e qualquer vestígio de
antropomorfismo. Seria possível mostrá-lo a partir de todas cinco, mas
limitemo-nos a transcrever in extenso o que diz o Padre Penido com
respeito à quarta via.
Seja a noção de “ciência”. Tenho dela, ao iniciar minhas pesquisas
metafísicas, um conceito perfeitamente unívoco (Caetano, de Nom. An. c.
XI, p. 278), que aplico a todos os homens, indiferentemente. Observando,
todavia, que na ciência há graus infinitos, alargo em analogia de desigualdade
esta univocidade algo amesquinhada. É ainda univocidade, não o esqueçamos,
embora mais maleável. Chego assim a estabelecer uma escala de intensidades
variadas; mas o conceito permanece fundamentalmente o mesmo; as variações são
apenas acidentais. Posso enfim imaginar uma ciência a crescer constantemente;
no extremo limite creio descobrir a superciência, a ciência divina. Se assim
fora, nada se explicaria, e fora inútil entregar-se a um tal trabalho de
dilatação, pois esta nova perfeição não é a ciência subsistente, senão a
simples amplificação da minha, e, como esta é participada, sê-lo-á também
aquela. Não foi para encontrar, no fim de meu raciocínio, a mesma indigência
inicial que me aventurei pela quarta via. Cumpre, portanto, abandonar a “via
augmenti” e enveredar pela “via essendi”; importa encontrar ao termo desta um
“maxime tale”, que não seja unívoco, uma ciência primeira, isto é, por
essência imparticipada, razão de ser das outras: somente o que é por essência
pode explicar o que é por participação. Se retomo agora meu conceito inicial,
percebo que ele se alterou, pois desde este instante deve moldar-se a duas
realidades essencialmente diversas: em um caso, temos uma ciência não
participada; no outro, seja qual for sua perfeição, uma ciência participada.
[Isso quer] dizer que Tomás de Aquino não é sua ciência, que a inteligência
humana de Cristo não é sua ciência, ao passo que Deus é, por
identidade, sua ciência. Entre ser a própria ciência e não [sê-lo], a diferença
não é de grau como entre superlativo e comparativo, mas é uma diferença que
atinge o mesmo ser. Deus não é “sapientissimus”; ele é “super-sapiens”: “Há uma
primazia que se mantém dentro do mesmo gênero e que se exprime pelo comparativo
ou pelo superlativo; outra há que ultrapassa o próprio gênero e que se exprime
mercê da partícula super” (Div. nom., c. 4 1. 5, Vivès, p. 411; cf. De pot., q. 7 a.
7 ad 2-3; Ia. P. q. 4 a. 3 ad 1). Começara por afirmar que a ciência de
Deus era a minha elevada ao superlativo, mas imediatamente, vistas as
diferenças, fui forçado a corrigir o que acabava de adiantar: é a minha, mas
não participada; o que equivale à negativa: não é a minha (simpliciter
diversa). E, entretanto, Deus é Ciência! Também, apenas eliminei o que
minha ciência implicava de imperfeito, tive de afirmar a “superciência”; por
outras palavras: ao cabo da pesquisa, devo renunciar a meu conceito unívoco por
um outro, muito mais flexível, [que não representa] minha ciência, mas
uma ciência analógica, que é, diversamente, a minha e a de Deus.
7) “É pois”, prossegue o Padre Penido, “a uma série complexa de
operações que se deve entregar penosamente a inteligência humana, para pensar –
grosseiramente ainda, mas com certa verdade – cada perfeição divina. É mister
primeiro afirmá-la, depois negá-la, depois ainda sobre-elevá-la, e por fim
unir-lhe a noção participada (cf. Ia. P. q. 12 a. 12)”. Trata-se, pois,
esquemática mas precisamente, do seguinte:
• há uma causa
(afirmação):
– incausada
(negação);
– supercausa
(sublimação); e
– causante (relação
[propriamente, no caso, só da parte do causado]).
Trata-se, em outras palavras, de quatro
passos ou degraus da analogia.
Pois bem, pode-se já mostrar:
a) que as “cinco vias” de Santo Tomás absolutamente não contradizem sua
posição de que não repugna ao intelecto que a Criação se tivesse feito desde
sempre;
b) e que, suposto tudo quanto se disse mais acima, não estão no certo os
que, negando as Escrituras, negam a possibilidade da criação no tempo, nem os
que pretendem demonstrar que a criação não pode ter-se dado senão no tempo.
