sábado, 17 de setembro de 2016

Ariano Suassuna, sua arte e a política



Carlos Nougué

Ariano Suassuna (João Pessoa, 1927-Recife, 2014) foi um dos maiores artistas brasileiros, ao lado de um Jorge de Lima, por exemplo, ou de um Alphonsus de Guimaraens, ou do primeiro Guimarães Rosa. E, como a destes, sua obra é marcada com o selo do catolicismo, ao qual Suassuna se converteu (era de origem calvinista e tivera um período de agnosticismo).[1]
Por ora, porém, é preciso consignar que infelizmente Ariano Suassuna logo se fez socialista ou algo assim, conquanto não marxista (repudiava tanto os Estados Unidos como a União Soviética). E, se não ter sido marxista não o livra da mancha de ter sido socialista, podem porém encontrar-se algumas razões para que homem e artista tão profundo aderisse a uma doutrina iníqua.   
Entre tais possíveis razões, está primeiramente o assassinato de seu pai, João Suassuna, em 1930, quando Ariano era ainda criança. O nosso artista atribuía o crime à família de João Pessoa, governador da Paraíba, candidato a vice-presidente na chapa de Getúlio Vargas, e ele próprio também assassinado. Ora, seu pai identificava-se com a luta contra as políticas que assolavam (verdadeiramente!) o Nordeste. Pode objetar-se que tal razão é “psicologista”. Mas deixemos Ariano mesmo falar sobre a morte de seu pai em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras:

“Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o pai deixou”.

Ou neste tocante soneto elegíaco:

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego, sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

Quem não conseguir ver aqui a alma de um poeta exposta em suas fibras mais sensíveis não será capaz de entender jamais, em toda a sua profundidade, a arte.
Mas quase certamente também outra razão terá concorrido para sua adesão – equivocada, repita-se – a certo socialismo de contorno algo indefinido: sua repulsa à república golpista que derrubou iniquamente o império e que sempre se fundou num sistema partidário-oligárquico. E essa repulsa não era somente de Suassuna: é minha também, e deveria ser de muitos mais. E era de Antônio Conselheiro e de seu arraial de Canudos. Com efeito, aquele ex-cangaceiro convertido ao catolicismo reuniu outros ex-cangaceiros em Canudos para resistir à república golpista e defender a volta da monarquia e do estado confessional católico. Praticamente, porém, não houve membro da hierarquia da Igreja brasileira que os orientasse, senão que essa mesma hierarquia não só se calou diante do massacre de Canudos, mas convenceu os emissários do Papa Pio X de que era o exército brasileiro, maçônico e positivista, o que tinha razão.
Mas não tinha: por rudes e toscos que fossem os de Canudo, a verdade estava com eles. É o que lembra o nosso Ariano Suassuna neste belo artigo escrito em 1999 (para a Folha de São Paulo) e com o qual encerro este primeiro escrito.      

«Canudos e o Exército

O que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo como nas grandes cidades brasileiras, foi o choque do Brasil “oficial e mais claro” contra o Brasil “real e mais escuro”. Ao Brasil oficial e mais claro que não é somente “caricato e burlesco”, como afirmou um Machado de Assis, momentaneamente perturbado por sua justa indignação, pertenciam algumas das melhores figuras do patriciado do tempo de Euclydes da Cunha: civis e políticos como Prudente de Moraes, ou militares como o general Machado Bittencourt.
Bem-intencionados mas cegos, honestos mas equivocados, estavam convencidos de que o Brasil real de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário invadir, assolar e destruir. O civil que começou a reparar esse erro doloroso foi Euclydes da Cunha. O militar foi o major Henrique Severiano, grande herói de Canudos, do lado do Exército. Através de sua bela morte, acendeu ele uma chama que, juntamente com a de Euclydes da Cunha, temos todos nós – intelectuais, políticos, padres, soldados – o dever de levar fraternalmente adiante. Conta-se, em Os Sertões, sobre o incêndio dos últimos dias de Canudos: “O comandante do 25º batalhão, major Henrique Severiano, era uma alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços; aconchegou-a do peito criando, com um belo gesto carinhoso, o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz e salvou-a. Mas expusera-se. Baqueou malferido, falecendo poucas horas depois”.
A meu ver, tal seria o militar simbólico, emblema do verdadeiro soldado brasileiro, capaz de apoiar um movimento em favor do povo,[2] também simbolicamente representado aí por essa criança, iluminada entre as chamas do seu martírio.
Euclydes da Cunha, formado, como todos nós, pelo Brasil oficial, falsificado e superposto, saiu de São Paulo como seu fiel adepto positivista, urbano e “modernizante”. E, de repente, ao chegar ao sertão, viu-se encandeado e ofuscado pelo Brasil real de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Sua intuição de escritor de gênio e seu nobre caráter de homem de bem colocaram-no imediatamente ao lado dele, para honra e glória sua. Mas a revelação era recente demais, dura demais, espantosa demais. De modo que, entre outros erros e contradições, só lhe ocorreu, além da corajosa denúncia contra o crime, pregar uma “modernização” que consistiria, finalmente, em conformar o Brasil real pelos moldes da rua do Ouvidor e do Brasil oficial. Isto é, uma modernização falsificadora e falsa, e que, como a que estão tentando fazer agora, é talvez pior do que uma invasão declarada. Esta apenas destrói e assola, enquanto a falsa modernização, no campo como na cidade, descaracteriza, assola, destrói e avilta o povo do Brasil real.»




[1] Numa série de artigos que se publicarão na página A Boa Música, tratarei detidamente sua obra, quase sempre, insista-se, magnífica.
[2] Estas palavras – “capaz de apoiar um movimento em favor do povo” – podem porém encerrar algum erro de fundo socialista.