AETERNI PATRIS
SOBRE A RESTAURAÇÃO DA FILOSOFIA CRISTÃ
CONFORME A DOUTRINA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
CONFORME A DOUTRINA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
Encíclica
A TODOS OS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS DE TODO O MUNDO CATÓLICO
EM AÇÃO E COMUNHÃO COM A SANTA SÉ APOSTÓLICA
Aos Nossos Veneráveis Irmãos, Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos
de todo o mundo Católico, em graça e comunhão com a Santa, Sé Apostólica.
LEÃO XIII PAPA
Veneráveis Irmãos, saúde e Bênção Apostólica.
SUMARIO DA ENCÍCLICA
INTRODUÇAO (ns. 1-5)
1 – Natureza e função do Magistério da Igreja.
2 – O Magistério da Igreja atinge também a Filosofia e as Ciências.
3 – Finalidade da Encíclica: Natureza do estudo filosófico que respeite
a Fé e as exigências das Ciências Humanas.
4 – A causa dos males modernos é a difusão das más idéias.
5 – A inteligência bem formada é a causa de numerosos benefícios.
I PARTE: RELACIONAMENTO ENTRE A RAZAO E A FÉ (ns. 6-17)
1 – Embora tenha o campo limitado, a Filosofia é o mais poderoso
subsídio para a Fé.
2 – Para reconduzir a sociedade à ordem, a tradição patrística sempre
recorreu ao uso da razão bem ordenada.
3 – Subsídios da Filosofia para a Fé: Aplaina os caminhos da Fé -Prova a
existência de Deus – Fornece os critérios de credibilidade – Ordena a ciência
teológica – Aprofunda os conhecimentos da Fé – Defende a Fé.
4 – Subsídios da Fé para a Filosofia: Prevalece a Fé – A Fé não destrói
a Filosofia, mas respeita-lhe os princípios, O método e os argumentos – O mal
da Filosofia sem a Fé: O racionalismo – Os bens provenientes da harmonia entre
Fé e Filosofia.
II PARTE: A HARMONIA ENTRE RAZAO E FÉ VISTA ATRAVÉS DA
HISTÓRIA DA FILOSOFIA (ns. 18-20)
1 – Realizada pelos apologistas.
2 – Realizada pelos Padres da Igreja, Escritores Eclesiásticos e
Doutores, máxime por S. Agostinho.
3 – Realizada pelos Escolásticos, máxime por S. Boaventura e S. Tomás.
III PARTE: S. TOMÁS FOI QUEM COM MAIOR PERFEIÇÃO UNIU RAZÃO E
FÉ (ns. 21-27)
1 – Excelência e perfeição da doutrina de S. Tomás.
2 – Confirmação dessa excelência: Pelo seu valor intrínseco – Pelas
Ordens Religiosas – Pelas Academias e Escolas – Pelos Papas – Pelos Concílios
Ecumênicos – Pelos não católicos.
IV PARTE: EXIGÊNCIA DE RESTAURAÇAO DA FILOSOFIA NOS TEMPOS
ATUAIS (ns. 28-32).
1 – Conseqüências funestas do abandono da Escolástica.
2 – Louváveis iniciativas para a restauração da Filosofia Tomista.
3 – O Papa deseja esta restauração pelos motivos seguintes: Defesa da
Igreja contra os ataques que lhe fazem as más filosofias – Restauração da ordem
social – Promoção das ciências.
CONCLUSÃO (ns. 33-35)
1 – Exortação solene no sentido da restauração da doutrina tomista.
2 – Bênção Apostólica.
INTRODUÇÃO
1 – O Filho Unigênito do Pai Eterno, que apareceu no mundo para trazer
ao gênero humano a salvação e a luz da sabedoria divina, concedeu certamente ao
mundo um grande e admirável benefício, quando, antes de subir ao céu, mandou
aos Apóstolos que fossem e ensinassem todas as nações; e deixou a Igreja
estabelecida por Ele como mestre comum e supremo dos povos (Mat. 28, 19). Pois
que os homens, libertados pela verdade, na verdade se deviam conservar; nem seriam
muitos duradouros os frutos das doutrinas celeste pelos quais o homem alcançara
a salvação, se Cristo Nosso Senhor não tivesse estabelecido um magistério
perpétuo para instruir os entendimentos na fé.
A Igreja, porém, já confiando nas promessas do seu divino autor, já
imitando-lhe a caridade, de tal sorte cumpriu essas ordens, que sempre teve em
vista, sempre desejou ardentemente ensinar as coisas da religião e combater
perpetuamente os erros. A este fim visam os trabalhos esmerados de cada um dos
bispos; a este fim, as leis e decretos dos Concílios, e especialmente a
solicitude cotidiana dos Pontífices Romanos, os quais, como sucessores no
primado de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, têm o direito e o dever de
ensinar e confirmar seus irmãos na fé.
2 – Acontecendo, porém, como diz o Apóstolo, que, pela “filosofia e
pelos discursos sedutores” (Col. 2,8) as almas dos fiéis costumam ser
enganadas, e a sinceridade da fé ser corrompida nos homens, por isso os
supremos pastores da Igreja julgaram sempre ser dever seu promover, quanto
pudessem, a verdadeira ciência, e ao mesmo tempo providenciar com suma
vigilância, para que todas as disciplinas humanas, especialmente a filosofia,
da qual em grande parte depende o bom uso das outras ciências, fossem ensinadas
em toda a parte segundo a norma da fé católica. Isso mesmo, em outras coisas já
vos lembramos de passagem, Veneráveis Irmãos, quando pela primeira vez vos
falamos por Cartas Encíclicas.
3 – Agora, porém, em razão da gravidade do assunto e da condição dos
tempos, somos obrigados a falar-vos de novo a fim de estabelecermos o método
dos estudos filosóficos, que, correspondendo ao bem da fé, seja acomodado à
mesma dignidade das ciências humanas.
4 – Se alguém atender à malícia dos nossos tempos e pensar na razão das
coisas que acontecem pública ou particularmente, concluirá certamente que a
causa fecunda dos males, não só daqueles que nos oprimem, mas também daqueles
que receamos, consiste nas más opiniões à cerca das coisas divinas e humanas,
que, partindo primeiro das escolas dos filósofos, têm invadido todas as ordens
da sociedade, acolhidas pelos aplausos de muitos. Porquanto, sendo próprio da
natureza humana seguir, na prática, como guia a razão, se a inteligência peca
em qualquer coisa, a vontade também cai facilmente. Acontece, então, que a
malícia das opiniões, que têm sede na inteligência, influi nas ações humanas e
as perverte. Pelo contrário, se for reto o pensar dos homens, e baseado em
sólidos e verdadeiros princípios, nesse caso há de produzir muitos benefícios
para felicidade social e individual.
