Carlos Nougué
• A expressão “tradicionalismo
crítico” é do P. Calderón, que aprofunda seu sentido sobretudo na segunda edição
de seu A Candeia Debaixo do Alqueire. Crendo embora que não vou contra o
que diz com esta expressão o sacerdote argentino, o fato é que a uso algo
livremente e mais extensamente: “tradicionalismo crítico”, defino-o, é aquele
que em nome da tradição se considera capaz e no direito de julgar de algum modo o magistério
autêntico da Igreja.
• De modo algum me move aqui nenhuma animosidade contra os tradicionalistas críticos de que falarei. Muito pelo contrário: sobretudo neste momento em que os católicos tradicionais devem cerrar fileiras contra o inaudito ataque de Francisco à missa de sempre, move-me tão somente o desejo de alertá-los, porque, com efeito, como buscarei mostrar aqui, ao fim e ao cabo o tradicionalismo crítico acaba por convergir com o neomodernismo vitorioso no CVII. Lembremo-nos de que este, sob capa de certa hermenêutica da continuidade, não faz senão julgar e negar o magistério autêntico da Igreja.
* * *
I) Magistério autêntico da Igreja é aquele
em que o Papa sozinho ou em comunhão com os bispos fala “em pessoa de Cristo”,
o que lhe é suficiente para alcançar em algum grau a assistência do Espírito
Santo e, portanto, para tornar sua declaração ou provável, ou certa, ou infalível
(para aprofundá-lo, leia-se meu livro Do Papa Herético ou faça-se meu
curso online gratuito “A Atual Crise na Igreja”). Recorde-se o dito por
Pio XII na Humani generis (DS 3885): “Não se
deve pensar que o que se expõe nas encíclicas não exige de si assentimento,
pelo fato de nelas os Pontífices não exercerem o supremo poder de seu
magistério [o da infalibilidade]; dado que estas coisas são ensinadas pelo
magistério ordinário, ao qual também se aplica o ‘quem vos ouve, a Mim me ouve’”.
Em outras palavras, o católico deve dócil anuência e acatamento ao magistério
autêntico da Igreja, em qualquer grau em que se manifeste. Mas isso é assim
porque o que diz o magistério autêntico da Igreja, assistido sempre em algum
grau pelo Espírito Santo, são coisas que estão fora do alcance de nossa mera
razão. São coisas de algum modo atinentes à fé. Por isso é grande equívoco, e
já uma primeira manifestação do tradicionalismo crítico, pensar que se pode
usar com respeito a este magistério “o precioso dom da inteligência que nos foi dado por Deus”. Só se pode usar contra o
magistério este dom, e ainda assim enquanto ordenado à virtude infusa da fé, se
tal magistério não for autêntico.
II) Explique-se
(mas mais uma vez remeto, para aprofundamento, a meu livro e a meu curso;
neles, como aqui, insista-se, embora siga em geral a doutrina do P. Calderón, expresso-a
de maneira própria, que não sei se satisfaria o mesmo Padre). O magistério do Papa
pode ser, além de autêntico, privado, quando o Papa fala justamente como doutor
privado, em “pessoa própria”, e não “em pessoa de Cristo”. Com o CVII, no
entanto, surgiu uma nova modalidade de magistério, chamada “conciliar” (ainda
que também englobe o pós-conciliar): nesta modalidade de magistério, já tampouco
se fala “em pessoa de Cristo”, mas “em pessoa do Povo de Deus” (como o diz
fartamente ele mesmo, o magistério conciliar), em ordem a destronar a Cristo na
sociedade e na Igreja e dar lugar a uma religião humanista e demoliberal. Daí, muito
por exemplo, a missa com o sacerdote voltado para a assembleia e a substituição
de seu caráter sacrifical, satisfatório e propiciatório por um caráter memorial
e convivial. – Mas tal magistério “em pessoa do Povo de Deus” se reduz, de
certo modo, a magistério privado, razão por que, como este, não é assistido
pelo Espírito Santo. Ora, o que não é assistido em nenhum grau pelo Espírito Santo
é sujeito a erro e pois a desvio da fé, pelo que se pode usar com respeito a este
magistério “o precioso dom da
inteligência [ordenado à fé] que nos foi dado por Deus”. Com efeito, nem o magistério privado em sentido
estrito nem o magistério demoliberal exigem do católico dócil anuência e
acatamento (ainda que, dependendo do caso, possa convir maior ou menor
reverência).
