sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Perenialismo contra modernismo: o perigo de uma falsa restauração

                                                                                                                             Carlos Bezerra

O pontificado de Francisco expôs, definitivamente, uma espécie de guerra civil no interior da própria Igreja, mas com repercussões políticas em âmbito mundial. Não se trata, porém, de uma batalha do bem contra o mal, como os mais simplistas gostariam que fosse; longe disso, trata-se na realidade de algo mais complexo, repleto de sutilezas, e que, por sua própria força de atração, ainda arrastará muitos para o erro, porque as pessoas se movem por suas paixões desordenadas e se cegam mesmo diante das evidências. Primeiramente definirei as principais características dos lados envolvidos neste conflito, com o que pretenderei ser mais didático na exposição dos fatos.

O Papa Francisco segue de forma objetiva aquilo que mais obviamente se depreende das resoluções e disposições do Concílio Vaticano II ( 1962-1965) e de toda extensão do próprio “magistério” conciliar: ecumenismo, liberdade religiosa e colegialidade. Essa tríade correspondia, desde o princípio, aos anseios de um governo mundial aos moldes socialistas:  igualitário, republicano e democrático. O pontificado do Papa Paulo VI se encarregou do ecumenismo em sentido mais restrito, ou seja, comunhão com os protestantes e os ortodoxos, contribuindo para a farsa de um cristianismo que nunca existiu, porque a Igreja de Cristo é, pura e simplesmente, a Igreja Católica.

No longo pontificado de João Paulo II, o projeto se ampliou, correspondendo então aos anseios da “Nova Era” sonhada por Madame Blavatsky, Annie Besant e Alice Bailey: o interconfessionalismo, ou parlamento das religiões, como se verificou no encontro de Assis em 1986. Eram os anos do Live Aid e da “We Are the World”, a canção que reuniu multidão de artistas da música pop. Parecia mesmo o sonho de Lennon de um mundo sem fronteiras, multicultural, sem céu nem inferno; apenas uma irmandade de homens. João Paulo II era o líder religioso capaz de promover essa paz religiosa. O “comunismo” ideal, o sonho de um mundo perfeito, sem pecado original – eram essas as marcas de tal religião do amor.

Como era óbvio, a religião de Woodstock e dos  Beatles (John e Paul: ironicamente os nomes dos papas do concílio) só poderia corresponder a uma utopia, “comunista” em sua forma idealista , pacifista e contrária a qualquer forma de violência, mas favorável a toda  libertinagem: “É proibido proibir”, “Toda forma de amor vale à pena”, “ Faça sexo, não faça a guerra”.  Logo, portanto, o comunismo realmente existente teria de se transmutar, a partir de fins dos anos 80, para alguma coisa mais panteísta; a ECO 92, a defesa da mãe terra, expressa na carta redigida pelo próprio ex-presidente comunista Mikahil Gorbachev e assinada por seu grande amigo João Paulo II, e a plena adesão da chamada “teologia da libertação” eram sinais claros dessa mudança.

Entre o fim do pontificado de João Paulo II e o de Francisco, houve um interregno importante para a compreensão deste artigo: o movimento tradicionalista. Primeiramente lembremo-nos de Dom Marcel Lefebvre: em verdade, sua defesa não foi a de um movimento chamado tradicionalista, mas da tradição em sentido próprio, ou seja, a tradição apostólica. “Transmiti integralmente”, disse ele, “tudo o que recebi de meus predecessores e pretendo continuar a fazê-lo: a Doutrina ensinada por Nosso Senhor Jesus Cristo.” E assim o fez porque se tornou evidente para ele que o que ocorrido no e após o Concílio era a gênese de uma nova religião.

Mas voltemos ao dito movimento tradicionalista, e veremos a antítese que marca a infernal e dialética hegeliana nesse conflito. Bento XVI, em 2007, ampliou o indulto concedido anteriormente por João Paulo II aos padres que desejassem celebrar a Missa no chamado “rito extraordinário”, mas com a condição de aceitarem plenamente as disposições do Concílio e, sobretudo, o reconhecimento do Missal de Paulo VI como o do rito ordinário da Igreja. Obviamente, para os mais atentos, a questão já não era essencial (doutrinal), mas acidental (prática): um apego à beleza da liturgia tridentina em oposição aos excessos do Missal de Paulo VI. Bento XVI compreendeu bem que o debate deveria ficar restrito apenas à Missa. O tradicionalismo não lhe era um problema, e já veremos por quê.