5 – Certamente que não atribuímos à filosofia humana tão grande força e
autoridade, que a julguemos capaz de expulsar e arrancar totalmente todos os
erros: porque, assim como quando se estabeleceu a religião cristã, pela
admirável da fé difundida “não por palavras persuasivas da sabedoria humana,
mas pela demonstração de espírito e virtude” (Cor. 2,4), o mundo foi restituído
à primitiva dignidade; assim agora se deve esperar, principalmente da onipotente
virtude e auxílio de Deus que as almas dos homens, dissipadas as trevas dos
erros, sigam melhor vida.
Não se devem desprezar nem desconsiderar, porém, os auxílios naturais,
que por benefício da sabedoria divina, que tudo dispõe forte e suavemente,
superabundam ao gênero humano: e entre esses auxílios é certo que o principal é
o reto uso da filosofia. Pois que não foi em vão que Deus concedeu à alma
humana a luz da razão. A luz da fé que depois lhe foi acrescida, longe de
extinguir ou diminuir a força da inteligência, antes a aperfeiçoa e,
aumentando-lhe as forças, a habilita para maiores coisas.
Pede, pois, a economia da mesma Providência Divina que, tratando-se de
chamar os povos à fé e à Salvação, se aproveite à cooperação da ciência humana.
Porque esse modo de proceder provado e sábio, fora seguido pelos preclaríssimos
Padres da Igreja, está confirmando pelos monumentos da antiguidade. Eles, em
verdade, atribuíram sempre à razão muita e não pequena importância, a qual
resumiu suscintamente Santo Agostinho, atribuindo a esta ciência “aquilo por
meio do que a fé salubérrima... é produzida, nutrida, defendida e robustecida”
(De Trin. lib. XIV,l).
PRIMEIRA PARTE
RELACIONAMENTO ENTRE RAZAO E FÉ
6 – Em primeiro lugar, a filosofia sendo bem compreendida, pode em certo
modo aplainar e fortificar o caminho para a verdadeira fé, e preparar
convenientemente a inteligência dos seus discípulos para receberem a Revelação,
visto que com razão é chamada pelos antigos umas vezes “instituição prévia para
a religião cristã” (Clem. Alex., Strom. lib. I, 16), outras vezes
“prelúdio e auxilio do cristianismo” (Orig. ad Greg. Thaum.), e
também é chamada “pedagogo para o Evangelho” (Clem. Alex., Strom. I, 5).
Realmente Deus benigníssimo, no que diz respeito às coisas divinas, não
só revelou com luz da fé aquelas verdades que a inteligência humana não pode
atingir, mas também manifestou algumas que não são absolutamente inacessíveis à
razão, para que, com a autoridade de Deus, logo fossem compreendidas por todos
sem receio de errar. Donde resulta que os mesmos sábios pagãos, só com a luz da
razão, conheceram, demonstraram e defenderam com apropriados argumentos certas
verdade, que nos são propostas pela fé ou estão estritamente unidas com a
doutrina da fé. “Pois as coisas d'Ele, que são invisíveis, se vêem depois da
criação do mundo, considerando-as pelas obras que foram feitas, ainda a Sua
virtude sempiterna e a Sua divindade” (Rom. 1,20); e os gentios que não “têm
lei. ..mostram, todavia, a obra da lei escrita em seus corações” (Rom. 2,15). É
muito conveniente que essas verdades, conhecidas mesmo pelos sábios pagãos,
sejam convertidas em proveito e utilidade da doutrina revelada, a fim de se
demonstrar que a sabedoria humana e os próprios testemunhos dos adversários
prestam a homenagem à fé cristã.
7 – É coisa sabida que este modo de proceder não é novo, mas antigo, e
muito usado pelos Santos Padres da Igreja. Além disso, essas veneráveis
testemunhas e guardas das tradições religiosas reconhecem certa forma e, uma
espécie de figura desse procedimento no fato dos hebreus, que, tendo de sair do
Egito, receberam a ordem de levar consigo os vasos de prata e ouro, bem como os
vestidos preciosos dos egípcios, para que essas coisas fossem dedicadas à
verdadeira divindade, apesar de terem antes servido a ritos vergonhosos e
cheios de superstição. Gregório de Neocesaréia (Orat. paneg. ad Origen.) louva
Orígenes, por isso que, tendo este extraído com engenhosa habilidade muitas
verdades dos pagãos, considerando-as como armas arrebatadas aos inimigos,
serviu-se delas. Com singular engenho para defesa da sabedoria cristã e para
refutação da superstição. Igualmente Gregório Nazianzeno (Vit. Moys). E
Gregório Nisseno louva e aprovam o mesmo costume de disputar de Basílio Magno
(Carm. I, Iamb. 3); porém São Jerônimo encarecidamente o recomenda em Quadrato,
discípulo dos Apóstolos, em Aristides, em Justino, em Irineu, e em muitíssimos
outros. (Epist. ad Magn.). E Agostinho diz: “Não vemos nós com quanto ouro e
prata luxuosamente vestido, saiu do Egito Cipriano, doutor sua víssimo e
felicíssimo mártir? E como saiu Lactâncio? E Vitorino, Optato e Hilário? E para
não enumerar os vivos, como saíram inumeráveis gregos?” (De doctr. christ.
I, II. 40).
Ora, se a razão natural produziu essa abundante colheita de doutrina,
antes de ser fecundada pela virtude de Cristo, com certeza mais abundante
colheita produzirá depois que a graça do Salvador restabeleceu e aumentou as
faculdades naturais da alma humana. E quem não verá como por esse modo de
filosofar se abre para a fé um caminho plano e fácil?
SUBSÍDIOS DA FILOSOFIA PARA A FÉ
8 – Porém não é nesses limites que se circunscreve a utilidade que
provém desse modo de filosofar. Realmente, nas palavras da divina sabedoria se
repreende asperamente a loucura desses homens que “por aquelas coisas que se
viam serem bens, não puderam compreender Aquele que é; e que, não atendendo às
obras, desconheceram quem era o artífice” (Sab. 13, 1).
9 – Portanto o grande e excelente fruto que em primeiro lugar colhemos
da razão humana, é demonstrar que Deus existe: “porque pela grandeza da imagem
e da criatura pode chegar-se sem dúvida ao Criador delas” (Sab. 5, 5). Depois
mostra-nos que em Deus se reúnem singularmente todas as perfeições,
sobressaindo sua infinita sabedoria, à qual nada pode, ocultar-se, e sua
suprema justiça, que de nenhum mal afeto pode ser eivada, e que por isso Deus
não só é verdadeiro, mas é a própria verdade que não pode enganar-se, nem enganar-nos.
