Carlos Nougué
Nota prévia. Se eu mesmo tiver dito em comentários de FB qualquer coisa que contradiga de qualquer modo o que direi aqui, seja anátema.
1) O oitavo Mandamento da Lei de Deus: “Não
levantarás falso testemunho”, proíbe-nos a atestação de falsidade em juízo, o
juízo temerário, a detração e a calúnia, a adulação, e todo tipo de mentira.
E diz o Catecismo Maior de São Pio X: “A mentira é um
pecado que consiste em afirmar como verdadeiro ou como falso, por meio de
palavras ou de ações, o que não se tem por tal”. É de três espécies a mentira: a
jocosa, a oficiosa e a prejudicial. A jocosa é a que se diz por gracejo e sem
prejuízo do próximo; a oficiosa, por sua vez, consiste na afirmação de uma falsidade
para benefício próprio ou de outrem, sem prejuízo do próximo; e a perniciosa ou
prejudicial, por fim, é a afirmação de uma falsidade com prejuízo do próximo. E
pergunta ainda o referido Catecismo: “É lícito
mentir alguma vez?”, e responde: “Nunca é lícito
mentir, nem por gracejo nem para proveito próprio ou alheio, porque é coisa má
em si mesma”. Quanto todavia à espécie de pecado, a jocosa e a oficiosa são
pecados veniais; a prejudicial, contudo, sobretudo se é grave o prejuízo que
causa ao próximo, é pecado mortal. – Naturalmente, não nos é necessário dizer
tudo quanto pensamos, sobretudo se quem no-lo pergunta não tem o direito de
saber o que pergunta.
Observação 1. A quem pecou por mentira prejudicial não
lhe basta confessar ao sacerdote o feito, senão que tem obrigação de
retratar-se de algum modo diante do próximo e reparar da melhor maneira
possível o dano que lhe causou.
Observação 2. Para que se trate de efetiva mentira, é
preciso que haja contradição entre o pensado e o dito. Desse modo, se alguém
pensa efetivamente e diz uma falsidade sobre algo real, esse não mente, apenas
se equivoca.
2) Santo
Agostinho definiu assim a mentira: “uma significação falsa unida à intenção de
enganar” (Contra mendacium, 26; PL 40, 537). Põe no entanto Santo Tomás que
a intenção de enganar (voluntas fallendi) pertence à perfeição mas não à essência da mentira (Summa,
II-II, q. 110, a.1): esta já se qualifica pela falsidade formal, ou seja, pela vontade
de dizer algo contrário ao que se pensa. Daí sua definição mais precisa: uma
locução contra a mente.
3)
A doutrina de Santo Agostinho e de Santo Tomás sobre a mentira é de todo
condizente com a mente da maioria tanto dos Padres como dos teólogos escolásticos.
Apenas uma minoria desses julgou não constituísse pecado a mentira nos casos em
que dizer a verdade pode implicar consequências graves para o próximo. Nesta
minoria se contam, por um lado, Clemente de Alexandria, Orígenes, São João
Crisóstomo, Santo Hilário e, por outro lado, Guilherme de Auxerre, Alexandre de
Hales e São Boaventura. – O magistério da Igreja, por sua parte, se nunca definiu
extraordinariamente a mentira e suas espécies, já o fez, sim, ordinariamente (e
os catecismos de São Pio X, o Maior, como vista acima, e o de 1912, são somente
dois de muitos exemplos), sempre segundo a mente ou de Santo Agostinho ou de
Santo Tomás. E, como todos sabemos ou deveríamos saber, o magistério ordinário
da Igreja – e ainda mais se se trata, como é o caso, de magistério ordinário
infalível por repetição de atos – deve ser acatado docilmente pelos católicos
(cf. Pio XII, Humani
generis, sobre a altíssima autoridade do magistério
mere autêntico:
“Não se deve pensar que o que se expõe nas encíclicas não exige de si
assentimento, pelo fato de nelas os Pontífices não exercerem o supremo poder de
seu magistério; dado que estas coisas são ensinadas pelo magistério ordinário, ao
qual também se aplica o ‘quem vos ouve, a Mim me ouve’”).