Com efeito, enquanto tal (ou seja, não enquanto esta ou aquela), a causa
eficiente só exige prioridade ou
anterioridade de natureza, não prioridade ou anterioridade de
duração (“Nec oportet omnem causam effectum duratione praecedere, sed natura
tantum, sicut patet in sole et splendor”, diz o Tomás de Aquino em De
pot., q. 3, a.
13, ad 5), razão por que pode agir desde que existe. Enquanto tal, o ente
possível tampouco requer que sua existência seja posterior à da causa. Por
conseguinte, não há impossibilidade alguma em que o mundo pudesse ter existido por
criação (ou seja, ex nihilo) desde sempre. Se não se podem
admitir as consequências que resultariam da criação ab aeterno de
alguns entes (os corruptíveis), isso, porém, prova apenas que cada um destes
entes não poderia ter sido criado desde sempre, mas não que outros entes e, em
especial, o mundo como um todo e segundo sucessão (cf. nota supra) não o pudessem.
E isto último é assim porque, ainda que
as causas médias fossem de certo modo
infinitas, nem por isso se suprimiria a necessidade da causa primeira. Com
efeito, seria possível mostrá-lo segundo todas as quatro causas. Limitemo-nos,
porém, à motor-eficiente e à material.
§ 1. Diga-se, pois, em primeiro lugar, que é impossível fazer remontar ao
infinito as causas eficientes ou motoras. Com efeito, diz Santo Tomás no Comentário
à Física:
Não é possível que a causa que se diz “unde principium motus”, isto é, a
causa eficiente, proceda ao infinito, como quando dizemos que o homem é movido
a deixar o agasalho por causa do ar quente, que o ar foi esquentado pelo sol,
que o sol foi movido por alguma outra coisa, e assim ao infinito.
E isso é assim pelo seguinte. Na causalidade
eficiente, o efeito é sempre posterior à causa (ainda quando seja posterior só
por natureza, e não na duração). Por conseguinte, se há três coisas que se
ordenam causalmente entre si como primeira, média e última, necessariamente a
primeira será causa das posteriores, ou seja, tanto da média como da última.
Não se pode dizer que a última seja causa das outras, porque não pode ser causa
de nenhuma: se fosse causa de alguma, não seria última. Repita-se: o efeito é
sempre posterior à causa no âmbito da causalidade eficiente. Mas tampouco pode
suceder que uma causa média seja causa de todas, porque não pode ser causa
senão da seguinte.
Se porém não houver uma só causa média,
mas muitas, para estas valerá igualmente o que se disse para aquela: não podem
ser causas de todas, porque enquanto são médias não podem ser causa da
anterior. Mas dá-se o mesmo, digo, se as causas médias são potencialmente infinitas
em número (ou seja, efetivamente sem começo e potencialmente sem fim no
tempo [não sem começo nem fim na eternidade], donde justamente a
possibilidade de que o mundo tivesse sido criado desde sempre): porque, enquanto são
médias, nenhuma delas pode ser causa da primeira (inteligida agora como a causa
que é a primeira da série mas estando fora
e acima da série). Com
efeito, toda causa eficiente ou motora que não seja a primeira (ou seja, que
seja segunda) requer a causa eficiente ou motora primeira. Por conseguinte, se
há causa média (uma, muitas, ou infinitas do modo dito), tem de haver uma causa
primeira que de modo algum seja, ela mesma, média.
Se todavia se admite, insista-se, um
processo simpliciter ao infinito das
causas eficientes ou motoras, todas as causas seriam médias e nenhuma seria
primeira. Mas a causa primeira é a causa de todas. Logo, se se eliminasse a
causa primeira (ou seja, a que não é causada por nenhuma anterior),
seguir-se-ia que se eliminariam também todas as causas – e, eliminadas
todas as causas, eliminar-se-ia também tudo aquilo de que tais causas são
causas.
§ 2. Mas para mostrar, em segundo lugar, que não há processo ao infinito no
gênero da causa material, leiamos antes de tudo ao mesmo Santo Tomás.
