A falsa premissa
Uma quantidade não desprezível de
católicos, nos dias de hoje, sonha com o momento em que terão uma quantidade
considerável de parlamentares na Câmara dos Deputados, ou mesmo na tal da
Presidência da República. Outros, que se acreditam menos iludidos, sonham com
uma monarquia parlamentar.
Outra parte, por sua vez — especialmente
aquela pertencente à Opus Dei — acredita que um tipo de ocupação à moda
gramsciana (guerra de posições), como aquela que exercem especialmente no poder
judiciário, poderia vir a surtir efeito (seja lá qual for o que desejarem).
Mas todos os católicos que desejam uma
ocupação de posições nos centros de poderes modernos partem de uma falsa
premissa. Essa premissa eu poderia formular de maneira muito simples e acredito
que todos concordariam:
– (1) O poder
político-partidário do Estado moderno é o centro de tomada de decisões da
sociedade; e (2) quem estiver lá terá o controle das decisões de uma nação e
portanto da sociedade; ergo (3) devemos desejar possuir esses
lugares, pois somos católicos e queremos o Reino de Cristo.
Isso por si só move muitas pessoas a
fazerem a campanha pelo tal do “mal menor” a favor de Jair Bolsonaro, ou pela
deputada Cris Tonietto, fiel da Administração Apostólica de D. Rifán, ou por
algum católico local para os cargos de vereador ou deputado estadual (ou algum
federal caso você não for do Estado da Cris), etc.
O que é o Estado
moderno
O Estado moderno não é a mesma coisa que
a comunidade política medieval ou a pátria da Antiguidade. O historiador Jean
de Viguérie observa algo interessante: antes da palavra pátria entrar
na língua francesa, já existia o conceito de França:
«A
palavra “pátria”, no latim medieval, e a palavra “patrie”,
adotada pela língua francesa no século XVI, designavam a terra dos pais, o país
de nascimento e educação. O amor à pátria — a palavra patriotismo ainda não
existia — restaurou à França os deveres da piedade com as honras do respeito e
da lealdade. A pátria era a França. A França era um ser moral dotado de
virtudes. Os franceses frequentemente evocavam essas virtudes da França e
queriam se mostrar dignos delas. Em caso de guerra, alguns deles concordavam em
dar a vida. Mas nenhuma obrigação era imposta aos cidadãos comuns de morrer
pela pátria a pedido do príncipe.»¹
Ora, se já existia uma noção de “França”
anterior à noção de “pátria”, certamente essa noção referia-se ao
simples exercício da política em seu sentido clássico, que é o exercício da
prudência humana conforme a natureza, ou seja, a união de famílias em prol de
um viver superior àquele da isolação: uma sociedade de sociedades onde havia um
livre intercâmbio de convivências, experiências e um depósito de memórias,
desejos e bens em comum. Era a “comunidade política” (e política aqui nunca é
no sentido ‘política partidária’) que dividia suas tarefas conforme a natureza
e os fins gerais que deve ter uma sociedade, ou seja: o exercício das virtudes
e a aquisição da bem-aventurança eterna. A vida era relativamente simples e,
apesar dos problemas inerentes à natureza humana, a chance de sucesso (leia-se
salvação) era muito maior. Essa “comunidade política” não foi inventada por
Aristóteles ou Santo Tomás: eles apenas descreveram esse fenômeno consequente
da natureza humana (e, se consequente da reta natureza humana, algo querido por
Deus).
Por outro lado, vejamos quais são os
pontos-chave que definem o que é o Estado moderno nas palavras do professor de
Ciências Políticas e Políticas Públicas, Patrick Dunleavy, da London
School of Economics, Inglaterra:
«O
Estado é um conceito complexo e multicritério. Na era contemporânea, refere-se
a:
1. Um conjunto de instituições
organizadas com um nível de conectividade ou coesão que justifica descrições
resumidas de seu comportamento em termos “unitários”.
2. Operando em um determinado território
espacial, habitado por uma população substancial organizada como uma
“sociedade” distinta.
3. A “função socialmente aceita” dessas
instituições é definir e aplicar decisões coletivamente vinculativas aos
membros dessa sociedade (Jessop, 1990, p. 341).
4. Sua existência cria uma esfera
“pública” diferenciada do âmbito da atividade ou tomada de decisões “privadas”.
Cada um desses Estados (conjunto de
instituições) deve também:
5. Reivindicar soberania sobre todas as
outras instituições sociais e efetivamente monopolizar o uso legítimo da força
dentro do território em questão (Weber, 1948, p. 78).
6. Ser capaz de definir membros e não
membros da sociedade e controlar a entrada e saída do território.
7. Fazer fortes reivindicações
ideológicas/éticas para promover os interesses comuns ou a vontade geral dos
membros da sociedade.
8. Ser aceito como legítimo por grupos
ou elementos significativos da sociedade.
9. Comandar recursos burocráticos
(Weber, 1968, pp. 212–226) para poder arrecadar impostos (Schumpeter, 1954) e
ordenar os assuntos governamentais de forma eficaz, dados os custos de
transação vigentes (Levi, 1988).
10. Regular substancialmente as
atividades sociais por meio de um aparato legal e as atividades governamentais
por meio de uma constituição.
11. Ser reconhecido como um
"Estado" por outros Estados.»²
Aqui não se trata do Estado enquanto
culminação natural do poder temporal, ou uma sociedade de
sociedades funcionando como poder subsidiário que dá apoio às sociedades
menores para que elas atinjam seu fim. Não. Trata-se, antes de tudo, de uma
coesão de instituições burocráticas, ou melhor, de um consenso de
instituições burocráticas que quer a todo custo impor sua visão
leviatânica e indisputada sobre o todo da sociedade. É um grupo estabelecido,
virtualmente inextirpável e dinástico de burocratas que manejam o Estado
moderno para o rumo que querem dar. Poderíamos atribuir alguma ideologia a esse
grupo, mas objetivamente o único objetivo deles é não sair de lá. Esses
burocratas podem ser movidos ou até mesmo estar em intersecção com as
oligarquias usurárias e as organizações secretas, mas em sua dureza de coração
jamais aceitariam um “pária” católico, pois governam segundo a Cidade dos
homens, e não a de Deus.
Tal é, em linhas gerais e muito
resumidamente, o Estado moderno, ou, como se costuma chamar, o sistema.
E por isso mesmo, diante disso tudo pareceria uma atitude pouco caridosa (para
não dizer cruel) desejar jogar algum irmão católico em tal situação.
Fim.
(Assinado: Leonildo
Trombela Júnior)
NOTAS
1
Jean de Viguerie, Les deux patries. Essai historique sur l’idée de
patrie en France, Dominique Martin Morin, 2ª ed., Bouère, 2003, p. 11.