sexta-feira, 28 de abril de 2023

FALSOS AMIGOS DO ESPANHOL

 Carlos Nougué

Nota prévia: estas notas sobre os falsos amigos do espanhol vou publicando-as no Facebook, e, à medida que o for fazendo, republicá-las-ei aqui, nesta mesma postagem.

I) A palavra espanhola encuesta traduz-se em português por “pesquisa, enquete”, e não por “encosta”, que em espanhol é cuesta. Daí a expressão cuesta abajo = “ladeira abaixo”.

Encuesta vem do fr. enquête, enquanto este vem do lat. vulg. *inquaerĕre, e este do lat. in- e quaerĕre (‘indagar’, ‘perguntar’). Ou seja, encuesta tem a mesma origem que o nosso “enquete”.

II) Imaginem o estupor de um brasileiro sem domínio do espanhol diante do seguinte letreiro de um cinema madrilense: El presunto asesino. “O presunto assassino?!?!?!... Só pode ser filme surrealista”. Sucede porém que em espanhol presunto é o mesmo que o nosso adjetivo “suposto”; enquanto o nosso “presunto” se diz em espanhol jamón.

O presunto espanhol vem do lat. praesumptus, part. de praesumĕre (‘presumir’); enquanto o nosso “presunto” vem do lat. *presunctum, forma metatética de *persunctum, que por sua vez deriva de *sumctus, a, um por suctus, a, um, part. de sugĕre (‘sugar, sorver’). – Por seu lado, o esp. jamón deriva do fr. jambon, dim. de jambe (‘perna’).

Observação 1: o presunto espanhol pronuncia-se /presunto/, porque, como em grego, em espanhol não há o som de /z/.

Observação 2: o espanhol é com respeito ao português a língua mais traiçoeira. Parece-se muito com este; mas é quase incalculável o número de seus falsos amigos para os lusófonos. Por isso não creia, ó noviço na tradução e nos idiomas, que pode traduzir do espanhol sem o devido aprendizado desta língua. Se o faz, é desastre certo.

III) O “todavia” português e o todavía espanhol (com acento) têm o mesmo étimo: a contração de toda via e de toda vía, originalmente com o significado de ‘em todo o caminho, constantemente’. Mas em seu uso atual têm significado muito diverso.

O “todavia” português é sinônimo de “no entanto, contudo, não obstante”; enquanto o todavía espanhol se traduz em português por “ainda” (está durmiendo todavía = “ainda está dormindo”). Os dicionários hispânicos põem que todavía também pode significar o mesmo que o “todavia” português. Mas é raríssimo que se use com este significado; e, em minha vasta experiência de tradutor, salvo engano nunca deparei com este uso (ou talvez sim num Cantar de mio Cid, numas Coplas a la muerte de mi padre, num São João da Cruz, num Quijote).

Como se vê, por fim, é o todavía espanhol em seu sentido principal o que se mantém mais próximo do original: ‘ainda’, ou seja, ‘de modo constante’.

Observação 1: o nosso “todavia” e seus sinônimos (“contudo”, “no entanto”, “não obstante”, “sem embargo”, etc.) traduzem-se em espanhol por sin embargo, no obstante, con todo eso, (menos usado hoje em dia) empero.

Observação 2: sinônimo do todavía espanhol é aún (com acento; aun [sem acento] é sinônimo de incluso).

IV) O adjetivo espanhol largo traduz-se em português, antes de tudo, por “longo” ou “comprido”: un largo camino = “um longo caminho”; pelo largo = “cabelo comprido (ou longo)”.

Em alguns poucos casos, porém, traduz-se pelo nosso mesmo “largo”: por exemplo, caminar a pasos largos = “caminhar a passos largos”. Veja-se que nesta locução o nosso “largo” também significa ‘longo’.

Em espanhol há (ou havia) luengo, como se vê no Quijote: sus barbas luengas = “suas barbas longas”. Mas está desusado já desde há muito.

Observação 1: o nosso adjetivo “largo” com o sentido de ‘amplo na largura’ traduz-se em espanhol por ancho: “um corredor largo” = un pasillo ancho.

Observação 2: o ibérico largo provém do lat. largus, a, um (‘abundante, copioso, opulento, liberal, generoso, amplo’).

V) A locução adverbial espanhola por cierto traduz-se mais comumente em português por “aliás”, “a propósito”.

Mas também, ainda que menos comumente, pode traduzir-se por “por certo”, “certamente”.

É preciso portanto verter a locução castelhana segundo o contexto em que se encontre.

Observação 1: o espanhol alias (diz-se /álias/) traduz-se em português por “vulgo”, “também conhecido por”, “mais conhecido por”, etc.; ou ainda por “apodo” ou “apelido” (“sobrenome” em Portugal).

Observação 2: tanto o nosso “aliás” como o espanhol alias provêm do lat. alias (‘outra vez’, ‘outras vezes’, ‘em outro momento’, ‘em outra época’ [no sentido clássico]; e ‘de outro modo’, ‘por outro lado’, ‘de outro ângulo’ [a partir de Plínio]).