Donde evidentemente se deduz, que a razão humana presta à palavra de Deus
pleníssima fé e autoridade.
10 – Semelhantemente a razão declara que a doutrina evangélica, logo
desde a sua origem resplandecera com admiráveis milagres, como argumentos
certos da verdade certa, e que por isso, todos aqueles que acreditam no
Evangelho não acreditam temerariamente, como quem segue engenhosas fábulas (2
Ped. 1, 16); mas sujeitam sua inteligência e juízo à autoridade divina por uma
submissão inteiramente racional. O que, porém, não é de menos valor, é que a
razão prova claramente que a Igreja instituída por Cristo (como definiu o
Concílio Vaticano) “por causa da sua admirável propagação, exímia santidade e,
inexaurível fecundidade em toda a parte, por causa da unidade católica e
firmeza invencível, é um grande e perpétuo motivo de credibilidade, e um
testemunho irrefragável da sua divina missão” (Const. Dog. de Fid Cath. 3) .
11 – Lançados destarte, os firmíssimos alicerces, ainda se requer um
continuado e múltiplo uso da filosofia para que a sagrada teologia admita e
receba a natureza, hábito e engenho da verdadeira ciência. Porque nessa
nobilíssima disciplina é grandemente necessário que muitas e diversas partes
das doutrinas celestes se reúnam em um corpo, a fim de que, convenientemente
dispostas, cada qual em seu lugar, e derivadas de princípios próprios,
permaneçam estritamente unidas entre si; e, enfim, que todas e cada uma delas
sejam confirmadas com argumentos próprios e irrefutáveis.
12 – Não devemos também passar em silêncio, nem ter em pouco aquele
conhecimento mais esmerado e mais fecundo das coisas que se crêm, bem como a
inteligência, mais calara que ser possa, dos mesmos mistérios da fé, tão
louvada e seguida por Agostinho e outros Padres, e que o mesmo Concílio
Vaticano definiu que era frutuosíssima. Este conhecimento e inteligência é, sem
dúvida, mais plena e facilmente adquirido por aqueles que, à integridade da
vida e ao estudo da fé, acrescentam um engenho exercitado nas disciplinas
filosóficas, principalmente ensinando o mesmo Concílio Vaticano que a
inteligência dos sagrados dogmas convém ser deduzida “ora da analogia das
coisas que se conhecem naturalmente, ora da conexão dos mesmos mistérios entre
si e com o fim último do homem” (Const. Dogm. de Fid. Cath. 20).
13 – Finalmente, pertence também à filosofia defender religiosamente as
verdades divinamente reveladas e resistir aos que ousam opor-se-lhes. Para
isto, de muito serve a filosofia, que é considerada como o baluarte da fé e
firme defesa da religião. “A doutrina do Salvador, diz Clemente de Alexandria,
é perfeita em si e não carece de ninguém, porque é virtude e sabedoria de Deus.
A filosofia humana não faz mais poderosa a verdade; mas, enfraquecendo os
argumentos dos sofistas contra ela e pulverizando os maliciosos estratagemas
contra a verdade, com razão é chamada sebe e estacada da vinha “ (Strom.
lib. 1, 20). Na verdade, assim como os inimigos do nome católico, para combater
a religião, se servem de armas quase, sempre ex- traídas da razão filosófica,
assim os defensores da divina ciência tiram do depósito da filosofia muitos
argumentos para defenderem os dogmas da Revelação. Nem se pense que é mesquinho
triunfo da fé cristã, por isso que a razão humana rebate vigorosa e facilmente
as armas dos adversários, adquiridas com o auxílio da mesma razão, com o fim de
fazer mal. São Jerônimo, escrevendo a Magno, diz que essa espécie de combate
religioso fora adotado pelo mesmo Apóstolo das Gentes: “Paulo, guia do exército
cristão, e, invencível orador, combatendo por cristo, aproveita com muita arte,
para argumento da fé, uma inscrição casual; porque aprendera do verdadeiro Davi
a arrancar as armas ao inimigo, e a decepar a cabeça do soberbíssimo Golias,
com sua própria espada” (Epist. ad Magn.). Além disso, a mesma Igreja
exorta e manda que os doutores cristãos se aproveitem desse auxílio da
filosofia. O Concílio Lateranense V, tendo definido “que, toda a aversão
contrária à fé revelada é absolutamente falsa, porque a verdade não pode estar em
contradição com a verdade” (Bulla Apostolici Regiminis), manda os
doutores da filosofia que tratem com empenho de refutar os argumentos falsos;
pois que, como afirma Santo Agostinho “se a razão se opõe à autoridade das
Escrituras Divinas, por muito especiosa que seja, engana-se com a semelhança da
verdade, porque não pode ser verdadeira” (Epist. 143, 7).
SUBSÍDIOS DA FÉ PARA A FILOSOFIA
14 – Para que a filosofia, porém, produza os preciosos frutos que temos
lembrado, é indispensável que jamais se afaste da senda, seguida pelos antigos
Padres, e aprovada pelo Concílio Vaticano com solene autoridade. E assim,
quando claramente conhecemos que, por motivos sobrenaturais, devemos receber
quaisquer verdades, que são muito superiores à capacidade de qualquer engenho,
a razão humana, conhecendo sua fraqueza, não ouse passar avante, nem negar
essas verdades, nem compreendê-las, nem interpretá-las livremente; mas
aceitando-as com absoluta e humilde fé, e considerando como grande honra ser
lhe permitido seguir, à maneira de serva e criada, as doutrinas celestes, e por
benefício de Deus atingi-las de algum modo.
15 – Naquelas doutrinas, porém, que a inteligência humana pode
compreender naturalmente, é sem dúvida justo que, a filosofia empregue o seu
método, seus princípios e argumentos. Não, porém, de modo que pareça ter a
audácia de subtrair-se à autoridade divina. Pelo contrário, como é sabido que
as coisas que a Revelação ensina se baseiam em verdades inconcussas, e que
aquela que se opõe à fé repugnam igualmente com a reta razão, saiba o filósofo
católico que violará os diretos da fé, não menos que os da razão, se adotar
conclusões que conhece estarem em contradição com a doutrina revelada.
