Carlos
Nougué
Dizem
alguns: Pode, sim, porque Pio XI afirma em sua Encíclica Non abbiamo bisogno
que, “por
tudo o que acabamos de dizer, Nós não pretendemos condenar o partido e o regime
[fascistas, de Mussolini] como tais” (n. 31).
Mas
o católico não pode fazê-lo, pelas seguintes e múltiplas razões.
• Antes de tudo, os que se
fundam nesta frase de Pio XI para afirmar a licitude de apoiar o fascismo agem,
como os modernistas, qual “pescadores de águas turvas”: buscam fazer de uma
frase uma pérola perdida, sem dar-se ao trabalho de considerar nada mais,
porque, se o fizessem, acabariam por exibir sua sem-razão. Mas façamo-lo por
eles.
•
Comecemos por entender a referida frase da Non abbiamo bisogno. O que é “tudo o que
acabamos de dizer”? Para sabê-lo perfeitamente, há que remontar no tempo, e
lembrar que a Santa Sé havia assinado com Mussolini a Concordata de Latrão. As concordatas,
salvo em casos excepcionais (como o foi a da Espanha de Franco e como o seria a
de Portugal de Salazar), já desde Napoleão eram recursos de que a Igreja
lançava mão enquanto cidadela sitiada. Com o fim da Cristandade, na qual os
estados e as nações não só se ordenavam essencialmente ao poder espiritual mas
eram, eles mesmos, a título de pessoas jurídicas ou morais, membros da Igreja;
com o fim da Cristandade, digo, e com o avanço da revolução liberal e comunista,
as concordatas eram para a Igreja um recurso de sobrevivência, assim como uma
nação derrotada numa guerra cede ao vencedor uma parcela de seu território para
sobreviver autonomamente. Dado todavia o rumo dos acontecimentos, ou seja, a perseguição
policialesca do regime fascista na Itália à Ação Católica e a todas as demais
organizações católicas, já no início de Non abbiamo bisogno escreve Pio
XI, como que em sinal de certo arrependimento: “Se se quer falar de ingratidão, foi e segue
sendo para com a Santa Sé a obra de um regime que a juízo do mundo inteiro tirou
de suas relações amistosas com a Santa Sé, na nação [italiana] e fora dela, um
aumento de prestígio e de crédito, [e com respeito ao qual regime] a muitos na
Itália e no estrangeiro pareceu excessivo o favor e a confiança [que lhe foram dados]
de Nossa parte” (n. 9); até porque, diz com um travo amargo mais adiante, “não
obstante os juízos, as previsões e sugestões que de diversas partes e muito
dignas de consideração nos chegavam a Nós, sempre Nos abstivemos de chegar a
condenações formais e explícitas; até chegamos a crer possível e a favorecer de
Nossa parte compatibilidades e cooperações que a outros pareceram inadmissíveis”
(n. 28). Ademais, como Pastor e Pai, preocupava-se Pio XI com a sorte dos católicos
que estavam vinculados ao partido fascista. Com efeito, escreve ele na mesma encíclica:
“Conhecendo as múltiplas dificuldades da hora presente e sabendo que a inscrição
no partido [fascista] e o juramento [de lealdade acima de tudo ao partido, ao
regime e a Mussolini] são para grande número a condição mesma de sua carreira,
de seu pão e de seu sustento, Nós buscamos um meio que desse paz às consciências,
reduzindo ao mínimo possível as dificuldades exteriores. [Este] meio, para os
que já estão inscritos no partido, poderia ser fazer diante de Deus e de sua própria
consciência esta reserva: Salvo as leis de Deus e da Igreja, ou ainda: Salvo os
deveres do bom cristão, com o firme propósito de declarar exteriormente esta
reserva se a necessidade se apresentasse. Quiséramos, ademais, fazer chegar Nosso
rogo ao lugar de onde partem as disposições e as ordens, rogo de um Pai que quer
cuidar das consciências de tão grande número de filhos seus em Jesus Cristo, a
fim de que esta reserva fosse introduzida na fórmula do juramento, a não ser [atenção] que se faça coisa ainda melhor,
muito melhor, ou seja, que se omita o juramento, que é sempre um ato de religião
e que não está certamente em seu lugar na ficha de inscrição de um partido” (n.
30). Ou seja, pode discutir-se se a Santa Sé deveria ou não ter assinado a Concordata
de Latrão com
Mussolini. Mas não se deve perder de vista a referida situação de cidadela sitiada
em que se encontrava a Igreja, nem que, mesmo depois de Mussolini, seu partido
e seu regime mostrarem suas garras e sua verdadeira feição anticatólica, ainda
restava a Pio XI a preocupação com os muitos católicos inscritos no partido
fascista e com as mesmas Ação Católica, Juventudes Católicas, etc. Certamente,
na mesma Non abbiamo bisogno Pio XI ainda acalentava certa miúda
esperança de poder atenuar a perseguição policialesca aos católicos na Itália e
a dissolução de todas as suas organizações. Por isso, o Papa ainda não julgava o
momento oportuno para uma condenação formal do fascismo, ao contrário do que faria
com o comunismo seis anos depois: com efeito, quanto a este não poderia
acalentar-se nenhuma esperança, por mínima que fosse. Erro político de Pio XI
quanto ao fascismo? Suspendo o juízo, mas afirmando: ainda que se tivesse
tratado de erro, isso nem minimamente abalaria a impossibilidade de o magistério
autêntico errar segundo o definido pelo Vaticano I e por Pio XII. É que a
assistência do Espírito Santo é dada ao Papa quanto aos costumes, à fé e a assuntos
conexos, mas não necessariamente em atos estritamente práticos, nos quais
sempre a Igreja e seus Doutores admitiram a possibilidade de que ela incorresse
em equívocos.