Não é possível que se proceda ao infinito em que algo se faça de algo
como de matéria, como, por exemplo, que a carne se faça de terra, a terra de
ar, o ar de fogo, e que isto não se detenha em algo primeiro, senão que proceda
ao infinito.
Devemos, ademais, ainda de maneira
preambular, atender ao que diz o Padre Álvaro Calderón: “Quanto a isto, há que
considerar que o paciente se sujeita ao agente, de maneira que proceder na
ordem dos agentes supõe ascender (sursum ire), enquanto proceder na
ordem dos pacientes implica descer (deorsum ire). Ora, assim como o agir
se atribui à causa eficiente ou motora, assim também o padecer se atribui à
matéria. Portanto, o processo das causas motoras é ascendente (in sursum),
enquanto o processo das causas materiais é descendente (in deorsum)”. Mas já se mostrou que não
é possível proceder – in sursum – ao infinito no âmbito das
causas eficientes ou motoras: há que mostrar agora, por conseguinte, que
tampouco é possível proceder – in deorsum – ao
infinito no âmbito das causas materiais. Para fazê-lo, antes de tudo
sigamos a argumentação de Santo Tomás em In II Metaphysica, lect. 3, n.
305-314.
No gênero das causas eficientes, é
manifesto para os sentidos o último efeito, que já não move nada, razão por que
já não se investiga se se procede ao infinito in deorsum –
isto é, ao inferior – segundo este gênero de causas, senão que se investiga
apenas se se pode proceder in sursum, isto é, ao superior – em
outras palavras, do mais particular ao mais universal. No gênero todavia das
causas materiais, tem-se por suposto que existe algo primeiro que é fundamento
de tudo o mais: a matéria prima. Apresenta-se então o problema de se se
pode proceder ao infinito descendo – ou seja, indo do mais universal ao mais
particular – segundo o processo mesmo do que se gera da matéria. Desse modo, se
se pusesse, como diz o Padre Calderón, que a matéria prima de todas as coisas
fosse o fogo ou o plasma, haveria que perguntar se “pode dar-se que do fogo ou
do plasma se gere a água ou o hidrogênio, se da água ou do hidrogênio se gere a
terra ou o carbono, se do carbono os carbonatos, se dos carbonatos outros
materiais e assim ao infinito, indo do mais geral ao mais particular”.
Para resolver esta questão, é
necessário considerar os modos como algo se faz de outro algo propriamente
e essencialmente (isto é, per se). Com efeito, há que excluir o
modo impróprio segundo o qual se diz que algo se faz de outro algo tão
somente porque se faz depois deste algo, como quando se diz que a Epifania se
faz do Natal. Mas isso não se diz propriamente, porque todo e qualquer fazer-se
é certa mudança, e em toda e qualquer mudança se requer não só a ordem de dois
termos, mas também um mesmo sujeito para ambos, o que não se dá no exemplo da Epifania
e do Natal.
Pois bem, diz-se propriamente
que algo se faz de outro algo quando algum sujeito muda disto para aquilo, o
que pode dar-se de duplo modo. Antes de tudo, como da criança se faz o homem,
ou seja, na medida em que passa ou muda do estado infantil para o estado
adulto. Depois, como da água se faz o ar, ou seja, por certa transmutação.
Mas também é dupla a diferença entre estes dois modos.
• Em primeiro lugar, no primeiro modo
se diz que da criança se faz o homem assim como do que se está fazendo
se faz o já feito, ou assim como do que se está perfazendo se faz
o já perfeito. O que está fazendo-se ou perfazendo-se é algo médio entre
o ente e o não ente, assim como a geração é algo médio entre o ser e o não ser.
Ora, assim como pelo meio se chega ao extremo, assim também do que se gera se
faz o que está gerado, e do que se perfaz se faz o perfeito. Diz-se assim,
portanto, que da criança se faz o homem, ou que do que aprende se faz o sábio.
– No segundo modo, todavia, segundo o qual se diz que da água se faz o ar, um
dos extremos não está para o outro como o que se está fazendo está para o já
feito, mas antes como o termo de que se parte está para o termo a que se chega,
de modo que da corrupção de um se faz o outro.
