domingo, 3 de janeiro de 2021

PROGRAMA DE ESTUDOS SOBRE O REINADO SOCIAL DE CRISTO (II): OS DOCUMENTOS DO MAGISTÉRIO DA IGREJA, COM ALGUNS COMENTÁRIOS

                                                                                                                           Carlos Nougué

1) Decidi indicar primeiro, nesta postagem, os documentos do magistério da Igreja; e depois, numa próxima, os livros. Assim a coisa fica mais leve.

2) Os documentos papais de algum modo representativos da posição verdadeiramente católica acerca das relações entre Igreja e cidade, ou seja, entre poder espiritual e poder temporal – posição de todo contrária à dos humanistas integrais e vaticano-segundos –, falam por si. Basta-me, pois, dar aqui uma relação dos que me parecem os mais importantes (encontráveis em sua maioria na Internet, sobretudo no site do Vaticano, ou no Denzinger; mas cuidado com a última edição brasileira deste; na Internet, encontram-se boas e antigas edições em espanhol, em francês, etc.). Ei-la:

• Epístola Duo sunt (São Gelásio I);

• Documento de excomunhão e de deposição de Henrique IV (São Gregório VII);

• Encíclica Sicut universitatis (Inocêncio III);

• Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII), documento de inequívoco caráter extraordinário infalível;

• Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII);

• Encíclica Etsi multa luctuosa (Pio IX);

• Encíclica Quanta cura (Pio IX);

• o Syllabus (Pio IX);

• Encíclica Quod Apostolici muneris (Leão XIII);

• Encíclica Diuturnum illud (Leão XIII);

• Encíclica Immortale Dei (Leão XIII);

• Encíclica Libertas praestantissimum (Leão XIII);

• Encíclica Sapientiae christianae (Leão XIII);

• Encíclica Annum sacrum (Leão XIII);

• Encíclica Rerum novarum (Leão XIII);

• Encíclica Vehementer Nos (S. Pio X);

• Encíclica Communium rerum (S. Pio X);

• Encíclica Jucunda sane (S. Pio X);

• Encíclica Pascendi (S. Pio X);

• Motu proprio Sacrorum antistitum (S. Pio X);

• Encíclica Editae saepe Dei (S. Pio X);

• Encíclica E supremi apostolatus (S. Pio X);

• Encíclica Il fermo proposito (S. Pio X);

• Carta sobre a ação social, janeiro de 1907 (S. Pio X);

• Encíclica Ad diem illum (S. Pio X);

• Alocução Gravissimum (S. Pio X);

• Encíclica Notre charge apostolique (S. Pio X);

• Encíclica Ubi arcano (Pio XI);

• Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta magna da Cristandade;

• Encíclica Divini illius magistri (Pio XI);

• Encíclica Quadragesimo anno (Pio XI);

• Encíclica Firmissimam constantiam (Pio XI);

• Exortação Apostólica Menti Nostrae (Pio XII).

3) Comentários.

a) Como a relação entre cidade e Igreja está no centro da doutrina do Reinado Social de Cristo, os documentos mais importantes entre os relacionados acima são, justamente, aqueles que a tratam expressamente: a Epístola Duo sunt (São Gelásio I); a Encíclica Sicut universitatis (Inocêncio III); a Bula Unam Sanctam (Bonifácio VIII); a Constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII); a Encíclica Immortale Dei (Leão XIII); e a Encíclica Quas primas (Pio XI), a carta magna da Cristandade.

a1) Após a ofensa a Bonifácio VIII, voltaria a falar expressamente desta relação, três pontificados depois, o Papa João XXII (o que canonizou Santo Tomás). Mas o próximo a fazê-lo foi Leão XIII (na Immortale Dei), nada menos que seis séculos depois. Era a Igreja acuada pela rebelião e ofensiva truculenta dos estados.