16 – Bem sabemos que não faltam homens que, exaltando demasiadamente as
faculdades da natureza humana, asseveram que a nossa inteligência, logo que se
sujeita à autoridade divina, desce da dignidade natural, e como que curvada
debaixo do jugo da escravidão é de tal sorte sopeada e impedida, que não pode
atingir o ápice da verdade e da perfeição. Essas palavras, porém, estão
repletas de erro de dolo, e o fim a que visam é que os homens, com suma loucura
e não sem crime de ingratidão, desprezem as verdades mais elevadas e respeitem
espontaneamente o divino benefício da fé, da qual têm emanado ainda, sobre a
sociedade civil, torrentes de todos os bens. Porque, estando o espírito humano
encerrado dentro de certos e muito apertados limites, está sujeito a muitos
erros e à ignorância de muitas coisas, pelo contrário, baseada na autoridade de
Deus, a fé cristã é mestra seguríssima da verdade. Quem a segue, nem é
envolvido pelo erro, nem agitado nas vagas de opiniões incertas.
17 – Por isso, os que harmonizam o estudo da filosofia com a obediência
à fé cristã, raciocinam otimamente, até porque o esplendor das verdades
divinas, recebido na alma, ajuda a mesma inteligência, e bem longe de ofendê-la
em sua dignidade, lhe dá muita nobreza, penetração e firmeza. Quando, porém,
aplicam a penetração do espírito a refutar a sentenças que repugnam à fé e a
provar as coisas que com a fé se conformam, exercitam muito digna e utilmente a
razão. Porque, nas primeiras, descobrem as causas do erro, e conhecem o defeito
dos argumentos em que as mesmas se fundam. Nestas, porém, gozam da consideração
das razões com que solidamente são demonstradas e podem ser persuadidas a
qualquer homem prudente. Quem negar que com esse processo e exercício se
aumentam as riquezas do entendimento, e se desenvolvem as suas faculdades, há
de necessariamente cair no absurdo de afirmar que a distinção do verdadeiro e
do falso não conduz de forma alguma ao adiantamento do engenho. Com razão,
portanto o Concílio Vaticano lembra os grandes benefícios que a fé presta à
razão nas seguintes palavras: “A fé livra e defende dos erros a razão, e a
instrui com muitos ensinamentos” (Const. Dogm. de Fid. Cathol. 4). E por
isso o homem, se fosse verdadeiramente sábio, não deveria culpar a fé como
inimiga da razão e das verdades naturais, mas antes deveria dar graças a Deus e
alegrar-se grandemente, porque, entre tantas causas da ignorância e no meio das
vagas do erro, lhe apareceu rutilante, a santíssima luz da fé, a qual, como
astro amigo, lhe mostra o porto da verdade, sem perigo algum de errar.
SEGUNDA PARTE
HARMONIA ENTRE RAZÃO E FÉ
CONSIDERADA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA
18 – Se atenderdes, Veneráveis Irmãos, à história da filosofia, sabereis
que na realidade se provam todas as coisas que até aqui temos dito. Na verdade,
ainda os mais sábios dos antigos filósofos, que careceram do benefício da fé,
erraram muitíssimo e em muitas coisas. Porque, não ignorais que, entre algumas
verdades, ensinaram muitas vezes coisas falsas e errôneas, muitas coisas
incertas e duvidosas acerca da verdadeira noção da divindade, da primitiva
origem das coisas, do governo do mundo, do conhecimento divino do futuro, da
causa e princípio dos males, do último fim do homem, da eterna bem-aventurança,
das virtudes e vícios: de outras doutrinas, cujo conhecimento verdadeiro exato
é mais que tudo necessário ao gênero humano. Porém os primeiros Padres e
Doutores da Igreja, que muito bem sabiam, pelo conselho da vontade divina, que
o reparador da própria ciência humana era Cristo, que é “virtude e sabedoria de
Deus” (I Cor. 1, 24), e “no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedora
e da cicia” (Col. 2, 3) empreenderam investigar os livros dos sábios antigos e
confrontar as suas opiniões com as doutrinas reveladas; e por uma prudente
escolha adotaram o que nelas parecia conforme com a verdade, emendando ou
desprezando tudo o mais. Porque Deus providentíssimo, assim como suscitou para
a defesa da Igreja, e contra a crueldade dos tiranos, mártires fortíssimos e
cheios de magnanimidade, assim também opôs aos falsos filósofos e aos hereges
homens extraordinários em sabedoria, que se valeram do tesouro da verdade, bem
como do auxílio da razão humana.
Assim, desde os princípios da Igreja os opôs contra ferrenhos
adversários, que zombando dos dogmas e costumes dos cristãos, estabeleciam que
havia muitos deuses, que a matéria do mundo não tinha um princípio nem causa,
que a ordem das coisas estava numa força cega e numa necessidade fatal, e que
não era dirigida pela divina providência.
Ora, logo a princípio pelejaram, contra tais mestres dessa louca
doutrina, homens sábios, a quem damos o nome de Apologistas que, guiando-se
primeiro que tudo pela fé, também tomaram da sabedoria humana argumentos pelos
quais assentaram que se devia prestar culto a um só Deus revestido de todas as
perfeições; que todas as coisas foram produzidas do nada por um poder
onipotente, que obram pela sua sabedoria, e que cada uma delas é dirigida e
movida para seus fins próprios.
Merece, entre esses, o primeiro lugar, São Justino, mártir, que depois
de ter freqüentado as celebérrimas Academias dos gregos, viu que só das
doutrinas reveladas é que pôde extrair a verdade, como ele mesmo confessa, e
abraçando-as com todo o ardor da sua alma, as purificou das calúnias,
defendeu-as veementemente e, eloquentemente diante dos Imperadores Romanos, e
com elas harmonizou grande número de opiniões dos filósofos gregos. Também
Quadrato e Aristides, Hérmias e Atenágoras eminentemente brilharam por esse
tempo. Também não menor glória adquiriu para si, na defesa da mesma causa,
Irineu, mártir invicto, Pontífice, da Igreja Lugdemense: o qual tendo
valorosamente refutado as perversas opiniões dos orientais, espalhadas pelos
gnósticos pelos limites do império romano, “explicou as origens de cada uma das
heresias (como afirma Jerônimo), e de que fontes filosóficas emanavam” (Epist.
ad Magn.). Ninguém, porém, ignora as disputas de Clemente Alexandrino, as
quais o próprio Jerônimo honrosamente celebra assim: “Que há nelas de
ignorância? E mesmo que há aí que não provenha do seio mesmo da filosofia?” (Loc.