4)
O dito até aqui, contudo, não implica que a questão da mentira não seja árdua.
Com efeito, já dizia o mesmo Santo Agostinho que não só é assunto difícil mas amiúde
nos angustia (De mendacio I, 1; PL 40, 487). E foi essa mesma arduidade o
que deu ensejo ao teólogo protestante Hugo Grócio (1583-1645) para conceber a mentira
como rejeição da verdade devida, com o que a mentira deixa de
ser considerada má em si para sê-lo com respeito ao direito do próximo à
verdade. Se todavia mingua ou não se dá tal direito, a mentira passa a lícita.
Neste último caso, já não se teria mentira formalmente, tão só materialmente: é
o “falsilóquio”. Desse modo, assim como para Einstein o tempo com que se mede o
movimento depende sempre de um marco de referência relativo, assim também a qualificação
da mentira depende sempre de um direito subjetivo relativo. Esta doutrina foi
ganhando cada vez mais espaço entre os protestantes e os jurisconsultos e acabou
por granjear o assentimento de não poucos teólogos católicos. Pois bem, aceitar
o católico esta doutrina implica indocilidade não só à maioria dos Padres, não
só aos dois maiores doutores da Igreja (Santo Agostinho e Santo Tomás), não só
ao Doutor Comum da Igreja (Santo Tomás), mas ao próprio magistério da Igreja, a
quem devemos ouvir como se ouvíssemos a Cristo mesmo.
5)
Isto todavia ainda não soluciona o conflito real que sempre se pode dar entre o
reconhecimento da malícia intrínseca da mentira e os casos singulares em que dizer
a verdade traz ou pode trazer algum prejuízo para o próximo. Dêmos exemplos de
tais casos singulares. Por um lado, o filho viciado em drogas que pergunta ao
pai se ele tem dinheiro em casa; os soldados a mando de um tirano que perguntam
a alguém se está escondendo um padre foragido que ele de fato esconde; o de uma
criança de menos de 7 anos com câncer que pergunta aos pais se vai morrer. Por
outro lado, o responsável por uma sala de concertos que diante de um início de
incêndio dá ao público outro motivo para evacuar o lugar a fim de evitar tumulto;
o agente policial que se finge de bandido para infiltrar-se numa gangue de traficantes
e assim desbaratá-la; o governo que dá alguma informação falsa pelos meios de
comunicação como isca para capturar terroristas que ameaçam a vida dos
cidadãos, de uma cidade, do país. São casos potencialmente infinitos.
6)
Diante de tais casos, é que surgiu entre teólogos católicos a doutrina da “restrição
mental” ou “anfibolia”, que se divide em “restrição mental estrita” (restrictio stricte mentalis) e “restrição mental lata”
(restrictio late mentalis). Explica-o assim o P. Teodoro da Tôrre del Greco
O.F.M (Teologia Moral, São Paulo, Paulinas, 1959, p. 389-390): “Distingue-se
da mentira a restrição mental, que consiste em dar às palavras um
significado diverso do comum. // Há restrição mental, por exemplo, quando
alguém interrogado acerca de um fato responde: não sei, subentendendo, para
revelá-lo. (...) // A restrição mental pode ser tomada em sentido lato, ou
em sentido estrito. // É tomada em sentido lato (ou impropriamente
dita), quando o significado das palavras é facilmente perceptível, pelas
circunstâncias da pergunta, da resposta, do costume, ainda que não seja
apreendido; por exemplo, ‘não tenho o livro’, subentendendo, ‘para dar-te’. // É
tomada em sentido estrito (ou propriamente dita), quando o
significado das palavras não é de nenhum modo perceptível, por exemplo, se
perguntam a uma pessoa: ‘estiveste em Paris?’ – esta responde que 'sim',
subentendendo ter estado com o desejo”. E diz pouco mais ou menos o mesmo Antonio
Royo Marín O.P. (Teologia Moral para seglares, Madrid, Biblioteca
de Autores Cristianos, 1996, tomo I, p. 745-746). Pois bem, a “restrição mental estrita” foi
condenada como abuso por decreto de Inocêncio XI no ano de 1679. Muitos porém julgam
que a não condenação formal pela Igreja da “restrição mental lata” equivaleria
a uma autorização. Mas obviamente não é assim: a Igreja apenas não a desautorizou,
assim como não desautorizou a doutrina da predestinação de Santo Tomás nem a de
Luis de Molina. Por isso, assim como podemos criticar qualquer das duas referidas
doutrinas da predestinação (embora, como mostro alhures, a de Tomás esteja
fundada no próprio magistério), assim também podemos criticar e rejeitar a
doutrina da “restrição mental lata” – mais ainda: como creio, devemos fazê-lo.