• Em segundo lugar, do que se acaba de
dizer decorre a outra diferença. Com efeito, como no primeiro modo um está para
o outro como o que se está fazendo está para o já feito e como o meio está para
o extremo, é manifesto que há uma ordem natural entre os dois, razão por que
não podem eles reverter-se entre si indiferentemente. De fato, não se pode
dizer que, assim como da criança se faz o homem, assim do homem se faz a
criança, porque estes dois, de um dos quais se faz o outro segundo o primeiro
modo, não estão entre si como dois termos de certa transmutação, mas como dois
dos quais um vem depois do outro. E isso é assim porque o gerado, isto é, o que
é termo da geração, não se faz da geração como se a própria geração mudasse no
que é, senão que o ser vem após a geração porque se segue à geração segundo a
ordem natural (assim como o termo vem ao fim da via, e o último após o médio).
Se pois se consideram a geração e o ser, ver-se-á que não diferem do modo que
se excluiu, no qual só se considerava a ordem, como quando se diz que o dia se
faz da aurora porque vem depois desta. Mas tampouco aqui se pode dizer, pela
ordem natural que seguem, que inversamente a aurora se faz do dia: justamente
como, pela mesma razão, não se pode dizer que do homem se faz a criança. –
Segundo todavia o outro modo em que algo se faz de outro algo, dá-se, sim,
reversão ou reflexão: com efeito, assim como o ar se gera da corrupção da água,
assim também a água se gera da corrupção do ar. É que estas duas coisas não
estão uma para a outra segundo uma ordem natural, como de meio para termo, mas
como dois extremos que podem ser, ambos, primeiros ou últimos.
Supostas pois tais distinções, e sempre
segundo Santo Tomás no lugar citado, vê-se que é impossível um processo ao
infinito nos dois modos referidos.
• No primeiro, no qual, por exemplo, da
criança se faz o homem, não se pode proceder ao infinito porque a criança se
encontra como meio entre dois extremos, o ser e o não ser; e é impossível que,
dados estes dois extremos, haja infinitos meios, porque, com efeito, o extremo
repugna ao infinito. Trata-se da mesma razão que para as causas eficientes ou
motoras, onde sempre se dá uma ordem de anterior a posterior sem reversão ou
reflexão.
• No segundo, ademais, tampouco se pode
remontar ao infinito, mas aqui porque neste modo se dá reversão ou reflexão dos
extremos entre si. Com efeito, a corrupção de um implica a geração do outro,
mas, onde se dá reversão ou reflexão, volta-se ao primeiro, de sorte que o que
primeiramente foi princípio passa a termo. Mas isto não pode dar-se no
infinito, em que não há princípio nem fim.
Conclui-se, por conseguinte, que nada
pode fazer-se de outro ao infinito.
Como diz porém Santo Tomás em muitos
lugares e especialmente, repita-se, em Da Eternidade do Mundo contra
Murmurantes, conquanto saibamos pela fé que o mundo foi criado no tempo,
não é impossível porém que tivesse sido criado desde sempre. Neste caso,
portanto, como não se pode remontar ao infinito nas causas materiais,
dever-se-ia então encontrar um princípio material desde sempre existente de que
se fizessem todas as coisas – e pareceriam ter razão, então, os filósofos
pré-aristotélicos. Para refutá-lo, no entanto, basta que sigamos uma vez mais a
Santo Tomás.
Com efeito, Aristóteles mostra em que
sentido algo provém de um princípio material. Para tal, vale-se aqui de duas
suposições gerais com respeito às quais todos os filósofos antigos estavam de
acordo. A primeira é, precisamente, que existe um primeiro princípio material,
o que impede que se remonte ao infinito na geração. A segunda é a
sempiternidade da matéria prima ou primeiro princípio material tal como
postulado por eles. E desta segunda suposição conclui, de imediato, que de tal
matéria prima não se faz nada no segundo modo, ou seja, como do ar corrupto se
faz a água, porque o que é sempiterno não pode corromper-se. Poder-se-ia
objetar, porém, que tais filósofos não punham sempiterno seu primeiro princípio
material como se se tratasse de algo uno segundo o número, mas enquanto
sempiterno por sucessão, assim como se pode pôr a sempiternidade do gênero
humano. Mas exclui-o Aristóteles a partir da primeira suposição, dizendo que,
porque a geração não é infinita in sursum
e se detém num primeiro princípio material, é necessário que de tal princípio
de que as demais coisas se fazem por sua corrupção não seja o postulado por
aqueles filósofos. Insista-se, com efeito, em que não pode ser tal se de sua
corrupção se geram as outras coisas, e se ele mesmo se gera da corrupção das
outras coisas. Não resta senão, portanto, que as coisas se façam de um primeiro
princípio material como de um imperfeito existente em potência, intermediário
entre o puro não ente e o ente, e não como a água se faz da corrupção do ar e
vice-versa.