III) Não é difícil, a partir de todo o dito, entender que o
magistério autêntico da Igreja é a regra próxima da fé, enquanto a Escritura e
a tradição são sua regra remota. Em outras palavras, não só o magistério
autêntico da Igreja é quem determina a interpretação correta da Escritura e o
que é verdadeiramente tradicional ou não, senão que está de certo modo acima da
mesma fé e da mesma tradição, porque o que regra é de certo modo superior ao
que por ele é regrado. Se pois se entende perfeitamente isto, ver-se-á o
absurdo da doutrina tradicionalista crítica extrema que Roberto de Mattei
sustenta em seu livro Apologia da Tradição. Leiam-se passagens suas, a
que responderei uma a uma.
a) “A afirmação segundo a qual o Magistério da Igreja constitui ‘regula
fidei [regra da fé]’, e, por conseguinte, um lugar teológico, não é em si
mesma errônea, se ele for entendido como o poder exercido pela Igreja docente,
em continuidade com a Tradição, de que a própria Igreja é a guardiã. Mas os que
repetem que o Magistério é a suprema ‘regula fidei’, porque ‘interpreta’
a Tradição, evitam enfrentar o problema colocado pela existência de eventuais
conflitos, reais ou aparentes, entre a Tradição e a pregação eclesiástica ‘atual’,
ou Magistério ‘vivo’.”
RESPOSTA. Por partes.
• Isto de “lugar teológico”, se se trata da doutrina de Cano,
requer alguma revisão crítica. Mas deixo-o aqui de lado.
• Quem repete que o magistério da Igreja é a suprema regula fidei não são uns
teólogos por aí, mas o mesmo magistério da Igreja – e o faz de modo infalível,
por exemplo, no Concílio de Trento e no Concílio Vaticano I. E isto se funda na
própria instituição de Pedro como a rocha sobre a qual Cristo fundou sua
Igreja. Ao fazê-lo, outorgou ipso facto a Pedro e seus sucessores o carisma
da infalível verdade, fundado na prometida e indefectível assistência do
Espírito Santo – se e quando Pedro falasse “em pessoa de Cristo” (assim como, mutatis
mutandis, o sacerdote tem o carisma de consagrar o pão e o vinho – mas só o
atualiza se o quiser fazer). Logo, negá-lo como o faz De Mattei ao menos tangencia
o herético. – Ademais, veja-se a falta que faz a devida compreensão do caráter
do magistério: De Mattei vê possíveis conflitos entre magistério autêntico e
magistério autêntico, o que, se se desse de fato, faria falaz a promessa de
Cristo a Pedro... O que há, e que De Mattei não sabe expressar, são conflitos
entre o magistério autêntico da Igreja e o magistério conciliar ou “em pessoa
do Povo de Deus” (ou então entre o magistério autêntico e algum magistério privado
em sentido estrito: foi o que três concílios creram ter-se dado no caso do Papa
Honório I, coisa todavia que ainda merece discussão e aprofundamento).
Observação: em outra altura de seu livro, De Mattei brande um suposto conflito
entre o Concílio de Constança e Pio XII. Mas a resposta a este argumento dá-a o
P. Calderón na Candeia... (e repito-a em Do Papa Herético).
• “Em ordem decrescente de importância”, escreve ainda De Mattei, “primeiro vem a Tradição, depois a Igreja e, em seguida, o Magistério, que é um poder que a Igreja exerce para perpetuar a Tradição.”