7)
Com efeito, diz Del Greco que a “restrição mental” “é tomada em sentido
lato (ou impropriamente dita) quando o significado das palavras é
facilmente perceptível, pelas circunstâncias da pergunta, da resposta, do
costume, ainda que não seja apreendido; por exemplo, ‘não tenho o livro’,
subentendendo ‘para dar-te’”. Mas, se do dizer “não tenho o livro” é facilmente
perceptível o subtendido (“para dar-te”), então qual é a razão da restrição mental?
por que não dizer o que é facilmente perceptível? Ou seja, se o subentendido é
facilmente perceptível (razão por que só não será apreendido pelo auditor se
este tiver algum problema cognitivo), então não é necessário; se não o é, quer
dizer, se o subentendido não é facilmente perceptível ou não é perceptível de
modo algum, então a “restrição mental lata” se reduz à condenada “restrição
mental estrita” ou “propriamente dita”. Tertium non datur.
Observação: note-se, ademais, que
Del Greco (e pouco mais ou menos Royo Marín) distingue mentira de “restrição
mental”, ou seja, para ele a restrição mental não é mentira. Como terá sido
possível, contudo, que os Padres da Igreja, os teólogos escolásticos, incluindo
Santo Tomás, e o magistério da Igreja nunca tivessem atinado para tal
distinção?
8) Objetar-se-á, contudo: Cristo parece
ter-se valido de uma “restrição mental lata” ao dizer que “Quanto àquele dia e àquela
hora [da Parusia], ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o Pai”
(Mateus 24, 36; cf. também Marcos 13, 32), porque de fato é inconcebível que o
Filho não soubesse o mesmo que o Pai. Responda-se, antes de tudo, dizendo com
São Jerônimo que “em alguns códigos latinos se tem acrescentado ‘nem o Filho’,
enquanto nos exemplares gregos, especialmente os de Adamâncio e de Piério, não
se encontra isso acrescentado. Mas, uma vez que isto se lê em alguns deles,
parece-me algo que discutir” (apud Santo Tomás de Aquino, Catena
aurea, Evangelho de São Mateus,
lectio XI, v. 36). É o que faz Santo Tomás no Compêndio de Teologia, (l.
I, cap. 242): “A causa do fim do mundo é a vontade de Deus, que nos é desconhecida.
Por isso tampouco o fim do mundo pode ser previsto por nenhuma criatura, mas
apenas por Deus, segundo aquilo de Mateus (24, 36): ‘Quanto porém àquele dia e
àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas só o Pai’. Porque todavia
em Marcos se lê ‘nem o Filho’, alguns [por exemplo, Ário] fizeram disso matéria
de erro, dizendo que o Filho é menor que o Pai, porque ignora o que o Pai sabe.
