segunda-feira, 20 de julho de 2020

SAUDADE DO CHORO

    
Carlos Nougué
(2001)
   
Nota prévia: Este é um dos primeiros escritos que cometi após minha conversão ao catolicismo – e dos poucos que se salvam de antes de minha conversão, pelo contato com a obra do Pe. Álvaro Calderón, a um tomismo real, vivo e fiel. Como porém a velhice é também o momento de ajustar contas com nosso passado, mandando à fogueira o que não presta e resgatando o que possa ser de alguma utilidade à verdade e ao próximo, republico agora (com pequenas alterações) este já antigo opúsculo, vazado, é certo, numa escrita de caráter antes retórico, mas de cujas mesmas raízes acabaria por brotar o livro Da Arte do Belo, que creio seja até agora minha mais importante contribuição filosófica.

*  *  *

É comum ouvir, entre amantes de boa música (quer dizer, aquela que se convencionou — não sei se com toda a propriedade — chamar “erudita”), que o choro é, se tanto, arte menor, meramente porque “popular”. E não raro, para evitar dessas discussões de que não redundam senão trevas, deixei de dizer de meu gosto por, entre outros, “Canhoto”, este artista instalado cômoda e belamente na fronteira entre os dois adjetivos acima aspeados. Pois bem, é enquanto escutava (e escuto) o CD Valsas Imortais — Francisco Mignone na Arte de Maria Josephina ao Piano que tomei coragem para escrever este elogio do choro, ou melhor, este elogio da alma brasileira.
Antes de mais nada, há que fazer estrita justiça à arte do mesmo Francisco Mignone (1897-1986), ressaltando-lhe tanto o lado luminoso como o escuro. Mignone é das figuras mais ilustres da nossa música. Flautista precoce, já aos treze anos se apresenta em público, e ainda moço já lhe aparecem as primeiras composições. Estuda em Milão com Vincenzo Ferroni, e é-lhe incessante a atividade criadora, incessante e abrangente, sobretudo, das formas musicais brasileiras (como a seresta, o choro, etc.) e de soi-disant formas musicais indígenas e africanas. Em 1923 o regente Richard Strauss inclui-lhe a Congada em seus concertos, e na década de 1940, à frente da Filarmônica de Nova York, Arturo Toscanini grava-lhe a Festa das Igrejas. Entre suas 1.024 obras catalogadas, há dois oratórios, quatro óperas, sete missas, 17 bailados, 170 composições de câmera, 221 canções e 232 peças para piano solo. Monumental é o menos que se pode dizer destes números, e perene é o menos que se pode dizer de parte deles.
De parte, sim, porque de outra parte Mignone foi vítima do mesmo mal que fez perder quase inteiramente o talento de um Mário de Andrade e que torna exasperantes certas peças do próprio Villa-Lobos: o populismo nacional-modernista. Podem-se aplicar a este mal — o qual, semeado na indigência indigenista finissecular e brotado da manifesta tolice de 22, devasta a cultura brasileira até hoje — estas palavras de Gustavo Corção, escritas, em 1957, com respeito ao fenômeno universal de que nosso populismo nacional-modernista parcialmente deriva: “A mais humilhada das artes [a pintura] tirou uma desforra completa. Fugiu do internato. Rasgou o uniforme. E andou pelas ruas da cidade descabelada e impudica. Fauvismo, cubismo, dadaísmo, futurismo, orfismo, sincromismo, construtivismo, suprematismo, purismo, surrealismo, pós-cubismo e pós-surrealismo, abstracionismo... A história continuava a descrever a perigosa curva. E foi nos solavancos e na vertigem da mudança geral de valores e critérios que se realizaram as ofegantes experiências das ideologias estéticas. É difícil discriminar o falso e o genuíno, o estéril e o fecundo, nessa Babel de tentativas. É difícil saber qual é a parte de todo esse conjunto em pânico que terá ingresso não nos salões oficiais dos juízes carregados dos preconceitos das épocas, mas naquele salão universal e apoteótico que os anjos contemplam. [...] O espírito burguês está vivendo uma antítese do fixismo derrubado. Tornou-se revolucionário, rotineira-mente revolucionário. A audácia de recusar foi substituída pela audácia de aceitar e de fingir que compreende. Ao farisaísmo de 1870 responde o mundo moderno com um publicanismo de infinita tolerância, que muitos pensam ser uma infinita sabedoria. E, quando a forma de uma poesia parecer esdrúxula demais, o público tem uma moeda para comprá-la, uma fórmula para classificá-la: arte moderna. Nós nos rimos dos críticos que insultavam Manet, que hoje nos parece tão pacato e tão acadêmico. Quem se rirá da benevolência de nosso tempo? O fato é que as formas surpreendentes não surpreendem mais ninguém. A ideia de um transformismo contínuo espalhou-se. E, com esse critério, vale tudo. E assim o revolucionarismo da arte tornou-se a coisa mais rotineira do mundo”. 
