domingo, 17 de julho de 2022

O que é a Lógica (em perguntas e respostas)

                                                                                                            Carlos Nougué

Nota prévia 1. Este opúsculo se destina, antes de tudo, aos alunos da Escola Tomista.

Nota prévia 2. Obviamente, não é demonstrativo, senão que visa antes a arrolar conclusões a modo de guia. As demonstrações do que se trata aqui dão-se ao longo do tratado da Lógica na Escola Tomista.

Nota prévia 3. Neste como compêndio, brevíssimo, digo o que é a lógica, ou seja, qual é seu lugar nas disciplinas, qual é seu sujeito e qual é sua definição. Como porém estão aqui implicadas a questão dos universais e dos entes de razão e pois a da abstração, dedico-lhes, de modo mais detido, um maior espaço neste opúsculo.

1) A Lógica é arte ou ciência?

Resposta. A lógica é, excepcionalmente, tanto arte como ciência, mas em ambos os casos só em sentido amplo.

a) Especialmente como arte, é propedêutica a todas as demais artes e ciências, e divide-se em logica docens e logica utens. Como docens, é a arte de pensar. Como utens, constitui aplicadamente a introdução das demais artes e ciências. – É ademais arte liberal, mas de tipo especial: está para as artes liberais assim como a medicina está para as artes servis, ou seja, é uma como “arte de uso” liberal.

b) Mas á antes ciência que arte, e como tal é a filosofia racional, que estuda nosso mesmo modo de inteligir. Não é porém ciência cabal, e fica à espera da Metafísica para que se solva tudo aquilo que ela apenas antecipa provisoriamente.    

2) Qual é o sujeito da Lógica?

Resposta. Quanto a isto, dividem-se os tomistas (e eu mesmo hesitei durante um tempo). Muitos dizem que o sujeito da Lógica são os entes de razão de segunda intenção; alguns como que esquivam o problema; enquanto outros põem que seu sujeito são, sim, os entes de razão mas enquanto constituem relações de razão, o que é o mesmo que dizer que o sujeito da Lógica são tais relações. E esta é a posição correta. – Se porém se considera a Lógica como ciência, seu sujeito serão, mais precisamente, as relações de universalidade lógica; ao passo que, se se considera como arte, seu sujeito serão, mais precisamente, as regras de universalidade lógica.

3) Mas que são entes de razão?

Resposta. Em princípio, poderia dizer-se que são todos os entes que a razão produz, suas obras, seus verbos. Mas a insistência nisto antes confunde que esclarece. É que, se se trata da abstractio totius (a abstração do todo) – que é a abstração própria das ciências naturais e a que funda a divisão conducente às definições em concreto (vide a árvore de Porfírio) –, têm-se os universais metafísicos, ou seja, os universais de primeira intenção, que têm fundamento próximo no real: substância, não vivente, vivente, vegetal, animal, bruto, homem, urso, etc. E obviamente entre estes universais – que, como tais, não podem dar-se senão na mente – também se dão relações. Não se devem todavia chamar-se a tais universais “entes de razão” e a tais relações “relações de razão”. Devem antes dizer-se entes da razão e relações da razão, reservando os nomes entes de razão e relações de razão aos universais de segunda intenção: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente, e suas relações. Os universais de segunda intenção, que têm fundamento remoto no real, são os elementos da Lógica (enquanto a matéria desta são as três operações do intelecto: simples apreensão, juízo e raciocínio).       

4) Mas tais entes de razão são os únicos elementos da Lógica?

Resposta. Não. Também o é, por exemplo, o silogismo.

5) Tais entes, no entanto, são os únicos ditos de razão?

Resposta. Não. Também se dizem certos entes de razão os entes matemáticos e as quimeras ou entes fabulosos.

a) Os chamados entes matemáticos são certos universais resultantes não de abstractio totius, mas de abstractio formae (abstração da forma). Na abstractio totius, abstrai-se o todo de suas partes: assim, por exemplo, homem abstrai-se de pés e mãos (mas não de corpo composto de elementos diversos); na abstractio formae, abstrai-se a forma da matéria: assim, por exemplo, círculo abstrai-se de bronze e de suas qualidades sensíveis (mas não de matéria inteligível, noção de alta complexidade). Pois bem, quando se trata de quantidades abstraídas de qualidades sensíveis, como é o caso de círculo ou de 7, têm-se os entes de razão matemáticos.