• Se no entanto Pio XI,
pelas razões aduzidas, não se sentia seguro de condenar formalmente então o fascismo,
o fato é que ele o faz, na mesma encíclica, mais que indiretamente: quase diretamente.
Entreguemos-lhe outra vez a palavra, e ver-se-á que quase nada mais haverá que
acrescentar para mostrar o desatino dos atuais defensores católicos do fascismo:
“Eis-nos aqui diante de um
conjunto de autênticas afirmações e de fatos não menos autênticos que põem fora
de dúvida o propósito, já executado em grande parte, de monopolizar inteiramente
a juventude desde a primeira infância até a idade viril para a plena e
exclusiva vantagem de um partido, de um regime, sobre a base de uma ideologia
que explicitamente se resolve [atenção]
numa verdadeira estatolatria pagã, em aberta contradição tanto com os direitos
naturais da família como com os direitos sobrenaturais da Igreja. Propor-se e
promover semelhante monopólio; perseguir como se veio fazendo, com esta intenção,
de maneira mais ou menos dissimulada, a Ação Católica; desfazer com este fim,
como se fez recentemente, as Associações de Juventude equivale ao pé da letra a
impedir que a juventude vá para Jesus Cristo, dado que isso é impedir-lhe que vá
para a Igreja, e ali onde está a Igreja está Cristo. E chegou-se ao extremo de
arrancar violentamente esta juventude do seio de uma e de Outro” (n. 23); “O
divino mandato universal que a Igreja recebeu do mesmo Jesus Cristo de maneira
incomunicável e exclusiva estende-se ao eterno, ao celestial, ao sobrenatural,
ordem de coisas que por um lado é estreitamente obrigatória para toda criatura
racional e a que por outro lado, por sua essência, devem subordinar-se e coordenar-se
todas as demais ordens” (n. 24), com o que Pio XI não faz senão relembrar a
doutrina infalível, explicitada
magnificamente em sua Quas primas (de 1925), segundo a qual todo o
humano – família, artes, ciências, economia, política, estado, leis, etc. – deve
ordenar-se essencialmente à Igreja e a Cristo Rei; “Uma concepção que faz
pertencer ao Estado as gerações juvenis inteiramente e sem exceção, desde a idade
primeira até a idade adulta, [atenção]
é inconciliável para um católico com a verdadeira doutrina católica; e não é
menos inconciliável com o direito natural da família; para um católico é
inconciliável com a doutrina católica o pretender que a Igreja, o Papa devam limitar-se
às práticas exteriores da religião (a Missa e os Sacramentos) e todo o restante
da educação pertença ao Estado...” (n. 27); etc.
• Depois disso, com efeito, quase
nada mais há que acrescentar para mostrar a incompatibilidade entre catolicismo
e fascismo. O que há que acrescentar aqui, porém, é breve, e diz respeito a
algo que passa longe da mente dos que irresponsavelmente querem fazer penetrar
o fascismo entre os católicos: a analogia da fé, segundo a qual há que haver coerência e harmonia interna entre os todos os dogmas ou definições de fé. Com isso, assim como as passagens
mais obscuras da Escritura devem entender-se pelas mais claras e em consonância
com elas, assim também, mutatis mutandis, se dá com o magistério, razão
por que encíclicas como a Non abbiamo bisogno, escrita sob pressão de
acontecimentos aflitivos, devem entender-se segundo a clareza de documentos da
Igreja escritos sobre o mesmo assunto mas sem tal pressão. Pois bem, pelo
menos a Epístola Duo sunt,
de São Gelásio I; o “Documento de excomunhão e de deposição de Henrique IV”, de São Gregório
VII; a Encíclica Sicut
universitatis, de Inocêncio III; a Bula Unam Sanctam, de Bonifácio
VIII; a Constituição Licet
iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João de Jandun sobre a
constituição da Igreja), de João XXII; a Encíclica Etsi multa luctuosa, a
Encíclica Quanta cura e o Syllabus, de Pio IX; a Encíclica
Immortale Dei e a Encíclica Rerum
novarum, de Leão XIII; a Encíclica Vehementer Nos, a Encíclica Communium rerum,
a Encíclica Jucunda sane, a Encíclica Pascendi, a Encíclica E supremi apostolatus,
a Encíclica Il fermo proposito, a “Carta
sobre a ação social” (janeiro de 1907), a Encíclica Ad diem illum, a Alocução Gravissimum
e a Encíclica Notre charge apostolique, de São Pio X; a
Encíclica Ubi arcano, a Encíclica Quas primas (a carta
magna da Cristandade), a Encíclica Divini illius magistri, a Encíclica Quadragesimo
anno e a Encíclica Firmissimam
constantiam, de Pio XI; e a Encíclica Summi Pontificatus, a Encíclica Benignitas
et humanitas, o “Discurso aos
juristas católicos italianos” (1953) e a Exortação Apostólica Menti
Nostrae, de Pio XII; pelo menos estes documentos definem, cada um por si ou em conjunto,
e de modo infalível, aquilo que podemos traduzir pelas seguintes palavras: Ou
as nações se põem sob o estandarte de Cristo Rei; ou inevitavelmente se tornam
carniça para os demônios, como, com efeito, se deu com a Itália sob o fascismo.