cit.). O mesmo com uma variedade pasmosa escreveu muitas coisas utilíssimas
para estabelecer a história da filosofia, para exercitar convenientemente a
dialética, para conciliar a harmonia da razão com a fé. Segue-se-lhe Orígenes,
insigne mestre da escola de Alexandria, muito instruído nas doutrinas gregas e
orientais, que publicou muitos e magníficos volumes, utilíssimos para explanar
as divinas Escrituras e esclarecer os dogmas sagrados. Ainda que esses livros,
tais quais agora existem, não estão totalmente isentos de erros, contêm,
todavia, grande cópia de sentenças que multiplicam e robustecem as verdades
naturais. Aos hereges opõe Tertuliano a autoridade das Sagradas Escrituras; aos
filósofos, mudando de armas, opõe-lhes a filosofia. A estes refuta, com tanta
sutileza e erudição, que não teme lançar-lhe em rosto este desafio: “Não me
podeis igualar em ciência nem em doutrina como julgais” (Apologet. §
46). Arnóbio, em seus livros publicados contra os gentios, e Lactâncio,
principalmente em suas Instituições divinas, empregam igual eloquência e valor
para persuadir aos homens os dogmas e preceitos da sabedoria católica; e longe
de transtornar a filosofia, como costumam fazer os Acadêmicos, servem-se, para
os convencer: (Inst. VII, 7) ora das suas armas, ora as que se deduzem
das questões intestinas dos filófofos (De Opif. Dei, 21).
19 – Os escritos que, acerca da alma humana, dos atributos divinos e de
outras questões de gravíssima consideração, deixaram o grande Atanásio e
Crisóstomo, príncipe dos oradores, são tão excelentes que, na opinião comum,
parece que nada se pode acrescentar à sua profundidade e abundância. E para não
alongar demais esta lista de grandes talentos, ajuntaremos aos que temos
mencionado Basílio Magno, bem como os dois Gregórios, os quais saíram de
Atenas, domicílio de toda a humanidade, abundantemente instruídos em todos os
recursos da filosofia; e estes tesouros de ciência que cada um deles adquiria,
ardentemente os empregaram em refutar os hereges e em ensinar os cristãos.
Parece, porém, que a primazia pertence, entre todos a Santo Agostinho,
poderoso gênio, que penetrou profundamente em todas as ciências divinas e
humanas, armado de uma fé suma e igual doutrina, combatendo sem descanso todos
os erros de seu tempo. Que ponto da filosofia não tocou e não aprofundou?
Descrevendo aos fiéis os mais altos mistérios da fé, prevenindo-os sempre
contra os agressivos ataques de seus adversários; pulverizando as ficções dos
acadêmicos e dos Maniqueus, assentou e consolidou os fundamentos da ciência
humana. Com que riqueza e penetração tratou dos anjos, da alma, da inteligência
humana, a vontade e livre arbítrio, da religião, da vida futura, do tempo, da
eternidade e até da mesma natureza dos corpos sujeitos a mudanças!
Mais tarde, no Oriente, João Damasceno, seguindo os passos de Gregório
Nazianzeno, e no Ocidente, Boécio e Anselmo, seguindo os de Agostinho,
enriqueceram grandemente o patrimônio da filosofia.
20 – Finalmente, os Doutores da Idade Média, conhecidos pelo nome de
Escolásticos, empreendem a obra colossal de recolher com cuidado aqui e ali a
abundante messe da doutrina disseminada nas inumeráveis obras dos Santos Padres
reduzindo-as a uma só obra, para uso e comodidade das gerações futuras.
E agora, Veneráveis Irmãos, podemos repetir as palavras com que Sixto V,
Nosso Predecessor, explica com extensão a origem, o caráter e a excelência da
doutrina escolástica: “Pela divina munificência d'Aquele que é o único a dar o
espírito de ciência, de sabedoria e, de, inteligência, e que no decurso dos
séculos, e segundo as necessidades, não cessa de enriquecer a sua Igreja com
novos benefícios, de provê-la de novas e seguras defesa, nossos antecessores,
homens de profunda ciência, inventaram a teologia escolástica. Principalmente,
porém, dois gloriosos doutores, o Angélico São Tomás e o Seráfico São
Boaventura, ambos professores ilustres nesta faculdade, são os que, com seu
incomparável talento, com seu assíduo zelo, com seus trabalhos e vigílias,
cultivaram esta ciência, enriquecendo-a e transmitindo-a a seus descendentes,
disposta em uma ordem perfeita e explicada de muitos modos. E certamente o
conhecimento de uma ciência tão saudável que dimana do fecundíssimo manancial
das Escrituras, dos Sumos Pontífices, dos Santos: Padres e dos Concílios, tem
sido em todos os tempos de grande, vantagem para a Igreja, já para a boa
inteligência e verdadeira interpretação das Escrituras, já para ler e explicar
os Padres com mais segurança e utilidade, já para desmascarar os variados erros
e as heresias. Nesses últimos tempos, porém, que nos têm trazido os dias
profetizados pelo Apóstolo, em que os homens blasfemos, orgulhosos, sedutores,
fazem progresso no mal, errando eles e induzindo os outros ao erro, certamente
que, para confirmar os dogmas da fé católica e refutar as heresias, é mais que
nunca necessária a ciência de que tratamos” (Bulla Triumphantis, 1588).
Essas palavras, ainda que parece que atingem somente a teologia
escolástica, estendem-se, todavia, à própria filosofia. Com efeito, as
eminentes qualidades que tornam a teologia escolástica tão temível aos inimigos
da verdade, a saber, continua o mesmo Pontífice: “ Aquela coerência tão
estreita e perfeita dos efeitos e das causas, aquela ordem e simetria
semelhante às de um exército em campanha, aquelas luminosas definições e
distinções, aquela solidez de argumentação e sutileza de controvérsia, coisas
todas por meio das quais se separa a luz das trevas, se distingue o verdadeiro
do falso e as mentiras da heresia, despojadas do prestígio e das ficções que as
rodeiam, aparecem a descoberto”; todas essas brilhantes qualidades, dizemos, se
devem unicamente ao bom uso da filosofia que os doutores escolásticos adotaram,
geralmente ainda nas controvérsias teológicas.
Além disso, como o caráter próprio e distintivo dos teólogos
escolásticos é unir com o mais estreito laço a ciência divina e humana, a
teologia em que se distinguiram não poderia certamente ter adquirido tanta
honra e estima na opinião dos homens, se esses doutores tivessem pregado uma
filosofia incompleta, truncada e superficial.
TERCEIRA PARTE
SÃO TOMÁS DE AQUINO CONCILIOU
COM MÁXIMA PERFEIÇÃO RAZÃO E FÉ
21 – Porém, entre todos os doutores escolásticos, brilha, como astro
fulgurante, e como príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual, como
observa o Cardeal Caetano, “por ter venerado profundamente os santos doutores
que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos” (S. T. II II,
148, 4).
Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo;
reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que
tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e a honra da
Igreja.