RESPOSTA. Esta “pérola” ecoa, pura e simplesmente, duas
heresias. Primeira, a dos que negam a infalibilidade do Papa. Segunda, de certo
modo a do mesmo CVII, segundo o qual o Espírito Santo dota de infalibilidade
antes de tudo o conjunto da Igreja, razão por que o magistério fala agora “em
pessoa do Povo de Deus”. Com isso se invertem o caráter docente do magistério e
o caráter discente do “povo de Deus”, e se vai contra a autoridade infalível
de Trento e do Vaticano I, e de Gelásio
I, Inocêncio III, Gregório Magno, Bonifácio VIII, João XXII, Paulo IV,
Leão XIII, Pio X, Pio XI, Pio XII – além de ir
contra os principais doutores da Igreja, em especial o Doutor Comum (= Geral),
Santo Tomás de Aquino. – Perdoa de certo modo a De Mattei o fato de ele, como o
diz ele mesmo, ser antes historiador que teólogo. Mas então não deveria “dar palpite”
em Teologia.
• Por fim (embora pudesse estender-me muito), comete De Mattei
algo que nem sequer um historiador pode cometer: um sofisma, uma falácia. Com
efeito, o nosso italiano diz pouco mais ou menos em certa altura de seu livro
(cito-o de memória) que o próprio termo “magistério (da Igreja)” só começou a
usar-se no século XIX, ou seja, em torno do Concílio Vaticano I. Antes de tudo,
porém, esquece De Mattei que o magistério autêntico, especialmente quando
infalível, pode perfeitamente criar termos novos, até porque está assistido
pelo Espírito Santo. Mas, depois, eis a falácia: uma doutrina não é válida quando
se expressa em termos novos, não tradicionais... É como se não importasse se a
doutrina já existisse ou não sob outros termos. E no entanto o que o Vaticano I
chamou com toda a propriedade “magistério” é o que haviam dito, sem nomeá-lo
assim, Trento, e Gelásio I, Inocêncio III, Gregório
Magno, Bonifácio VIII, João XXII, Paulo IV, e Santo Agostinho, Santo
Tomás, Santo Inácio, São Belarmino, S. Afonso... Na famosa frase “Eu não creria
no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja Católica” (Contra
epistulam Manichaei quam vocant fundamenti, 5, 6 [PL 42, 176]), Santo Agostinho
chama “Igreja Católica” ao que hoje chamamos “magistério da Igreja” – e nem de
passagem se refere à tradição.
IV) Ademais, de modo semelhante a De Mattei, ainda que não tão radicalmente como ele, criticam alguns padres tradicionalistas encíclicas como Providentissimus Deus, de Leão XIII, e Humani generis e Divino afflante Spiritu, de Pio XII, porque, segundo eles, favorecem a exegese modernista da Escritura. Mas isto implica, ainda, o considerar-se capaz e no direito de julgar um magistério assistido pelo Espírito Santo. Que tais encíclicas contenham alguma expressão de que puderam valer-se os modernistas, isso se pode discutir. Mas negar a certeza assistida destes documentos tangencia o blasfematório. (Aliás, o próprio P. Calderón, no referido livro, critica um confrade seu de FSSPX justamente por certo tradicionalismo crítico. Mas parece que, graças a Deus, se entenderam.)
Conclusão: espero ter conseguido
deixar clara a intenção deste escrito: mostrar ao conjunto dos tradicionalistas
que eu posso alcançar e que (o que já é muito mais difícil...) me queiram ler
os grandes perigos do tradicionalismo crítico, no qual muitas vezes incorremos sem
ter perfeita ciência disso. De nada serve criticar o magistério conciliar se caímos
em seu mesmo erro fundamental: o descrédito do magistério autêntico da Igreja
enquanto assistido em algum grau pelo Espírito Santo. Certo é que o próprio nome
“tradicionalismo” pode levar ao equívoco de antepor a tradição ao magistério; e
até pode considerar-se que o mesmo movimento tradicionalista criado no bojo
do CVII e em reação a ele já partiu desta premissa falsa em muitas de suas mentes
(mas não assim na de D. Lefebvre, como o mostra muito claramente o P. Calderón
no final de seu livro). Se contudo estamos devidamente cientes da premissa
verdadeira, não há razão para temer o nome, que já é, ele mesmo, tradicional. Podemos
combater perfeitamente a religião do homem instalada na Igreja pelo CVII sem
cair em indocilidade com respeito ao magistério autêntico da Igreja, sem o qual
não haveria razão para crer não só na Escritura, mas na própria tradição.