Junte-se pois a isto a pitada insulsa do suposto nacionalismo de raízes supostamente indígeno-africanas, e ter-se-á o fato, triste, de que parte da obra de Mignone, por cacofônica, não há de acolher-se na harmonia das esferas.   
Felizmente só parte de sua obra, porque a outra, sumamente representada pelas Valsas que sigo escutando, há de incluir-se naquele Salão apoteótico ao lado do Requiem de Luis de Victoria, das Partitas de Bach, da Missa inacabada de Mozart, de alguns Lieder de Schubert, da Batalha no Gelo de Prokofiev. E antes de mais nada porque com estas Valsas — tanto as 12 valsas-choro como as 12 valsas chamadas “de esquina” — “canta todo o Brasil”, como disse Manuel Bandeira. Aqui, sim, está o Brasil inteiro, está sua alma, como nem de longe está nas incursões moderno-populistas de Mignone. Veja-se, para o começarmos a entender, a razão de ser da denominação “de esquina”. As três primeiras valsas hoje assim denominadas não o eram originalmente. Mas, ao ouvi-las, disse sabiamente Mário de Andrade: “Essas valsas me reconduzem ao tempo da minha mocidade, quando músicos seresteiros com suas flautas, clarinetas e violões improvisavam, nas esquinas, inequívocas mensagens melódico-românticas às moças que se escondiam atrás de cortinas ou grades da época. E a música subia até elas, que, ansiosas e suspirando, recebiam embevecidas a mensagem sonora que os notívagos seresteiros prolongadamente tocavam. Era o ‘choro’ que vinha lá das esquinas; ‘choro’ que muitas vezes era misturado à brancura do luar ou ao piscar das estrelas”. Aí está, claramente, a razão daquele nome, o qual Mignone mais tarde estenderá ao conjunto das doze valsas escritas em todos os tons menores da escala diatônica. Em todos os tons menores, disse, e acrescento: em todos os tons do “choro”. Do choro que vinha das esquinas e que, misturado ao branco da noite, vinha também de mais longe ainda, de muito mais longe: da melancolia, da lágrima doída que rebrota e se faz arte, desde o Medievo, no solo das antigas tribos lusitânicas. 
Sim, ali mesmo onde desabrochou a Última Flor do Lácio, naquele mesmo lado oeste de uma Península no qual se haviam instalado alguns dos aguerridos ramos célticos da diáspora babélica, forjara-se uma palavra úmida como um pranto: a tão nossa “saudade”. Mas entenda-se corretamente este “tão nossa”. Contrariamente ao que em geral se pensa em Portugal como no Brasil, “saudade”, como qualquer outra palavra, tem correlatos em todas as línguas do mundo, quer por termos únicos, quer por locuções ou paráfrases. No lado leste daquela mesma Península, no qual se haviam instalado outros dos aguerridos ramos célticos da diáspora babélica — os celtiberos, entre eles —, “saudade” diz-se añoranza,  que deriva do verbo añorar, que descende do catalão enyorar, que por sua vez vem do latim ignorare (‘ignorar, não saber onde está alguém’). Mas uma coisa é añorar e suas reverberações duras como dura foi a resistência ao longuíssimo cerco romano de Numância, e outra, muito diversa apesar da mútua traduzibilidade, é “saudade”, que descende do latim solitate (soledade, solidão), por intermédio do português arcaico soydade ou suydade, e com influência tanto de saúde como de um termo árabe que designa “melancolia” (o estado mórbido de tristeza e depressão que se julgava causado pela bílis negra). O espanhol consola-se de alguma añoranza sapateando marcialmente um flamenco; o português chora a sua saudade rasgando na guitarra e na voz um fado, quase como Édipo a cegar-se ante a inexorabilidade do Fado, mas somente “quase”, porque o português que forjou a tão nossa “saudade” não só já é cristão, como é cristão de tipo muito especial — o tipo que forjou corridas onde morre antes o homem, e nunca o touro.