De espírito dócil e penetrante, de fácil e segura memória, de perfeita
pureza de costumes, levado unicamente pelo amor da verdade, prenhe de ciência
divina e humana, justamente comparado com o sol, aqueceu a terra com a
irradiação de suas virtudes e encheu-a com o resplendor de sua doutrina.
Não há um ponto da filosofia que não tratasse com tanta penetração como
solidez. As leis do raciocínio, Deus e as substâncias incorpóreas, o homem e as
outras criaturas sensíveis, os atos humanos e seus princípios, são objeto das
teses que defende, nas quais nada falta, nem a abundante colheita de
investigações, nem a harmoniosa coordenação das partes, nem o excelente método
de proceder, nem a solidez dos princípios, nem a força dos argumentos, nem a
lucidez de estilo, nem a propriedade da expressão, nem a profundidade e
gentileza com que resolve pontos mais obscuros.
22 – Ainda mais: o Doutor Angélico buscou as conclusões filosóficas nas
razões e princípios das coisas, que têm grandíssima extensão e encerram em seu
seio o germe de quase infinitas verdades, para serem desenvolvidas em tempo
oportuno e com abundantíssimo fruto pelos mestres dos tempos posteriores.
Empregando o mesmo procedimento na refutação dos erros, o santo Doutor
chegou ao seguinte resultado: debelou todos os erros do tempo passado, e propiciou
invencíveis armas para os que haviam de aparecer nos tempos futuros.
Além disso, ao mesmo tempo que distingue perfeitamente, como convém à fé
e à razão, uni-as ambas pelos vínculos de mútua concórdia, conservando a cada
uma seus direitos e salvando sua dignidade. Assim é que a razão, levada por
Tomás até o píncaro humano, não pode elevar-se a maior altura. E a fé quase não
pode esperar que a razão lhe preste mais numerosos e mais valentes argumentos
do que aqueles que lhe forneceu Tomás de Aquino.
23 – Por isso, nos séculos passados, homens doutíssimos, de grande
renome em teologia e filosofia, procurando com incrível empenho as obras de
Tomás, se têm consagrado, não só a cultivar sua angélica sabedoria, mas também
a imbuir-se inteiramente dela. É sabido que quase todos os fundadores e
legisladores das Ordens Religiosas têm imposto a seus companheiros o estudo da
doutrina de São Tomás e a cingirem-se a ela religiosamente, dispondo que a
nenhum deles seja lícito separar-se impunimente, ainda em coisas pequenas, das
pegadas deste grande homem. Para não falarmos da família de São Domingos, que
se gloria do direito próprio de o ter por mestre, os Beneditinos, os
Carmelitas, os Agostinianos, a Companhia de Jesus e muitas outras Ordens estão
obrigadas a esta lei, como atestam os respectivos estatutos.
24 – E aqui se levanta jubilosamente o espírito a essas celebérrimas
Academias e Escolas, que outrora floresceram na Europa, – de Paris, de
Salamanca, de Alcalá, de Douai, de Tolosa, e Louvaina, de Pádua de Bolonha, de
Nápoles, de Coimbra e outras muitas. Ninguém ignora que as consultas que se
lhes faziam, nos mais importantes negócios, gozavam de grande autoridade em
toda a parte. É também sabido que, naqueles grandes abrigos da sabedoria
humana, Tomás reinava como um príncipe em seu próprio império, que todas as
inteligências, as dos mestres e as dos discípulos, se curvavam com admirável
consonância ao magistério e autoridade do Doutor Angélico.
25 – Mas, o que é mais, os Pontífices Romanos, Nossos Predecessores, têm
honrado a sabedoria de Tomás de Aquino com singulares louvores e amplíssimas
provas. Clemente VI, Nicolau V, Bento XIII e outros, atestam que a Igreja
Universal é ilustrada pela sua admirável doutrina. São Pio V reconhece que a
mesma doutrina, dissipando as heresias, as confunde e refuta, e que todos os
dias livra o mundo de erros maléficos. Outros, como Clemente XII, afirmam que
de seus escritos têm nascido abundantíssimos bens para a Igreja universal, e
que devem ser honrados com o mesmo culto que é prestado aos maiores doutores da
Igreja – Gregório, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo. Outros, finalmente, não têm
duvidado propor São Tomás às Academias e Escolas Superiores como modelo e
mestre a quem podiam seguir com segurança. E a tal respeito merecem recordar-se
aqui as palavras de São Urbano V à Academia de Tolosa: “Queremos, pelo teor das
presentes mandamos que se sigais as doutrinas de São Tomás como verídicas e
católicas e, que envideis todos os esforços para desenvolvê-las” (Cons.
5, 3.08.1368). Seguindo o exemplo de Urbano V, Inocêncio XII impõe as mesmas
prescrições à Universidade de Louvaina, e Bento XIV, ao Colégio Dionisiano de
Granada. A fim de pôr termo a essas decisões dos Sumos Pontífices acerca de S.
Tomás de Aquino, acrescentaremos o seguinte testemunho de Inocêncio VI: “A
doutrina de São Tomás tem sobre as outras, excetuando a canônica, a propriedade
dos termos, o modo de expressão, a verdade das proposições, de sorte que os que
a seguem nunca se vêem surpreendidos fora do caminho da verdade, e quem a
combate tem sido sempre suspeito de erro” (Sermão de S. Tomás).
26 – Os próprios Concílios Ecumênicos, em que brilha a flor da sabedoria
colhida em toda a terra, se têm ocupado sempre em prestar a Tomás de Aquino
especial homenagem. Nos Concílios de Lião, de Viena, de Florença, do Vaticano,
acreditar-se-ia ver Tomás tomar parte, presidir de certo modo às deliberações e
decretos dos Padres Conciliares, e combater com grande vigor e com mais feliz
êxito os erros dos gregos, dos hereges e dos racionalistas.
A maior honra, porém, prestada a São Tomás, só a ele reservada e que
nenhum dos doutores católicos pode partilhar, provém dos Padres do Concilio
Tridentino, quando fizeram que, no meio da santa assembléia, com o livros das
Escrituras e com os decretos dos Papas, fosse colocada aberta sobre o mesmo
altar a Suma Teológica de Tomás de Aquino para dela extrair conselhos, razões e
decisões.
27 – Finalmente, outra palma parece ter sido reservada a este homem
incomparável: ter sabido granjear dos mesmos inimigos do dogma católico o
tributo de suas homenagens, de seus elogios e de sua admiração. Com efeito, é
sabido que entre os principais promotores de heresias houve alguns que
declararam, em alta voz, que suprimida a doutrina de São Tomás de Aquino se
comprometiam a empreender uma luta vantajosa contra todos os doutores católicos
e aniquilar a Igreja. Infundada esperança, mas não infundado testemunho.