Pois bem, podemos considerá-lo, de
certo modo, o inverso da causa motora ou eficiente primeira: assim como esta,
para sê-lo, há de estar quanto ao ser acima da própria série de causas de que é
primeira, assim também a matéria prima, para sê-lo, tem de estar quanto ao ser
abaixo da própria série de entes de que é princípio material primeiro: ou seja,
subjacente a eles no sentido de implícita neles, porque, com
efeito, a matéria prima por si não tem forma nem ser, senão que está em
potência para todas as formas.
Mas justamente por ser pura potência
entre o não ente absoluto e o ente é que a matéria prima, como que mais que
tudo, tem de ter sido criada, ou seja, feita de nada, ex nihilo. Como
todavia é pura potência, não pode ter sido criada senão como já subjacente aos
entes em sua multiplicidade de formas, ou seja, enquanto já informada. Por isso
é que, se não pode por si proceder ao infinito segundo sucessão, pode no
entanto subjazer numa sucessão potencialmente infinita, por exemplo, de homens:
com o que voltamos às causas eficientes. “Deve dizer-se”, escreve Santo Tomás
de Aquino na Suma Teológica I, q. 46,
a. 2, ad 7,
“que nas causas eficientes é impossível proceder ao infinito per se: como se as causas que per se se requerem para algum efeito se multiplicassem
ao infinito; assim como se a pedra fosse movida pelo bastão, e o bastão pela
mão, e isto ao infinito. Mas per accidens
não se reputa impossível proceder ao infinito nas causas agentes: é como se
todas as causas que se multiplicassem ao infinito não tivessem ordem senão a
uma só causa, e sua multiplicação fosse per
accidens; assim como um artífice usa muitos martelos per accidens, porque um após outro se quebra. É pois acidental a
cada um de tais martelos que opere após a ação de outro martelo. E similarmente
é acidental a este homem, enquanto gera, que seja gerado por outro: gera, com
efeito, enquanto homem, e não enquanto é filho de outro homem; com efeito,
todos os homens generantes têm um mesmo grau nas causas eficientes, ou seja, o
grau de generante particular. Por isso não é impossível que um homem seja
gerado por outro ao infinito. Isto porém seria impossível se a geração deste
homem dependesse de outro homem, e de um corpo elementar, e do sol, e assim ao
infinito” (ou seja, enquanto ordenadas per
se, é impossível que estas causas não se detenham numa causa primeira e
universal). Pois bem, se é possível que um homem seja gerado por outro ao
infinito enquanto este é generante particular, e como no homem subjaz aquele
primeiro princípio material que é como um meio entre o puro não ente e o ente,
então é possível que deste modo a matéria prima também proceda ao infinito. E,
deste mesmo modo, poderia ter sido criada desde sempre por Deus.
De todo o dito, portanto, decorre que
aqui se trata de investigar não a origem temporal mas a origem entitativa do
mundo como um todo e de cada série sua – o que só é possível se se seguem os quatro passos ou degraus analógicos
postos mais acima. Ademais, como diz ainda o
Padre Penido,
“uma dependência ontológica nada tem que ver com o tempo, pois consiste apenas
numa relação; que esta relação tenha começado a existir em um momento dado, ou
não, pouco importa, contanto que haja uma Fonte e um [ente] que da Fonte receba
(cf. De pot. q. 3, a. 14 c. e ad 8)”.
O mundo, por conseguinte, poderia ter
sido criado desde sempre, sem que isso, aliás, implicasse coeternidade com o
criador: porque, com efeito, “Deus é anterior ao mundo em duração. Mas este anterior não designa prioridade de
tempo, senão de eternidade”.