E, se é fato que o fado é forma musical recente, igualmente o é que ele, em sua essencial natureza de lamento e lágrima, deriva remotamente não só das (não raro melancólicas) canções cortesãs de amigo e de amor, mas também, por outro tronco, das lástimas cantadas aos Sete Pesares que Santa Maria sofreu por Seu Filho (“Tantas eu não teria / lágrimas que chorasse / quantas eu quereria, / se antes não me lembrasse / como Santa Maria / viu quanto lhe doíam / as dores de Seu Filho, / antes que Ele a levasse”, diz a pungente Aver Non Poderia do Trovador da Virgem, D. Afonso X, o Sábio, o rei espanhol [século XII] que compunha unicamente em galaico-português). Pois é desta nobre e cristã linhagem de pranto que descende, em parte, também a valsa brasileira. Certas referências situam em fins do século XVIII o surgimento aqui deste gênero musical, mas é apenas do século XIX que data o primeiro documento de natureza musical que tanto atesta a existência da valsa como revela seu autor: o nosso primeiro imperador, S. A. R. D. Pedro. Mas há que distinguir a valsa de salão do tempo do Império ou uma valsa de bravura para concerto (como as compostas por Carlos Gomes), as quais como a modinha têm, obviamente, sangue azul cosmopolita, da brasileiríssima valsa caipira, ou de uma valsa dos chorinhos cariocas, ou ainda da valsa lenta para piano, nas quais, como outra vez na modinha, ademais de correr em alguma medida sangue azul, também correm lágrimas como as que corriam já nas igrejas, na corte e nos lares da Cristandade portuguesa e seguem a correr sobre as atuais guitarras do fado. Uma prova de tão intricados elos? Ei-la: este mesmo fado se origina do lundu do Brasil colônia, gênero de canção influenciado pelo lirismo da modinha, e introduzido em Lisboa após o regresso de D. João VI, em 1821. É o vaivém transoceânico do choro e da saudade, estas aves do lamento que gorjeiam aqui exatamente como lá.
A arte sempre foi, desde a Antiguidade pagã, um tabernáculo da lágrima, uma morada da dor humana. E pode-se dizer sem receio de erro que nesta Antiguidade, cega pelo pecado e vítima da corrupção religiosa, não havia outro refúgio para o coração e suas penas. Foi ela tal refúgio, todavia, também entre o povo eleito, que se lamentava em versos e versículos tão poéticos quão lacerados como os do Eclesiastes — sob a crua claridade do sol, só há mal e iniquidade. Mas o sábio que aí pranteava amargamente sabia, ao cabo, deixar como suspensa a sua plangência: ele tinha já a ciência do Senhor seu Deus, e Sua promessa de um Redentor. E Este veio, e nos redimiu pela Cruz, e nos deu, pelo mérito da Sua morte na Cruz, a notícia de nossa ressurreição. O homem já podia enxugar o pranto... mas não definitivamente. Chorou o próprio Cristo a morte do amigo Lázaro, chorou Sua Mãe o choro do Filho de Deus e do Homem, e choramos os cristãos o choro d’Ele e o choro d’Ela; choramos os cristãos o choro da condição herdada da Queda, choramos o choro de todos os homens e o choro de todas as coisas. Choram, choramos todos. Choramos todos, como chorava D. Manuel em tantas canções, a saudade de um amor não correspondido; choramos, perpétuos exilados, a saudade de todas as pátrias; choramos, permanentes crianças, a saudade da mãe que já não nos pode embalar com braços de carne; choramos, viúvos perenes, a saudade da cabeça conjugal no leito de nosso ombro; choramos, pais truncados e impotentes, a saudade e as dores distantes do filho mui querido; choramos o amigo que foi morrer em justa guerra, e o amigo que nos morre por iníqua, traiçoeira guerra. E choramos os cristãos, ademais, o pecado, o pecado de todos nós, as ofensas sem fim ao Senhor dos exércitos e Deus de Bondade. E não podemos deixar de chorar nós, os cristãos, apesar de nos sabermos redimidos e apesar da notícia da ressurreição, porque fazê-lo seria pecar por soberba — seria considerarmo-nos isentos de dores, acima das criaturas e suas lágrimas, acima das sequelas do pecado original. Seria comer, outra vez, da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, como outra vez o fizeram aqueles que, pela vã cobiça e ante o lamento do Velho de Restelo, se abalançaram sem lágrimas atrás da Fama e do longínquo ouro deste mundo; como outra vez o fazem os tantos cínicos modernos, os construtores de paraísos terrestres, os inventores da linhagem símia para o homem, os descobridores da origem do universo sem um Criador, os que riem desgarradamente da Fé, da Esperança, da verdadeira Caridade com os dentes cariados de sua própria condenação.