QUARTA PARTE
RESTAURAÇAO DA VERDADEIRA FILOSOFIA
28 – Sendo assim, Veneráveis Irmãos, todas as vezes que olhamos para a
bondade, força e inegável utilidade dessa disciplina filosófica, tão amada de
nossos pais, intendemos que tem sido uma temeridade o não haver continuado em
todos os e lugares a honra que merece, principalmente tendo a filosofia
escolástica em seu favor o largo uso, a opinião dos homens eminentes e, o que é
o principal, a aprovação da Igreja.
Em lugar da doutrina antiga, uma espécie de novo método de filosofia se
tem introduzido aqui e ali sem dar os saudáveis frutos que a Igreja e a
sociedade civil desejam. Debaixo dos impulsos dos inovadores do século XVI, principiou-se
a filosofar sem respeito algum pela fé, com plena licença para deixar voar o
pensamento segundo o capricho e critério de cada um. Resultou naturalmente que
os sistemas de filosofia se multiplicam de modo extraordinário, e que
apareceram opiniões diversas e contraditórias até sobre os objetos mais
importantes dos conhecimentos humano. Com a pluralidade de opiniões, chega-se
facilmente à vacilação e à duvida; da dúvida, porém, ao erro é facílimo ao
conhecimento humano o chegar, como todos sabem.
Os homens deixaram-se facilmente arrastar pelo exemplo, e a paixão da novidade invadiu, segundo parece, em alguns países, até o espírito dos filósofos católicos, os quais, desprezando o patrimônio da antiga sabedoria, preferiram edificar de novo a aperfeiçoar e acrescentar o antigo edifício, projeto esse pouco prudente e que causa grandes males à ciência. Portanto, estes variados sistemas, fundados unicamente na sua autoridade e no arbítrio de cada mestre particular, carecem de base sólida, e por conseguinte, em lugar dessa ciência segura, estável e robusta como a antiga, só podem produzir uma filosofia vacilante e sem consistência. E se tal filosofia carece de força para resistir aos assaltos do inimigo, a si mesma deve imputar as causas da sua fraqueza.
Os homens deixaram-se facilmente arrastar pelo exemplo, e a paixão da novidade invadiu, segundo parece, em alguns países, até o espírito dos filósofos católicos, os quais, desprezando o patrimônio da antiga sabedoria, preferiram edificar de novo a aperfeiçoar e acrescentar o antigo edifício, projeto esse pouco prudente e que causa grandes males à ciência. Portanto, estes variados sistemas, fundados unicamente na sua autoridade e no arbítrio de cada mestre particular, carecem de base sólida, e por conseguinte, em lugar dessa ciência segura, estável e robusta como a antiga, só podem produzir uma filosofia vacilante e sem consistência. E se tal filosofia carece de força para resistir aos assaltos do inimigo, a si mesma deve imputar as causas da sua fraqueza.
Ao dizer isso, não intendemos certamente censurar esses sábios avisados,
que empregam na cultura filosófica o seu gênio, sua ambição e a riqueza de
novas invenções, e compreendemos muito bem que todos esses elementos concorrem
para o progresso da ciência. Devemos, porém, evitar com o maior cuidado desse
engenho e dessa erudição os únicos ou principais da sua aplicação.
O mesmo se deve pensar da teologia sagrada. É bom que ela seja ajudada e
ilustrada pela luz de uma variada erudição. É, porém, absolutamente necessário
tratá-la com a seriedade dos escolásticos, a fim de que, com as forças reunidas
da Revelação e da razão, não deixe de ser “o inexpugnável baluarte da fé”
(Sixto V, Bulla cit.).
29 – É, pois, feliz aspiração a dos numerosos interessados pela filosofia,
que, desejosos de empreender, nestes últimos anos eficazmente a sua
restauração, se têm consagrado e, consagram ainda a utilizar a admirável
doutrina de Tomás de Aquino e a devolver-lhe o antigo esplendor. Animados com o
mesmo espírito vários membros de vossa ordem, Veneráveis Irmãos, têm entrado
com ardor na mesma tarefa. É com alegria que o reconhecemos. Louvando-os com
efusão, os exortamos a perseverar em tão grande empreendimento. Aos outros,
advertimos que nada é mais conforme com o nosso coração e nada desejamos tanto
senão vê-los oferecer ampla e copiosamente à juventude estudiosa as águas
puríssimas da sabedoria que dimanam em torrentes contínuas do Doutor Angélico.
30 – Muitas razões provocam em Nós este ardente desejo. Primeiramente,
como a fé cristã se vê diariamente, em nossos tempos, combatida pelas
maquinações e sofismas de um falsa sabedoria, é necessário que todos os jovens,
especialmente os que são educados para o serviço da Igreja, sejam nutridos com
alimento forte dessa doutrina, para, fortes e munidos dessas armas, maduramente
se acostumem a tratar com sabedoria e coragem a causa da religião, prontos
sempre, como diz o Apóstolo, “a dar conta, a quem lha pedir, da esperança que
existe em nós” (I Ped. , 5); assim como “a exortar em sã doutrina e convencer
os que a contradizem “ (Tito 1, 9). Além disso, grande número de homens que
“afastando o espírito da fé, desprezam instituições católicas e professam que
seu único mestre guia é a razão. Para os curar e trazer à graça e ao mesmo tempo
à fé católica, além do auxílio sobrenatural de Deus, nada mais vemos mais
oportuno do que as sólidas doutrinas dos Padres e dos Escolásticos, que põem à
vista inabaláveis bases da fé, sua origem divina, sua verdade certa, seus
motivos de persuasão, os benefícios que tem feito ao gênero humano, sua
perfeita harmonia com a razão, e isto com tanta força e evidência, quanta é
necessária afazer curvar os espíritos mais rebeldes e mais obstinados.
31 – Todos vemos em que tristíssima situação está a família e a
sociedade por causa da peste das opiniões perversas. Por certo que ambas
gozariam de paz mais perfeita e de maior segurança, se nas Academias e nas
escolas se ensinassem doutrinas mais sãs e mais conformes com o ensino da
Igreja, ensino como se acha nas obras de Tomás de Aquino. O que ele ensina
acerca da verdadeira natureza da liberdade em todos os tempos e, que, em
nossos, degenerou em licenciosidade, o que a respeito da origem divina de
qualquer autoridade, das leis e da sua força, do império paternal e justo dos
grandes princípios, da obediência aos poderes superiores, da mútua caridade
entre todos, o que acerca dessas coisas e de outras do mesmo gênero é tratado
por S. Tomás, tem a maior e mais invencível força para lançar por terra esses
princípios de um novo direito que todos conhecem ser perigoso à paz, à ordem e
ao bem estar social.
