quarta-feira, 17 de junho de 2015

As duas sabedorias (em resposta a perguntas de aluno do curso Por uma Filosofia Tomista)


Quanto à aula 1 se me apresentam estas duas dúvidas:
a) 1- Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas. Seria isto realmente um antropocentrismo? Eu imagino que, talvez seja apenas um reconhecimento da obra mais perfeita de Deus: o homem. Criação tão perfeita que o próprio Deus se fez Um conosco. Sendo assim, imagino que seria bastante lógico que o homem fosse o centro de todo o sensível que existe, portanto a medida de todas as coisas, o meio, o central, o principal. Já certa vez ouvi falar de um trabalho científico que afirmava que o homem é o meio de tudo o que de sensível existe. Seríamos a média das medidas de todo o universo, o centro entre os átomos e as constelações. Não encontrei este trabalho nunca, mas vou procurar novamente.

RESPOSTA. Vou por partes na resposta.
• Sem dúvida alguma é um antropocentrismo. Deus é que é a medida de todas as coisas (sensíveis e não sensíveis). Como veremos no Apêndice “A Política e Sua Ordem ao Fim Último do Homem”, tudo quanto há imita de algum modo a Deus: o não vivente enquanto é (porque Deus é o próprio Ser); o vivente enquanto é e vive (e a vida de Deus é a vida por antonomásia); o vivente sensível enquanto é, vive e conhece (e Deus é o próprio conhecer, sobre todo e qualquer conhecer); e o homem e o anjo enquanto são, vivem, conhecem intelectivamente e querem, cada um a seu modo (e Deus é o Intelecto-Vontade de que todo intelecto e todo querer decorrem).
• A obra mais perfeita de Deus não é o homem, mas os anjos, e a mesma afirmação de que o é o homem já é antropocêntrica.
• Aqui entramos de chofre na Teologia Sagrada: Deus só se fez uno conosco secundum quid, em certo sentido: a saber, segundo assumiu a natureza humana. Mas em Cristo a natureza humana se ordena à divina; e mais: ele encarnou-se não por causa da perfeição do homem, mas para salvá-lo, para redimi-lo – e quem necessita de salvação e redenção não pode senão ser imperfeito. Dizer que ele se encarnou por causa da perfeição do homem é como pôr a Deus abaixo do homem e dar a este o ser causa das ações daquele, o que é um absurdo em todos os sentidos. O que você afirma supõe, mesmo que inconscientemente, a mais condenável das teses do humanismo teológico: a de que Deus criou o mundo e se encarnou para maior glória do homem. Aristóteles horrorizar-se-ia, com razão, diante de tal tese. Muito pelo contrário, Deus criou tudo – incluído o homem, o ápice da criação sensível – e encarnou-se em ordem à sua mesma glória, para maior glória dele mesmo. (Não que necessite de tal glória, senão que lha devem todas as criaturas, incluído homem, justo por ser criaturas suas.) Se assim não fosse, deveríamos louvor antes ao homem que a Deus, o que não se segue.
• O trabalho científico a que você se refere não pode passar de hipótese, e jamais comprovável cientificamente. Por quê? Porque, para saber que algo é o meio ou centro do universo, é preciso ver de cima todo o universo: com efeito, não se encontra o centro de uma circunferência sem que se tenha a esta inteira no campo de visão. Ora, os únicos que podem apreender todo o universo são Deus mesmo ou os anjos; portanto, a certeza quanto a se há tal centro sensível, e, caso o haja, se é o homem, continuará nesta vida a ser segredo para nós. – O que, sim, se pode dizer com toda a certeza é que o homem é a fronteira entre o sensível e o espiritual. Por quê? Porque os reúne a ambos em si: ele é tanto sensível, pelo corpo, como espiritual, pela alma.

b) 2- Noite da inteligência até à filosofia grega: os ensinamentos da antiga Religião verdadeira, que, desde a expulsão do Éden foram ensinados e tradicionalmente reproduzidos até a vinda de Nosso Senhor não seriam também sabedoria e/ou inteligência? O que os gregos ensinavam pela filosofia e razão, em outras terras se ensinava pela revelação e fé já há muito tempo antes.

RESPOSTA. Outra vez por partes.
• Novamente estamos no âmbito da Teologia Sagrada. Pois bem, há dupla sabedoria: a sabedoria alcançável pela razão, e a sabedoria decorrente dos dados da Fé. A primeira é a Filosofia, e especialmente a Filosofia Primeira (ou Metafísica ou Teologia Filosófica), seu ápice, e se alcança pela só razão; a segunda é a Teologia Sagrada, e não depende da razão, senão que parte da Revelação divina e se subalterna à ciência de Deus mesmo e dos bem-aventurados. É ocioso dizer que a segunda sabedoria é superior à primeira.
• Quando falo da noite da inteligência, falo precisamente com respeito à razão.
• O que os gregos ensinavam pela filosofia e pela razão não é, formalmente, a mesma coisa que o que Deus ensinava ao povo judeu, embora as duas coisas não se contradigam: porque, sendo Deus mesmo o autor da Verdade, e sendo a razão criação dele mesmo, não poderia ele fazer que a verdade alcançável por esta contradissesse a verdade sobrenatural ensinada por Ele (e não alcançável pela razão). Uma coisa, todavia, é dizer que não se contradizem, e que se completam; outra é dizer que são formalmente iguais. Que se quer dizer, aqui, com formalmente? Para que se entenda, recorramos a uma analogia. A Metafísica ou Teologia Filosófica tem por sujeito ou genus subjectum o ente enquanto ente, e trata a Deus como causa do ente; enquanto a Teologia Sagrada tem por sujeito ou genus subjectum a Deus enquanto Deus, e trata o ente enquanto causado por Deus. Pois bem, analogamente, a razão por si mesma alcança verdades e, decorrentemente, alcança a Deus enquanto causa destas; ao passo que a Revelação dá a Deus mesmo, enquanto tal, à razão e mostra que todas as verdades decorrem dele. Ademais, a razão tem limites quanto ao que pode conhecer de Deus: não pode alcançar sua vida íntima; ao passo que a Revelação já nos dá, incoadamente, algo de sua vida íntima, ainda que por trás dos véus da Fé. Não incorramos, pois, em certos erros do início da Teologia Sagrada, e corrigidos até pelo magistério, ou seja: não façamos Platão reger a Bíblia, nem Moisés dirigir a Academia.

E com isto creio que se termina de responder a suas dúvidas, conquanto muito se tivesse de dizer ainda acerca do assunto que nos ocupou.