Observação: os entes de razão matemáticos poderiam assimilar-se ou reduzir-se aos universais de primeira intenção, mas com a seguinte diferença: estão para estes assim como os acidentes estão para a substância, razão por que, ao contrário do que sucede com os universais de primeira intenção, aos entes de razão matemáticos não corresponde definição ou conceito em concreto, tão só em abstrato.

b) Os entes fabulosos (centauro, unicórnio, montanha de ouro, etc.) são os que simpliciter poderiam dizer-se de razão: não têm nenhum fundamento no real, nem próximo nem remoto.

6) Posto tudo isso, pode-se dar agora a definição de Lógica?

Resposta. Sim.

a) Se se trata da Lógica enquanto arte (em sentido amplo, recorde-se), podem dar-se duas definições. A primeira, de Santo Tomás, pela matéria e pelo fim, é: “a arte diretiva do próprio ato da razão, para que o homem proceda no próprio ato da razão ordenadamente, facilmente e sem erro”. A segunda, do Padre Álvaro Calderón, também pelo sujeito (e pois mais completa), é: “a arte diretiva do ato mesmo da razão segundo as regras da universalidade, para que o homem alcance a ciência ordenadamente, facilmente e sem erro”.

b) Se contudo se trata da Lógica enquanto ciência (igualmente em sentido amplo, recorde-se), então sua definição deve ser: “a ciência das relações da universalidade”.

7) Parece, no entanto, que essa definição não abrange o tratado das Categorias ou Predicamentos, o qual no entanto, como se diz na Escola Tomista, é parte integral da Lógica.

Resposta. Com efeito, para abrangê-lo, dever-se-ia definir a Lógica como “a ciência do ato da razão”. Sucede porém que o tratado das Categorias ou Predicamentos não é cabal ou autossuficiente: apenas incoa um dos tratados da Metafísica.

8) A propósito, a Lógica resolve a questão dos universais?

Resposta. Não, apenas incoa sua solução. Com efeito, no tratado dos Predicáveis (a primeira parte integral da Lógica) aprendemos que o universal enquanto tal só existe na mente, enquanto na realidade extramental só existe singularizadamente: por exemplo, em cada indivíduo ursino. Mas é evidente que esta solução não é cabal. O físico já verá que, embora o produto palpável de um urso e de uma ursa seja um novo indivíduo, tal procriação não se dá senão sob certa razão de universalidade: a essência ursina, a ursidade. Será no entanto preciso esperar a Metafísica para saber que o que procriam o urso e a ursa é uma participação ou imitação da ideia divina de urso, e mais: que mesmo cada indivíduo ursino corresponde a uma precisa ideia divina. Mas por isso pôde dizer Platão que a procriação das espécies é uma imitação da eternidade.   

9) Uma última pergunta: como devem ter-se os alunos da Escola Tomista (e, afinal, quaisquer alunos de tomismo) com respeito à Lógica?

Resposta. Antes de tudo, devem entendê-la como o que é, ou seja, como propedêutica, e não como um fim em si. Aquele que se torna exclusivamente um lógico, comprazendo-se nas regras lógicas de universalidade, está na antessala da ideologia. Depois, não devem deter-se indefinidamente em seus “pontos cegos”, ou seja, nos pontos seus que ao cabo o aluno não compreendem perfeitamente. Ao contrário, após certo tempo de detença devem prosseguir, ainda que não tenham de todo claro tal ponto cego. E isto deve ser assim por dupla razão. Primeira: tanto a Física como a Psicologia e, sobretudo, a Metafísica acabarão por dar-lhes luzes suficientes para entender retroativamente aqueles pontos cegos. Segunda: a progressão dos estudos – da Física à Metafísica, inclusive – acabará por dar aos alunos uma maior agilidade e penetração mental, o que também retroativamente os ajudará a vencer aqueles pontos cegos na mesma disciplina propedêutica a todas as demais disciplinas. 

Observação: naturalmente, quando se fala aqui de Lógica, fala-se da lógica aristotélico-tomista. A lógica nominalista e especialmente as diversas lógicas modernas são todas, em essência, de fulcro kantiano: são solipsistas, giram em torno de seu próprio umbigo, são uns como uróboros; ao passo que a lógica aristotélico-tomista tem por fim propiciar o conhecimento certo, perfeito e atual do necessário por suas causas. Tem por fim a ciência.