32 – Finalmente, todos os conhecimentos humanos devem esperar grande
incremento e grande defesa vindos dessa restauração dos estudos filosóficos que
nós temos proposto.
Porque da filosofia, como sabedoria moderadora que é, costumam as belas
artes tomar a sã razão e o reto método, e beber dela o seu espírito como de
fonte comum da vida. De fato, e por uma constante experiência se comprova que
as artes liberais floresceram principalmente quando permaneceram incólumes a
honra e o juízo da filosofia. Contrariamente, têm sido relegadas ao
esquecimento e ao desprezo, quando a filosofia tem decaído e se tem envolvido
em erros e vãs sutilezas.
As mesmas ciências físicas que agora são de tanto valor, e que causam
singular admiração em toda aparte com tantas maravilhosas invenções, não só
nenhum dano hão de sofrer causado pelo restabelecimento da filosofia antiga,
mas antes receberão muito auxílio. Pois que para o frutuoso exercício e
incremento delas não basta só a consideração dos fatos e a contemplação da
natureza, senão que, verificados os fatos, deve subir-se mais alto e procurar
com todo o cuidado reconhecer a natureza das coisas corpóreas, investigar as
leis que a obedecem e os princípios donde provém a ordem das mesmas, sua
unidade no meio da verdade, e sua afinidade no meio da diversidade. Para cujas
investigações é admirável a força, luz e auxílio que presta a filosofia
escolástica, se for ensinada com lúcida inteligência.
A este respeito, apraz-nos consignar que só com grave injúria se pode
atribuir à mesma filosofia o defeito de opor-se ao adiantamento e progresso das
ciências naturais. Os escolásticos, com efeito, seguindo o parecer dos Santos
Padres, tendo ensinado a cada povo que a inteligência só por meio das coisas
sensíveis pode elevar-se ao conhecimento de seres incorpóreos e imateriais, têm
compreendido por si mesmos que nada mais útil para o filósofo do que investigar
atentamente os segredos da natureza, e aplicar-se por largo tempo ao estudo das
coisas físicas. Isso mesmo fizeram eles. São Tomás, o Bem Aventurado Santo
Alberto Magno e outros promotores da Escolástica, não se entregaram à
contemplação da filosofia sem que também não dessem grande atenção ao
conhecimento das coisas naturais. Antes, nessa ordem de conhecimentos, muitas
das suas afirmações e dos seus princípios são aprovados pelos mestres modernos
que reconhecem a sua exatidão. Além disso, mesmo neste nosso tempo, muitos e
insignes doutores das ciências físicas têm dado público testemunho de que entre
as afirmações certas e verdadeiras da física moderna e os princípios
filosóficos da Escola, não existe contradição.
CONCLUSÃO
33 – Nós, pois, proclamando que é preciso receber de boa vontade e com
reconhecimento tudo o que for sabidamente dito, ou utilmente descoberto seja
por quem for, vos exortamos, Veneráveis Irmãos, com muito empenho, a que, para
defesa e, exaltação da fé católica, para o bem social e para a promoção de
todas as ciências, ponhais em vigor e deis a maior extensão possível, à
preciosa doutrina de São Tomás. Dizemos doutrina de São Tomás, porque se se
encontrar nos Escolásticos, alguma questão demasiado sutil, alguma afirmação
inconsiderada, ou alguma coisa que não esteja em harmonia com as doutrinas
experimentadas nos séculos posteriores, ou que seja finalmente destituída de
probabilidade, não intentamos de modo algum propô-la para ser repetida em nossa
época.
Quanto ao mais, diligenciem os mestres, cuidadosamente escolhidos por
vós, fazer penetrar no espírito dos discípulos a doutrina de São Tomás; façam,
sobretudo, notar claramente quanto esta é superior às outras em solidez e
elevação. Que as Academias que tendes instituído ou houverdes de instituir para
o futuro, expliquem esta doutrina a defendam e utilizem para refutação dos
erros dominantes.
Para evitar, porém, que se aceite como verdadeiro o que é apenas
hipotético, e que se beba como água pura o que não é, providencial para que a
“sabedoria e Tomás se colha em seus próprios mananciais ou ao menos nos arroios
que, saindo do próprio manancial, correm todavia claros e límpidos conforme o
testemunho dos doutores. Dos arroios que se dizem derivar do manancial, mas que
estão na realidade cheios de águas estagnadas e insalubres, afastai, com muito
cuidado, o espírito dos jovens.
34 – Sabemos, porém, que todos os nossos esforços serão inúteis,
Veneráveis Irmãos, se a nossa empresa não for secundada por Aquele que nas
Escrituras é chamado “Deus das ciências” (I Reg. 2, 3). Elas nos advertem
também “que todo o bem excelente, todo o dom perfeito vem de cima, descendo do
Pai das luzes” (Pacob 1, 17). E mais: “Se alguém carece de sabedoria, peça-a a
Deus, que a todos dá liberalmente, e não o lança em rosto, e ser-lhe-á dada”
(I. c. 5, 5).
Nisto sigamos também os conselhos do Doutor Angélico que nunca se
entregava ao estudo e ao trabalho sem que antes tivesse recorrido a Deus por
meio da oração, e que ingenuamente confessava que, quanto sabia, o devia, não
tanto a seu estudo e trabalho, como ao auxílio divino.
Roguemos, pois, a Deus todos juntos com espírito humilde e coração
unânime que derrame sobre os filhos da Igreja o espírito de ciência e
inteligência, lhes abre o sentir para entenderem a sabedoria.
Para obter, com maior abundância ainda, os frutos da bondade divina,
interpondo para com Deus o onipotente auxílio da Bem Aventurada Virgem Maria,
sede da sabedoria, recorrei ao mesmo tempo, à intercessão de São José,
puríssimo esposo da Virgem, assim como os grandes Apóstolos São Pedro e São
Paulo, que renovarão, com a verdade a terra infestada pelo contágio do erro,
enchendo-a com o esplendor da luz celeste.
35 – Enfim, sustentado pela segurança do auxílio divino, confiando em
vosso pastoral zelo, a todos damos, Veneráveis Irmãos, do íntimo do coração,
assim como ao vosso clero e ao povo confiado a vosso cuidado, a Bênção
Apostólica, como prova dos bens celestes e testemunho do Nosso particular
afeto.
Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 4 de agosto de 1879, segundo ano
do Nosso Pontificado.
LEÃO XIII, PAPA