quinta-feira, 24 de março de 2022

A Questão dos Jesuítas

                                                                                                Carlos Nougué

1) Um defeito de muitos católicos tradicionais atuais – e julgo-me tradicional – é considerar que o Concílio Vaticano II brotou como um cogumelo depois de uma chuva. Dividem a história entre um antes do CVII perfeito e um depois do CVII catastrófico. Em parte têm razão; mas não quanto ao antes do CVII, porque é nesse antes que se devem encontrar as causas remotas e as mais ou menos próximas da hecatombe conciliar.

2) Alguns, porém, embora não tenham uma visão tão idílica do pré-CVII, têm-na com respeito a um caso particular, por exemplo o dos jesuítas, que teriam sido magníficos até o CVII e ruinosos depois dele. Mas tal idealização não procede.

Observação: aliás, não procede nenhuma idealização quanto à história da Igreja. Esquecemos que o joio e o trigo sempre estiveram e sempre estarão misturados até a Parusia? Esquecemos que o mistério da iniquidade e multidão de anticristos já estavam em ação nos tempos apostólicos? Quanto mais não estarão, no entanto, no tempo da apostasia das nações, começado no já remoto século XIV!

a) Surgem os jesuítas numa situação em que, falando propriamente, já não existia cristandade, que começara a findar duzentos anos antes, no já referido século XIV. À parte o breve interregno dos Reis Católicos, de Carlos V e de Felipe II, já a Igreja não contava entre suas fileiras com nações propriamente cristãs. O humanismo e o Renascimento fazem renascer o paganismo; Lutero tira à Igreja meia Europa; e Francisco I, rei de França, nega-se a enviar ao papa tropas para enfrentar os turcos porque tem relações comerciais com eles. 

b) O Concílio de Trento foi uma magnífica reação da Igreja, mas nem sequer nele se voltou a falar da doutrina dos dois gládios: ainda estava fresca na memória católica a afronta de Felipe, o Belo, a Bonifácio VIII, e o papado, acuado diante da crescente independência e arrogância dos reis e da burguesia, era já uma cidadela grandemente sitiada. Mais: no âmbito do próprio tomismo, pelas mãos de Francisco de Vitoria – um nominalista que se cria tomista –, começava a corromper-se a doutrina magisterial e tomista da subordinação essencial do poder temporal ao espiritual (a doutrina dos dois gládios ou da realeza social de Cristo). 

c) Os jesuítas, todavia, fazem sua entrada nesse quadro dramático com a incumbência arduíssima de restaurar a cristandade – o que porém já era impossível (ainda que fosse então impossível sabê-lo impossível). Conseguem recuperar metade da metade da Europa perdida para o protestantismo, mas já se tratava de uma metade só semicatólica. Quanto ao fundador da Companhia de Jesus, Santo Inácio, era um tomista de estrita observância, e fez gravar na ordem que fundara o cunho tomista; ele, diga-se, e os demais grandes santos fundadores. É verdade que Santo Inácio já dizia pouco mais ou menos a seus padres: A doutrina tomista da predestinação é a correta (e, digo eu, perfeitamente acorde com a definição do Concílio de Quiersy: Os que se salvam, salvam-se por dom de Deus; os que se perdem, perdem-se por merecimento, ou seja, por sua própria culpa), mas, continuava o nosso Santo, não insistam  nela publicamente porque pode confundir-se com o luteranismo. A consequência, contrária à intenção do Fundador, não tardou: morto Santo Inácio, pelas mãos de Luis de Molina a Companhia de Jesus se faz antitomista e, pelas próprias premissas do molinismo, voluntarista. Aliás, ainda hoje vemos entre os defensores acríticos da Companhia de Jesus afirmações como esta: Se não tivessem impedido a livre ação dos jesuítas na China, esta se teria tornado um Império carolíngio do Oriente. E a graça, nada?

d) É bem verdade que a disputa entre jesuítas e dominicanos em torno do tratado da predestinação teve muito de sectária: ordem contra ordem, não doutrina contra doutrina, pouco mais ou menos como a Ordem Franciscana se encarniçara contra Santo Tomás de Aquino. E certamente todo o sectarismo do enfrentamento de ordem contra ordem influiu na crítica feita ao trabalho dos jesuítas no Império chinês. Mas sem dúvida os jesuítas exageraram: a chamada Questão do Rito não foi algo inventado por maliciosas mentes dominicanas e franciscanas. De fato, os sucessores de Santo Inácio faziam já – muitos séculos antes do CVII – certa inculturação no rito da missa para converter os chineses, assim como companheiros seus se vestiam de brâmanes na Índia para converter os hindus... Por isso mesmo, a condenação da inculturação jesuítica por dois papas (Clemente XI, em 1715, e Bento XIV, em 1742) foi mantida, em 1939, por Pio XII, que da decisão de seus predecessores só revogou um ponto preciso: autorizou os católicos chineses a participar dos cultos cívicos confucianos, desde que não se envolvessem em nenhuma idolatria.