Agora tratemos do outro lado envolvido neste conflito: a “Tradição”. Há uma tradição com T maiúsculo, que não é a tradição apostólica defendida por Monsenhor Lefebvre, mas a chamada “Tradição perene”, cujos principais expoentes são René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda Coomaraswamy, Julius Evola e outros mais recentes, de que falaremos depois.

Em síntese, a Tradição perene defende que Deus revelou uma religião primordial no início da humanidade, cuja essência porém com o tempo se esoterizou, ou seja, ficou restrita a um grupo de homens que conseguiam unir-se plenamente ao divino, enquanto para a maioria da humanidade a religião seria apenas algo externo (exotérico), com ritos e práticas litúrgicas tradicionais e adequadas a cada religião. Portanto, a Tradição primordial é o fundamento de todas as religiões em sua busca de união com a divindade, não devendo jamais se esvaziar daquilo que tem de mais significativo em suas práticas ritualísticas.

Naturalmente, o Tradicionalismo perene tende a opor-se a toda e qualquer forma de modernismo, globalismo, ecumenismo, multiculturalismo, comunismo, nova era, socialismo, porque busca exatamente o contrário disso: o “nacionalismo” e a tradição de todas as religiões, pois que sua união só pode dar-se de forma transcendente, o que implica a desigualdade entre os homens. E, com efeito, somente os pneumáticos ou espirituais podem unir-se ao divino. Portanto, o inimigo dos perenialistas é tudo aquilo que eles próprios denominam Nova Ordem Mundial, Deep State, Deep Church e, mais recentemente, Great Reset. Aí está o projeto de Steve Bannon, perenialista seguidor de René Guénon e Julius Evola, articulador político da campanha de Donald Trump em 2016 e da atual campanha de Jair Bolsonaro por sua reeleição. Mas Bannon tem seus olhos também voltados para a Europa, para aquilo que ele chama Cruzada pela Civilização judaico-cristã Ocidental, e para tal empreendimento se faz necessária uma forte oposição ao Papa Francisco, seu inimigo número um. Para isso é que Bannon arrendou o antigo mosteiro de Trisult, a poucos quilômetros de Roma, contando com o apoio do Instituto Dignatis Humanae, do qual fazem parte muitos cardeais e figuras proeminentes, como Matthew Festing, ex-grão mestre da Ordem de Malta. No dizer de Bannon, é fundamental  formar uma escola de gladiadores para assumir a direção da Igreja e promover uma restauração da tradição – nos moldes, claro, desejados por René Guénon. Mas isso só poderá ser bem-sucedido com a adesão de todos os movimentos tradicionalistas católicos, em algo que se pode chamar a união dos clãs: a FSSP, todas as comunidades Ecclesia Dei, os sedevacantistas, a Resistência e sobretudo a FSSPX.

Obviamente, muitos católicos, apegados antes aos sentidos, se deixam levar sobretudo pela beleza do rito tridentino, principalmente quando acompanhado de canto gregoriano, em uma bela Igreja ou catedral, ou ao som de um órgão, ou de um coral polifônico. Esses católicos serão muito piedosos, lerão dezenas de livros de espiritualidade e de vidas dos santos, mas pouco se importarão com a conversão do mundo a Nosso Senhor Jesus Cristo. Continuarão a defender as liberdades modernas, a democracia partidarista e o Estado laico, desde  que possam viver seu catolicismo tradicional. Por isso, muitos rejeitarão a Missa de Paulo VI e o Concílio Vaticano II. Desejarão ardentemente alguma restauração antimodernista. Mas outra característica desses católicos já aprisionados pelo Tradicionalismo perenialista é justamente sua agenda oposta à que eles identificam nas esquerdas: o imigracionismo, o movimento LGBT, as políticas pró-aborto e o modelo pedagógico de Paulo Freire. De fato, toda essa agenda é demoníaca, mas o erro é associá-la apenas às esquerdas, o que leva tais católicos a aderir, sem restrições, à nova direita impulsionada pelo mesmo perenialismo internacional, quando em verdade o perigo está em ambos os lados. E observe-se que nenhum dos dois lados se opõe ao Concílio Vaticano II em sua essência: a religião do homem.

É que é o humanismo a fonte de um e de outro mal, ou seja, tanto do modernismo como do perenialismo, os quais de fato se complementam, porque seu resultado será sempre um catolicismo cabalístico em um mundo em ruínas e pronto para o reinado do Anticristo final.