Carlos
Nougué
1) Ao falarmos de homem e não deste ou daquele homem,
ao falarmos de cão e não deste ou daquele cão, ao
falarmos de gato e não deste ou daquele gato, falamos
da essência (naturalmente universal), respectivamente, de todos os indivíduos
humanos, de todos os indivíduos caninos, de todos os indivíduos “gatunos”. O
indivíduo enquanto indivíduo não tem essência; enquanto é tal,
enquanto é indivíduo, tem apenas uma quididade: diferença numérica.
2) A definição de homem é: substância, vivente, animal/sensível,
racional, embora seja suficiente e conveniente defini-lo pelo gênero próximo
(animal) e pela diferença específica (racional): animal racional. – A definição
é sempre a definição da essência.
3) Mas ser masculino ou feminino não é parte da definição da essência,
senão que se vincula a um acidente. Deve ver-se, pois, que tipo de acidente.
a) Antes de tudo, é um acidente material,
ou seja, está entre os acidentes que derivam da matéria.
b) Os acidentes materiais, todavia, também se dividem (e seguirei de
perto aqui o opúsculo – um dos primeiros escritos de S. Tomás – De ente
et essentia, c. VI, § 4).
• Alguns acidentes seguem a matéria segundo a ordem que ela tem a uma
forma especial, tal como se dá com o sexo masculino e o sexo feminino nos
animais. Sem dúvida a diversidade entre os dois sexos assenta na matéria, mas
segundo a ordem referida, razão por que, quando desaparece a forma animal, tais
acidentes (sexo masculino e sexo feminino) não se mantêm (a não ser de maneira
equívoca, assim como só equivocamente uma mão decepada pode dizer-se mão).
• Outros acidentes, porém, seguem a matéria segundo sua ordem a uma
forma genérica. Por isso, ainda que tenha desaparecido a forma especial, estes
acidentes ainda se mantêm na matéria. É o que se dá, por exemplo, com a cor da
pele, que, por provir da combinação de elementos materiais e não da
constituição da alma, se mantém (por um tempo, é óbvio) depois da morte.
4) Naturalmente, os dois sexos não são passíveis de mudança. Não
equivalem a acidentes como ser alto ou baixo, estar pálido ou bronzeado, etc.
Há porém outro tipo de acidentes – os chamados acidentes próprios, ou
propriedades – que não podem não dar-se nos indivíduos de determinada
espécie, ou, se não se dão em determinado indivíduo, sentimos que falta algo
para que se dê nele a perfeição específica. Pois bem, ter sexo (ser sexuado) é
acidente próprio dos viventes (e tem por fim a procriação da espécie), mas o é de tal modo em boa parte das espécies animais, que aí não pode dar-se
senão dividindo-se em indivíduos masculinos e femininos. E esta divisão em masculino e feminino é tal, pela
própria natureza destas espécies, incluída a humana, que não são alteráveis ou intercambiáveis. Torna-se acidente permanente. –
Mas atenção: nem sempre é assim entre os animais, e há peixes que mudam de
sexo, como o peixe-palhaço; entre esta espécie, o macho só o é por tempo
limitado. É parte de sua enteléquia crescer e tornar-se fêmea. E, ao que
parece, cerca de 10% das espécies de peixes mudam de sexo uma vez na vida,
passando de macho a fêmea ou vice-versa.
5) Mas é assim entre os peixes, e não é assim nos animais superiores,
nem no homem, porque assim está inscrito em seus respectivos genes,
responderá a Biologia, e porque assim determinam suas respectivas formas
substanciais, dirá a Física Geral – respostas que, longe de contradizer-se uma
à outra, se completam, mas com uma diferença: a primeira é subalternada à
segunda.
Observação. Resta dizer uma
palavra sobre o hermafroditismo, que sem dúvida alguma se deve a um defeito da
parte da matéria: em termos médico-biológicos, deve-se a um problema
teratológico, a uma má-formação embrionária. Há três tipos de hermafroditismo:
o hermafroditismo verdadeiro, o pseudo-hermafroditismo masculino e o
pseudo-hermafroditismo feminino; e naturalmente é o primeiro o mais assombroso.
Como quer que seja, todavia, ao considerarmos o hermafroditismo, incluímo-lo
entre aqueles defeitos que fazem pensar que falta algo – no
caso, a nítida separação entre os sexos – para a perfeição da natureza. – Não
se conclua daí, no entanto, que nos hermafroditas esteja ausente a natureza da
espécie ou a alma humana; apenas padecem eles precisamente, repita-se, de uma falta
ou defeito (< lat. defectus, us, “falta,
diminuição” < particípio passado defectum, do verbo deficĕre, “faltar”).