Observação 3: apesar do “rumor” em sentido contrário, “traduzir” e “verter” significam exatamente o mesmo, independentemente de se se translada da própria língua a outra ou de outra à própria.

VI) A locução adverbial espanhola más bien traduz-se em português por “antes”: No estoy alegre, sino más bien triste = “Não estou alegre, estou antes triste”; Una figura más bien apolínea que hercúlea = “Uma figura antes apolínea que hercúlea”.

Observação: neste uso, obviamente, o nosso “antes” não tem sentido temporal.

Nota gramatical: em português, antes de particípio não se deve usar “melhor” nem “pior”, mas “mais bem” e “mais mal”: “Este livro está mais bem escrito que o anterior”; “Esta casa está mais mal pintada que a outra”.

VII) Não há nada mais traiçoeiro para o lusófono que o pretérito perfeito composto do espanhol (e do francês, do italiano, do inglês...). É que só no português atual o pretérito perfeito composto expressa exclusivamente duração até o momento em que se fala ou escreve. Com efeito, “TENHO ESTUDADO muito” expressa uma ação começada no passado e prosseguida até agora. Em espanhol, no entanto, o pretérito perfeito composto expressa quase sempre uma ação terminada proximamente ao momento em que se fala ou escreve. Assim, He estudiado mucho não se traduz em português por “Tenho estudado muito”, mas com o nosso pretérito perfeito simples: “Estudei muito”. Este uso principalíssimo do pretérito perfeito composto do espanhol é idêntico, por exemplo, ao do passato prossimo do italiano.

É verdade que de vez em quando – muito de vez em quando – o pretérito perfeito do espanhol expressa uma ação começada no passado e continuada até o momento em que se fala ou escreve: por exemplo, Él ha vivido treinta años en esta casa PODE querer dizer que ele vive nesta casa desde há trinta anos. Se todavia é este o caso, então tampouco o traduzimos pelo nosso pretérito perfeito composto, mas pelo nosso presente: “Ele vive nesta casa há trinta anos”.

Salvo pois excepcionalíssimos casos como este – casos que só o contexto pode indicar –, devemos traduzir sempre o pretérito perfeito composto do espanhol pelo nosso pretérito perfeito simples. Diga-se o mesmo, aliás, e ainda mais absolutamente, do pretérito perfeito composto do italiano, do francês, do inglês... E, no entanto, muito infelizmente, pouco deparamos com este acerto tão basilar em livros traduzidos de todas essas línguas, não raro, ademais, contra o evidente. Uma, digamos, verdadeira tragédia civilizacional.

Observação: o pretérito perfeito do espanhol está praticamente desusado em boa parte da América hispânica. Nesta, usa-se quase sempre o pretérito perfeito simples: por exemplo, Estudié mucho (“Estudei muito”).

VIII) Hediondo, em espanhol, significa sobretudo ‘fétido, fedorento’; e secundariamente ‘insuportável’, ‘sujo’, ‘repugnante’, ‘obsceno’. Em português, significa sobretudo ‘repulsivo, pavoroso’ (crime hediondo); e secundariamente ‘sórdido, imundo’, ‘obsceno, depravado’. Não é desconhecido em português seu uso como ‘fétido, fedorento’; mas é muito raro.

IX) O borrar espanhol traduz-se em português por “apagar”, enquanto nosso “borrar” se traduz em espanhol por emborronar, ou por manchar (por exemplo, con tinta). Por sua vez, nosso adjetivo “borrado” com o sentido de ‘desfocado’ ou com o de ‘embaçado’ traduz-se em espanhol por borroso ou nublado e por empañado.

X) O verbo espanhol mofar não se traduz correntemente em português por “mofar”, mas por “escarnecer, zombar”; ao passo que o nosso “mofar” se traduz em espanhol por enmohecer. Há em português, sim, um “mofar” com o mesmo sentido do verbo espanhol, mas ao menos no Brasil é pouco usado.

Observação: em português, o “mofar” com o sentido de ‘encher de mofo’ e o “mofar” com o sentido de ‘zombar’ são falsos cognatos: o primeiro vem de mofo + ar, enquanto o segundo é de origem controversa.

XI) O substantivo espanhol aula traduz-se em português, sobretudo, por “sala de aula” ou por “aula” (por exemplo, a “aula conciliar”, ou seja, o lugar onde os bispos se reúnem em concílio).

Observação 1: o substantivo português “aula” também pode significar ‘sala de aula, classe’; mas é menos usado com este sentido. Usa-se muito mais com o sentido de 'lição ministrada por professor': como, por exemplo, em "João dá aulas de inglês".

Observação 2: o espanhol aula nunca tem o sentido de ‘lição ministrada por professor’. Para este sentido, a língua espanhola usa clase.

Observação 3: em português também se usa “classe” para ‘aula, lição ministrada por professor’: como, por exemplo, em “João dá classes de inglês”.

Observação 4: Aula (de ambas as línguas) vem do lat. aula, ae, ‘pátio, palácio’.