Digamos sempre com Gustavo Corção: “Não basta, ó poeta [Carlos Drummond de Andrade], mostrar às almas aflitas a doçura das relvas, a frescura das ondas, e a ternura dos regaços de amor. Porque isto não é toda a verdade da vida. E é preciso ser verdadeiro. É preciso, sempre, ser verdadeiro. Em toda a extensão. Em toda a profundidade. Nos dois hemisférios de luz e sombras da verdade. O que é preciso dizer, a esses moços que por tão pouco desesperam [e se matam], é que existe uma dignidade no centro mesmo da dor; que a dor não excomunga; que a dor já foi santificada para que possa santificar. O que é preciso, ó poeta de alma grande, é abrir vela ao mar, e descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida. Ah! essa história maravilhosa que a mim me contaram, como eu gostaria de lha contar longamente! longamente!”
Mas o choro do cristão, se não pode desprezar nunca o choro alheio, e se não pode interromper-se nunca de todo, também não pode ser ininterrupto... nem copioso. Porque nos sabemos redimidos, e porque temos a notícia da ressurreição, nosso choro há de ser como a lágrima que estancamos com a parte superior do índice ou com a ponta de um doce lenço. Há de ser como o choro de Cristo antes da ressurreição de Lázaro, como o choro da Santa Maria de Afonso X, como o choro contido de nossas melhores Piedades em pedra ou mármore. Chorar ininterrupta e/ou copiosamente nossa miséria é fazer ouvidos moucos às Palavras ditas na Cruz e à Notícia da Vida, e é pois também pecar por soberba. É comprazer-se com os sartrianos de todos os matizes num inferno de náusea e de lágrimas flamantes; é a forma em negativo do amor-próprio, é a outra face da vã cobiça. Escutemos Pascal (tão nefasto, porém, em tantos outros aspectos): se é perigoso salientar a grandeza do homem sem lembrar sua ignomínia, é-o por igual mostrar demasiadamente, como regozijando-se com isto, quanto ele se assemelha com os animais sem mostrar a sua grandeza. “Tão grande é o homem”, escreve este jansenista de Port-Royal, “que até naquilo em que se reconhece miserável transparece sua grandeza. Uma árvore não sabe que é miserável. É bem verdade que já há miséria no reconhecimento da miséria; mas há também grandeza na consciência de ser miserável. Assim, todas as misérias do homem provam sua grandeza! São misérias de grão senhor, misérias de rei despojado”. E tal vale, como regra  de equilíbrio dinâmico, tanto para a vida individual como para a vida das civilizações. E pois para a arte do belo, este ponto único de encontro entre o singular e o geral.
Ora, a civilização em que nos cabe hodiernamente viver começou por um desequilíbrio, e está a terminar por outro. O Renascimento foi uma febre alta, em que arderam os sentimentos de exaltação e de grandeza do homem, “com esquecimento”, como diz Corção, “do espírito de temor e penitência”; movidos pelo ideal de fama e glória, os artistas de então, os bons como os maus, ostentavam sem rebuço a avidez de encômios e a ânsia de lauréis. Esquecera-se a lágrima, cultivava-se a baba melíflua das cobiças. Mas houve que passar os séculos, e transmudar-se em humilhação e indigência a quimera da cupidez e da evolução. Que vemos hoje, e particularmente nas artes, senão o espetáculo do pessimismo entronizado, a ditar não lágrimas de sangue nem, muito menos, lágrimas sabeias ao Senhor, mas lágrimas intermináveis de menino que chora apenas a frustração da sua traquinice e a dor da dura palmada paterna? “Quanto mais baixa for a baixeza”, diz ainda Corção, “maior deverá ser a elevação do artista que deseja mostrá-la. É preciso subir aos céus para ver com transparência a profundidade dos mares. É preciso ter experiência, experiência de piedade e não de ressentimento, experiência de amor e não de decepção de adolescente, experiência de humildade e de dor, mas de dor mansa e paciente, para descobrir o segredo inteiro, completo, com todo o seu terrível baixo-relevo, da humanidade.”