a2) Para mostrar que o poder temporal deve ordenar-se essencialmente à Igreja, alguns papas se valeram de comparações simples. Por exemplo, Inocêncio III recorreu, na Sicut universitatis, a uma analogia de proporção imprópria (isto não é pejorativo) ou metafórica: o poder espiritual está para o poder temporal assim como o sol está para a lua, cuja luz depende da luz daquele. Bonifácio VIII, na Unam Sanctam, falará dos dois poderes como de dois gládios (ou espadas), o gládio espiritual manejado pela Igreja, e o temporal manejado pelos reis mas sob a direção (espiritual) da Igreja. Esta Bula foi atacada duramente por Dante e pelos reis rebeldes (mais especialmente por Felipe, o Belo); mas estes tiveram o estímulo de que o principal intérprete da Bula, Egídio Romano, não fosse um Tomás de Aquino e inadvertidamente parecesse exagerar o papel da Igreja. Santo Tomás já havia resolvido grande parte das questões atinentes às relações entre os dois poderes, a partir de uma analogia de proporcionalidade própria: o poder espiritual está para o poder temporal assim como a alma está para o corpo no composto humano. Leão XIII a retomará na magnífica Immortale Dei. Chegava-se assim, no magistério da Igreja, à formulação mais cabal do núcleo da questão. Restava ao mesmo magistério, todavia, formular a carta magna da cristandade, o que caberia a Pio XI na Quas primas, onde se põe que Cristo tem poder executivo, legislativo e judiciário não só sobre as nações cristãs, mas sobre todas as nações. Sucede porém que a carta magna da cristandade chegou quando esta já deixara de existir; já não restavam no mundo senão minguados bastiões cristãos, que o CVII e seus papas terminariam, eles mesmos, por fazer desaparecer. – Mas não se há de esquecer o lema do pontificado de S. Pio X – Instaurar ou restaurar tudo em Cristo –, infalível ao modo ordinário e influído pelo paladino do Reinado Social de Cristo: o Cardeal Pie de Poitiers, falecido em 1880.

b) A DSI (Doutrina Social da Igreja) é exatamente o mesmo que a doutrina do Reinado Social de Cristo, ainda que com matizes: trata das relações entre Igreja e nações quanto aos vários aspectos destas (política, leis, economia, etc.). Naturalmente, os modernistas – radicais ou “conservadores” –, como querem esquecer a parte política e legal da doutrina, reduzem a DSI aos aspectos econômicos e sociais. É uma falácia, como o mostro em “Notícia Histórica da Doutrina Social da Igreja” (in Estudos Tomistas – Opúsculos II). Pois bem, todos os demais documentos presentes na relação que apresentei acima tratam um ou vários destes aspectos, conquanto não tratem expressamente o referido núcleo da questão doutrinal.

c) Para terminar este post, deixo-lhes esta impressionante passagem da Exortação Apostólica de Pio XII Menti Nostrae, na qual o Papa condena tanto o comunismo como o capitalismo:

«Nenhuma incerteza contra o comunismo

114. Alguns existem que, em face da iniquidade do comunismo, que visa a destruir a fé naqueles mesmos a quem promete o bem-estar material, se mostram atemorizados e incertos; mas esta Sé Apostólica, em documentos recentes, indicou claramente qual o caminho que seguir e de que ninguém se poderá afastar, se não quiser faltar ao próprio dever.

Denunciar as consequências ruinosas do capitalismo

115. Outros, porém, se mostram tímidos e incertos quanto ao sistema econômico conhecido pelo nome de capitalismo, cujas graves consequências a Igreja não tem cessado de denunciar. A Igreja, de fato, não somente apontou os abusos do capital e do próprio direito de propriedade que o mesmo sistema promove e defende, mas tem igualmente ensinado que o capital e a propriedade devem ser instrumentos da produção em proveito de toda a sociedade e meios de manutenção e de defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Os erros dos dois sistemas econômicos e as ruinosas consequências que deles derivam devem convencer a todos, e especialmente aos sacerdotes, a manter-se fiéis à doutrina social da Igreja e a difundir seu conhecimento e sua aplicação prática. Esta doutrina é, realmente, a única que pode remediar os males denunciados e tão dolorosamente difundidos: ela une e aperfeiçoa as exigências da justiça e os deveres da caridade, promove uma ordem social que não oprima os cidadãos e não os isole num egoísmo seco, mas a todos una na harmonia das relações e nos vínculos da solidariedade fraternal.

Ir ao encontro dos pobres e dos ricos

116. A exemplo do divino Mestre, vá o sacerdote ao encontro dos pobres, dos trabalhadores, daqueles todos que se encontram em angústia e miséria, entre os quais estão também muitos da classe média e não raros confrades de sacerdócio. Mas tampouco se descuide daqueles que, conquanto ricos de bens de fortuna, são no entanto os mais pobres de alma e têm necessidade de ser chamados à renovação espiritual, para dizerem como Zaqueu: “Dou a metade de meus bens aos pobres, e, se tiver defraudado alguém, restituirei o quádruplo” (Lc 19,8). No campo das discórdias sociais, portanto, não perca jamais de vista o sacerdote o fim de sua missão. Com zelo, sem temor, deve apresentar os princípios católicos acerca da propriedade, das riquezas, da justiça social e da caridade cristã entre as diversas classes, e dar a todos exemplo manifesto de sua aplicação.

Preparar os leigos para os deveres sociais

117. Normalmente a realização desses princípios sociais cristãos na vida pública compete aos leigos; mas, onde não os haja capazes, ponha o sacerdote todo o empenho em formá-los convenientemente.»

(Continua.)