e) Ademais, já predominava na teologia moral uma inflexão de consequências nefastas: a substituição da caridade pelo tribunal da consciência. Não foi algo próprio dos jesuítas. A enorme Teologia Moral de Santo Afonso de Ligório peca exatamente por isso (ainda que, claro, santo que era, o nosso teólogo não tenha dado nenhuma norma ou preceito moral falso). Some-se porém uma ética afinal caudatária em algum grau do racionalismo (não será Kant quem instituirá o imperativo categórico da consciência?) ao voluntarismo molinista, e ter-se-á o fundo teológico dos erros jesuíticos em suas missões. Entenda-se bem: é imenso o mérito dos jesuítas em todo o mundo, incluindo a América, quanto à conversão de grandíssima quantidade de almas (para não falar de seus próprios mártires). Foram vítimas, ademais, de implacável perseguição maçônica, jansenista e protestante. Nada disso, no entanto, suprime o problema: pelo sistema circulatório do catolicismo já corria voluntarismo e, digamos, “consciencientismo”, com o que a graça ficava como que relegada ao papel de coadjuvante.

f) Os problemas não param por aí. Depois de São Roberto Belarmino, jesuíta, ter reafirmado de algum modo a correta doutrina da ordenação essencial do poder temporal ao espiritual, no seio da própria Companhia de Jesus surge um negador de peso dessa mesma doutrina: Francisco Suárez, que dando continuidade ao posto pelo dominicano Francisco de Vitoria e aprofundando-o introduzirá na política teológica católica uma espécie de “vontade geral” avant la lettre, ou seja, antes mesmo que o fizesse Rousseau. A vontade do povo é a vontade de Deus. Pois bem, voluntarismo + “consciencientismo” + democratismo liberal em germe = rendição (involuntária) ao mundo moderno. Não por nada a Revolução Francesa vai fazer desmoronar facilmente o que restava das velhas nações cristãs por toda a Europa e depois pelas Américas. Será preciso esperar Leão XIII, São Pio X, Pio XI para que o papado, agora já completamente sitiado, voltasse a falar da doutrina dos dois gládios, ou seja, da ordenação essencial do poder temporal ao espiritual, ou seja, da realeza de Cristo, e tentasse fazer voltar o tomismo. Mas este já é outro assunto, igualmente espinhoso.

g) Quanto à questão da “restrição mental”, os jesuítas não foram os únicos a propagá-la, mas também o fizeram, sim. A distinção sutil entre “restrição mental lata” e “restrição mental estrita” não resolve o problema. Aliás, embora o magistério da Igreja só tenha condenado esta, não autorizou aquela; tão só não a desautorizou. Mas será tão difícil entender que onde o tribunal da consciência impera sobre a caridade tem lugar a “restrição mental lata”, que afinal não é senão uma maneira de mentir julgando que não se está mentindo? Um exemplo de “restrição mental lata”: “Não tenho este livro”, diz alguém ao que lho pede emprestado, fazendo a “restrição mental”: “para emprestar-to a ti”. Os defensores deste tipo de “restrição mental” arguem que é fácil ao outro deduzir o que o “restringidor” não disse. Sem dúvida, se ele tiver algum dom paranormal... Aliás, revisei há uns dois anos um longo tratado de ética de um importante grupo da Igreja segundo o qual seria preciso rever a dura doutrina agostiniano-tomista sobre a mentira: para os dois maiores doutores da Igreja, a mentira é sempre pecado, a ponto de que nem sequer na guerra tem lugar. Por que o dizia o referido tratado? Porque hoje há a espionagem, e o espião tem de mentir constantemente para bem cumprir seu ofício!!! Porventura não terá passado pela cabeça do tratadista que o próprio ofício da espionagem é pecaminoso e ilícito?

h) Se agora se soma todo o quadro traçado acima ao fato de que mesmo grandes papas como Leão XIII, Pio XI e Pio XII – a par de uma doutrina sempre impecável por assistência do Espírito Santo – levassem a efeito na prática uma política de ralliement ou de relações cordiais com regimes liberais, e ao fato de que a cúria conservadora (por exemplo, o Cardeal Ottaviani) e os tomistas em geral já fossem muros com brechas incapazes de conter a torrente impetuosa do modernismo quanto às relações entre o poder temporal e o espiritual, ter-se-á o terreno perfeitamente adubado para a eclosão conciliar. Não haverá reversão? Isso não depende de nós, mas de Deus e seus desígnios na história. Podemos dizer tão somente que, embora o tomismo não seja capaz de salvar o mundo, sem o tomismo o mundo não se salvará.

Observação final. A tal ponto estava fendido o muro do conservadorismo antiliberal no seio da Igreja, que um Cardeal Billot, jesuíta que abraçara sinceramente o tomismo propugnado pelos papas e se transformara num paladino da reação ao modernismo e ao liberalismo, não entendeu todavia perfeitamente a doutrina magisterial e tomista dos dois gládios ou realeza social de Cristo. Era tão frágil seu muro antiliberal, que se opôs à condenação por Pio XI da Action Française de Charles Maurras não por inoportuna – e teria tido então razão –, mas por ver naquele movimento de caráter nada católico um verdadeiro aliado da Igreja. Onde ficava para Billot a Quas primas de Pio XI? Nos dias da festa litúrgica de Cristo Rei? Mas explica-se: como sempre o disse ele mesmo, o nosso grande Cardeal era discípulo de seu irmão de religião Francisco Suárez quanto à política teológica.