Observação final 1. Insista-se em que, embora não
repugne à razão que o mundo tivesse existido desde sempre, é de fé, como sempre
o lembra Santo Tomás, que o mundo foi criado no tempo. Mais que isso, todavia,
é mais conveniente que tenha sido assim, porque assim mais e melhor se
manifestam o poder e a majestade de Deus. Com efeito, como diz Santo Tomás na Suma Teológica I, q. 46, a. 1, ad 6, deve considerar-se que o
agente universal “deu a seu efeito tanto tempo quanto quis, e segundo o que foi
conveniente para demonstrar sua potência. De fato, de modo mais manifesto
conduz ao conhecimento da potência divina criadora que o mundo não tenha sido
sempre do que se tivesse sido sempre: tudo, com efeito, o que não foi sempre é
manifesto que tem causa; mas não é tão manifesto que [a tenha] o que sempre
foi”.
Observação final 2. Ademais, ainda que Deus tivesse
criado desde sempre ou certos entes ou o universo como um todo, não se trataria
de eternidade. Com efeito, como diz Boécio, “a eternidade é a posse simultaneamente total e perfeita de uma vida interminável”.
Mas, se Deus tivesse criado desde sempre algum
ente incorruptível, este estaria ou no evo ou no tempo, de cuja razão não faz
parte a simultaneidade total e perfeita. Se todavia tivesse criado desde sempre
o universo como um todo, este também seria segundo
algum modo de sucessão, razão por que tampouco seria de sua razão a simultaneidade
total e perfeita. Não há pois repugnância entre que
Deus seja eterno e que tivesse criado algo desde sempre.
Observação final 3. Por fim, disse-se mais acima que é preciso um
Ente que não só seja causa dessas coisas deficientes, senão
que saia delas, escape a elas. Sucede porém que, quando se encontra, assim, tal
Ente que está acima ou fora da série das coisas deficientes, já não
poderá dizer-se tão somente Ente, porque, com efeito, tal Ente
acima da série das coisas deficientes é seu mesmo ser e, pois, é o Ser. É o
próprio Ser subsistente por si mesmo.
Com efeito, “em
cada ciência definimos o sujeito pelo gênero próximo e pela diferença, que são
princípios de nosso conhecimento que consideram o sujeito a modo de todo e se
distinguem secundum rationem. Mas
deveríamos defini-lo pelos princípios, causas e elementos em si do sujeito,
distintos secundum rem, para poder
ter verdadeiras demonstrações propter
quid, que deem a causa real segundo a natureza do sujeito. Este duplo
problema não tem solução completa, mas parcial, por uma dupla circularidade,
que deixa o conhecimento científico das coisas coberto por um duplo véu” (Padre Álvaro Calderón, op. cit., p. 363). Note-se, pois, que
este duplo problema implica, sim, certa circularidade e não encontra senão
solução parcial – mas solução,
afinal, enquanto a circularidade kantiana, de natureza muito diferente, jamais
encontra solução ou saída alguma. Trata-se de uma sorte de aporia, ou de aporema.
Este opúsculo, de 1270 (ou seja,
o ano em que Santo Tomás termina a Prima Secundae da Summa Theologiae), parece-nos fundamental para a refutação de
muitas das objeções às cinco vias tomistas. – A tradução e as notas são nossas. – Para o texto
latino, http://www.corpusthomisticum.org/ocm.html. – Parall.: Summa Theol. I, q. 7, a. 4; II Sent., dist. 1, q. 1, a. 5, ad 17 ss.; De verit., q. 2, a. 10; Quodlib., IX, a. 1, ad 2.; III Physic.,
lect. 12; e Summa Theol. I, q. 46, a.
1; II Sent., dist. 1, q. 1, a. 5; Cont. Gent., II, 31 ss.; De pot., q. 3, a. 17; Quodlib., III, q. 14, a. 2; Comp.
Theol., c. 98; VIII Physic., lec.
2; I De cael. et mund., lec. 6, 29;
XII Metaphys., lect. 5; Summa Theol. I, q. 46, a. 2; II Sent., dist. 1, q. 1, a. 5; Cont. Gent., II, 38; De pot., q. 3, a. 14; Quodlib., XII, q. 6, a. 1; Summa Theol. I, q. 46, a. 3; II Sent., dist. 1, q. 1, a. 6. Cf. o apêndice
nosso.
Cf. Aristóteles, Phys.,
VIII, 2, 251 b 21.