E, se tal é maximamente verdadeiro para cada obra de arte do belo, também o é para o conjunto da expressão artística das civiliza-ções. Naturalmente, o equilíbrio dinâmico de que fala Pascal não se dá igualmente em todas as nações, nem nas cristãs. Por certo, dava-se diferentemente na Espanha e no Portugal católicos. Neste mais que naquela, no Brasil mais que na América Hispânica, o pêndulo sempre tendeu à lágrima e ao lamento, às Dores de Santa Maria, à plangência de Camões, ao pranto da viola caipira sob o luar do sertão (e, quando deixou de fazê-lo, naufragou-se na voragem do triunfalismo sebastianista); isto, porém, no quadro mais ou menos estrito do Catolicismo, nunca se sobrepôs à Fé. ”Alma minha gentil, que te partiste / Tão cedo desta vida descontente, / Repousa lá no céu eternamente, / E viva eu cá na terra sempre triste”, chora Camões o desconcerto da viuvez, para depois, alhures, cantar com Santa Úrsula o anseio do eterno Colo do Pai e, assim, enxugar com a pontinha do largo lenço da Esperança a lágrima do amor cindido. E não diz a Cristo até o mesmo Machado de Assis que, por outro lado, se mostrava tão “genialmente” nefasto em seus romances sempre niilistas: “Senhor, [...] a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes, que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava”, para obter em resposta: “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”? 
Mas aquele germe de corrupção que se lançou, já na mui distante virada do século XIII para o XIV, com a guerra ao tomismo, e que viu nascer seus frutos mais podres já imediatamente após a morte de Santa Joana d’Arc, e que tomou proporções dantescas, no universo lusitano, já com o triunfo de Pombal e da maçonaria, produz hoje, especialmente no Brasil, o inominável. Está perdida a alma brasileira. Perdemos as raízes da Lusitânia medieval, da arte refinada de Camões, da saudade sertaneja e do choro carioca, e cada vez mais se silencia quanto ao único que desta alma e raízes nos resta: a autêntica arte do Nordeste, a de um Elomar, essa arte gretada como o chão da seca, e fendida como as costas dos Penitentes. Em troca de que, Deus do Céu, se quer matar esta morte redimida e transfigurada em belo? Em troca do pessimismo de almanaque dos novos “talentos” literários, vomitados abundantemente no mercado livresco como automóveis último-tipo, ou da alegria esfuziante do carnaval cingido de cimento niemeyeresco, dos requebros corporais e mentais dos Caetanos de todas as Bahias, da arte real-revolucionária dos raps e funks e pelos direitos dos delinquentes.
Sim, ainda se pode comprar um CD como Valsas Imortais — Francisco Mignone na Arte de Maria Josephina ao Piano, assim como se podem comprar as Obras Completas de Camões ou Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira, nas megalivrarias das grandes capitais. No mercado, afinal, tudo se encontra. Mas já não brotam Camões nem Bandeiras, além como aquém-Atlântico. Nem Mignones. Como haveriam de brotar, se já não se nos fertiliza o solo com autênticas lágrimas, com a saudade vinda das entranhas do espírito lusitânico, com a arte menor (ou seja, segunda na ordem pura do artístico, mas nunca secundária, antes primária, na ordem da civilização) das valsas e dos choros sentimentais, seresteiros, saudosos, violoneiros que rebrotaram nestas tocantes 24 valsas de Francisco Mignone (uma delas é pura recriação da melancólica “O cravo brigou com a rosa...”)? Disse “rebrotaram”, e disse-o bem: rebrotaram como arte maior. Nada ficam a dever estas duas dúzias de pérolas musicais aos melhores Noturnos de Chopin, e superam as peças do Polano-francês mais romanticamente derramadas e longas, precisamente por sua concisão de lágrima que se enxuga com a parte superior do índice... (Algumas peças de Chopin, como alguns concertos e sonatas de Brahms, por gigantes que sejam seus compositores, tangenciam o pranto falso daquele comprazer-se com a própria miséria; é o pecado do romantismo extremo.) São, como os melhores Noturnos de Chopin, autêntica transfiguração da lágrima em belo artístico, ou seja, neste gênero de símbolo como tetraédrico, que se constrói 1) como belo em si mesmo, 2) como forma significante de um aspecto qualquer da Criação, 3) como melancolia pelo perecível de seu próprio material, e 4) como saudade e ânsia do Belo que não perece.
Mas também estas 24 Valsas de Mignone, como alguns dos Noturnos de Chopin, como os prantos poéticos de Camões, como os “Eclesiastes” de Machado de Assis, são, por seu turno, arte menor — do ângulo da vida eterna, ou melhor, perdurável. Nela estas obras, por um lado, deverão de julgar-se segundas, porque já não haverá nem sombra de seu motivo mais imediato, ou seja, a dor do homem, a lágrima da contorção de todas as carnes e da crispação de todas as almas; mas, por outro lado, deverão de julgar-se primárias, e perenizar-se talvez como brilhos do mais luzidio mármore, ou talvez como os mármores de nosso mais refulgente brilho.