quinta-feira, 25 de junho de 2015

Ente; essência; termo médio (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


RESPOSTAS DO PROFESSOR NO CORPO DO E-MAIL DO ALUNO

Professor, comecei a ler algumas das obras indicadas (Analíticos Posteriores II é bem difícil) nas bibliografias e senti a necessidade de fazer algumas perguntas a fim de saber se estou raciocinando corretamente ou não a respeito do conteúdo dado. Também gostaria de perguntar como o ambiente filosófico contemporâneo lida com as matérias que foram tratadas nas aulas até aqui.

RESPOSTA. Eu talvez não tenha sido suficientemente claro. Não lhes recomendei que lessem agora as obras indicadas, até porque o curso visa precisamente a dar-lhes o instrumental necessário para lê-las. As obras indicadas devem ser lidas ao fim do curso. E ainda assim cuidado, porque, como digo abundantemente ao longo das aulas, não se devem ler muitas obras de Aristóteles diretamente, sobretudo as mais obscuras (e os Analíticos Posteriores talvez sejam a mais obscura), senão que se devem ler os Comentários de S. Tomás a elas. O gênio do Aquinate foi capaz de desentranhar o sentido do conjunto da obra do Estagirita, a qual nos chegou em textos muitas vezes enigmáticos, lacunares, elípticos.

1)      Pela aula 3 cheguei à conclusão de que o ente é aquilo que é ou que tem ser, conforme foi dito, e de que a essência é aquilo que me permite definir o que é este ou aquele ente em particular. Por exemplo: O que é este ente chamado homem? Está correto tal raciocínio? 


RESPOSTA. Sim, ente é o que é, mas, como se verá ao longo do curso, o único ente a que se pode atribuir isso simpliciter é Deus. Os demais, mais que serem o que é, têm ser por participação. Por seu lado, essência ou quididade é o que se dá como resposta à pergunta o que é, quid sit ou quid est. E o que se dá como resposta a esta pergunta é a definição da coisa, como verá nas aulas. Assim, a essência ou quididade de homem é expressa por sua definição: animal racional.

2) Nos Analíticos Posteriores II  Aristóteles afirma: “Assim, como asseveramos, conhecer a essência de uma coisa é o mesmo que conhecer a sua causa. Isto assim é, quer o sujeito simplesmente seja independentemente de ser qualquer de seus predicados, quer seja um dos predicados; por exemplo, ter a soma de  seus ângulos igual a dois ângulos retos, ou maior ou menor”. Confesso que não entendi por que ele afirma que conhecer a essência de algo é equivalente a conhecer a sua causa.

RESPOSTA. Além de recomendar-lhes que não leiam agora tais obras aristotélicas, e de que leiam antes os Comentários tomistas a elas, recomendo ainda que tenham cuidado com as traduções. Esta não me parece muito boa. Pois bem, em toda esta passagem dos Anal. Post. (89b23-90a 35), Aristóteles trata de duas coisas essenciais:
a) as perguntas que se podem fazer a respeito de um ente, e que são quatro: quia (que algo é); propter quid (por que causa); an sit ou si est (se é ou se existe); quid sit ou quid est (o que é);
b) o que é o termo médio da demonstração, que é o que dá propriamente a causa de ser (ou do modo essencial de ser) da coisa, e até do próprio ser da coisa.
E, quando diz que conhecer sua essência é conhecer sua causa, Aristóteles quer dizer que (di-lo agora Santo Tomás) “a pergunta o que é [que requer por resposta a essência] e a pergunta por quê [que requer por resposta a causa] remetem ao mesmo sujeito, ainda que difiram na noção [grifo meu]. Daí que, quando se busca por quê, se busca o que é o meio [ou termo médio]”.
Pois bem, trato disto aprofundadamente ao longo das aulas 3-10.   

3) Tornou-se recorrente no mundo contemporâneo afirmar ser impossível conhecer a essência das coisas, acho que isso começou com Kant ao dizer que a coisa em si mesma é incognoscível. Pelo pouco que já estudamos até aqui, qual seria o erro da fenomenologia kantiana e seus partidários?

RESPOSTA. O erro principal do kantismo é exatamente este: afirmar que não conhecemos a coisa em si, o númeno, mas tão somente seu fenômeno, ou seja, o que dela é captado segundo nossos conceitos a priori. Pois bem, se não podemos conhecer a coisa em si, daí se conclui que também a mesma tese kantiana não atinge o númeno, a coisa em si das relações entre realidade extramental e intelecto. Ou seja, também ela é resultante de ideias a priori, razão por que não se pode dizer verdadeira – se se considera que a verdade, como o direi em algumas aulas, é uma relação de adequação entre o intelecto e a coisa.    

4) Outros filósofos creio que também herdeiros de Kant, tentaram criar cada um a seu modo, filosofias de viés hermenêutico/linguístico tais com Wittgenstein, Heiddeger e Gadamer. Em que erram as "filosofias da linguagem" contemporâneas no que tange às noções de ente e essência?


RESPOSTA. São erros de aparência diversa, mas de fundo arraigadamente kantiano, ou husserliano. Mas Heidegger tentou dar um passo mais, e criticou a filosofia ocidental por ter-se esquecido do ser, em benefício tão somente do ente. À parte os erros próprios deste filósofo quanto a estes mesmos temas, poder-se-ia conceder isso que diz, mas com a seguinte ressalva: diz ele que leu inteira a Suma Teológica de S. Tomás. Se o fez, porém, não a entendeu, porque obviamente a Metafísica tomista é-o exatamente do ser: como diz o Aquinate, o ser (ou ato de ser) é o que há de mais íntimo aos entes, e é a atualidade não só da essência, mas de todos os atos, incluídas as mesmas formas. Também disto falo bastante no curso.