Mas pode evitar-se isto dizendo [com São Basílio Magno] que o Filho ignora tais
coisas segundo a natureza humana assumida, não porém segundo a divina, segundo
a qual tem uma única sabedoria com o Pai, ou, para dizê-lo mais claramente, é a
mesma sabedoria concebida no coração. Mas [agora contra São Basílio Magno,
Rábano Mauro, a Glosa, et alii] também pareceria inconveniente que o
Filho ignorasse o juízo divino segundo a natureza humana, uma vez que sua alma,
pelo testemunho do Evangelista [João 1, 14], é cheia da graça e da verdade de
Deus, como se disse acima. Tampouco pareceria ter razão que Cristo, como aceitasse
o poder de julgar porque é Filho do homem, ignorasse o tempo de seu juízo
segundo a natureza humana. Com efeito, o Pai não lhe teria dado todo o juízo se
lhe fosse subtraído o juízo que determina o tempo de seu advento. Por
conseguinte, deve entender-se isto segundo um modo de falar costumeiro nas
Escrituras, segundo o qual se diz que Deus então conheceu uma coisa quando deu
notícia dela, tal como disse a Abraão [o que se lê] no Gênesis (22, 12): ‘Agora
conheci que temes ao Senhor’: não que o que conhece todas as coisas desde a
eternidade começasse [então] a saber, mas porque mostrou a devoção [de Abraão]
por aquele fato. Assim também se diz, portanto, que o Filho ignora o dia do juízo,
porque não deu notícia aos discípulos, senão que lhes respondeu: ‘Não vos
pertence saber os tempos nem os momentos que o Pai reservou para seu poder’.
Mas o Pai não ignora deste modo, porque ao menos pela geração eterna deu notícia
disto ao Filho. Alguns porém se desembaraçam mais brevemente [quanto a isto] dizendo
que isso deve entender-se do filho adotivo. Por isso, porém, quis o Senhor que
o tempo do juízo futuro fosse oculto, para que os homens vigilassem
solicitamente e não se achassem acaso despreparados no tempo do juízo, porque
também quis que o tempo da morte de cada um fosse desconhecido. Com efeito,
cada um aparecerá no juízo tal qual partiu daqui pela morte: por isso o Senhor
disse [o que se lê] em Mateus (24, 42): ‘Vigiai, porque não sabeis a que hora
virá o vosso Senhor’”.
9) Permanecemos pois com o conflito humano
entre o reconhecimento da malícia intrínseca da mentira e o fato de que alguma
verdade dita pode ser prejudicial ou perniciosa ao próximo. Trata-se porém de
conflito humano consequente do pecado original, porque, com efeito, no
estado de justiça original não se daria. Diante pois desse conflito, desse
dilema, o primeiro a que havemos de recorrer é o silêncio. Se todavia sabemos
que permanecerá o problema apesar do silêncio, havemos de recorrer ao dito por
Santo Tomás citando a Santo Agostinho, o mesmo Santo Tomás que sustenta que não
é lícito mentir nem sequer para afastar o próximo de algum perigo: “é lícito esconder prudentemente a verdade com
alguma escusa” (Summa, II-II, q. 110, a.
3, ad 4). Este como preceito parece vago, mas na maioria dos casos um homem
vivido e prudente saberá aplicá-lo perfeitamente segundo o exijam as circunstâncias.
Não obstante, nem todos os homens são vividos e/ou prudentes, afora o fato de
que mesmo para os vividos e prudentes este recurso nem sempre evitará o dano ao
próximo. Encontramo-nos assim, neste caso, num
beco sem saída? De certo modo sim, em consequência, repita-se, do pecado original.
Neste caso, portanto, sem negar nunca que a mentira é intrinsecamente má, há que
esperar o socorro da graça e da luz do Espírito. Devo cometer pecado venial e com isso livrar alguém de algum dano mais ou menos grave? Como quer que seja,
lembra-me aqui o final daquele que para mim é o mais belo romance de Agatha Christie, seu último: Cai o
Pano (Curtain: Poirot’s Last Case). O detetive belga Hercule Poirot está à beira
da morte, razão por que não tem tempo para esperar que a polícia detenha um
assassino que certamente, se nada for feito, matará outras pessoas. Mas só a
lei pode prender e matar um homem. Pensa porém Poirot (parafraseio-o contando
com a memória): Aqui, nestas circunstâncias, eu sou a lei. Vou eu mesmo matá-lo
[envenenando-o, salvo engano], e ponho-me docilmente desde já sob o juízo de
Deus que logo enfrentarei. Mata-o. Cai o pano.