Carlos Nougué
Fortemente gripado e ainda meio tonto pelos fortes remédios que tomo regularmente (embora também possa ser efeito de ter tomado a vacina contra a covid e da idiotizante marca da Besta que esta imprimiu em mim...), acordei porém muito contente porque antes de ir dormir eu resolvera enfim uma arduíssima questão teológica referente a um dos livros que estou escrevendo (o que eu terminar primeiro sairá primeiro). Como porém alegria de tomista dura pouco, logo me mandaram dois textos, um dos quais funcionou como uma ducha fria que me aumentou a gripe... Mas também é verdade que ambos os textos, junto a um terceiro que me fora enviado antes, é que me deram ânimo para começar a escrever de fato esta prometida e entristecida série. São os seguintes.
1) Uma simpática e educada seguidora minha
de FB enviou-me a seguinte questão (transcrevo-a in extenso): “Professor, perdoe-me a ignorância. Sou leiga em todos os
assuntos. Hoje, mais cedo, li um texto no Facebook e fiquei um pouco confusa —
pois me pareceu fazer um pouco de sentido. Não que eu tenha grandes capacidades
para entender sobre o assunto, pelo contrário. Já adianto que não quero tomar
seu tempo, querido professor, por isso o senhor pode me responder quando der, e
aproveito para agradecer desde já! ‘Aborto: Liberal: Depende, é útil?
Socialista: Ela quer abortar? Conservador: De modo algum o aborto deve ser
consumado. Drogas: Liberal: Depende, vou ganhar dinheiro com isso? Socialista: Ele
quer se drogar? Conservador: Uso de drogas é escravidão química. Prostituição:
Liberal: Depende, vão gerar dinheiro? Socialista: Ela quer se prostituir?
Conservador: O corpo não é mercadoria. Moral da história: o Liberal não se
importa com as pessoas, se importa com o que gera dinheiro (utilitarismo); o
socialista não se importa com as pessoas, se importa com a destruição social
(relativismo); o conservador, por sua vez, não se importa consigo mesmo porque
vê uma pessoa como seu semelhante (moralismo). Resumindo: não existe conservador liberal!’ Este é o
texto. Sempre vejo em suas publicações o termo ‘liberal-conservador’, e
acredito que isso exista, pois sempre acompanho seus escritos aqui no Facebook.
Mas gostaria de compreender um pouco melhor sobre isso, sobre o porquê de o
conservadorismo ser tão maléfico, como pode ele ter relação com o liberalismo
etc. Se o senhor puder me indicar aulas, ou até mesmo alguém que trate do
assunto em livros ou vídeos… Eu estou um pouco perdida, porque o termo ‘conservador’,
para mim, nunca designou algo ruim (não que eu tenha tido grandes estudos sobre
o assunto, apenas assistia a alguns vídeos do Olavo, bem como lia alguma coisa
ou outra dos conservadores do meu Facebook…), mas lendo seus textos eu gostaria
de entender um pouco melhor. Enfim, estou perdida e não sei por onde começar a
tentar entender o assunto”. Prometi-lhe escrever o que farei nesta primeira parte
da série.
2) Escreveu OdC com toda a sua brilhante potência
retórica (falo sério, conquanto sua retórica não o seja em sentido estrito,
porque a retórica em sentido estrito se ordena a fazer suspeitar a verdade...):
“Intelectuais católicos de boa cepa tomista [uau!] sempre existiram no Brasil. Por que não conseguiram abalar – nem aliás
arranhar – a hegemonia cultural comunista?” A isto respondeu um dos mais
sectários, estreitos e estritos de seus sequazes: “Foi porque nunca entenderam
a extensão do projeto cultural comunista? [creio que este sinal de interrogação
está mal posto...]. Em outras palavras, nunca incorporaram esse projeto na sua
própria visão de mundo [mas afinal se deve combater ou incorporar o projeto
cultural comunista?...] e portanto, estavam sempre sendo pegos de surpresa
[isso é o que chamo escrever bem e claramente... OdC poderia dar-lhe umas
lições de boa escrita, não?]”. A resposta a toda esta grosseira falácia constituirá
a segunda parte da série.
3) Agora, a ducha fria. Leio em um dos
principais veículos dos tradicionalistas o seguinte artigo de um sacerdote: “O universo
covídico”, um primor de liberal-conservadorismo em que se reproduz o pensamento de dois catedráticos de filosofia com estranho parentesco intelectual com OdC e Steve Bannon. Esta é uma das
numerosas razões do entristecido título desta série, e a resposta a este e
outros artigos e vídeos da tradição católica ocupará a nossa terceira e última
parte.
Observação: não quero dar o nome dos
autores de tais artigos e vídeos, nem dizer a que grupos tradicionalistas
pertencem. Se porém lançarem sobre mim o ônus da prova, tê-lo-ei (oh! desculpe-me,
OdC, o ferir seu fino melindre e sensibilidade com respeito às mesóclises...),
tê-lo-ei, digo, de fazer; e tenha-se certeza de que tenho tudo devidamente
arquivado. E, se não o quero fazer, é porque me converti à Igreja na
tradição católica, vivi nela grande parte de minha vida católica, e, embora
hoje já não pertença a nenhum dos grupos seus, continuo a defender (privada e
publicamente) seu pleno e necessário direito de existência, a crer-me completamente
tradicional e a admirar e divulgar D. Marcel Lefebvre. Por que não digo, então, que meu objetivo é fazer que os mesmos tradicionalistas se apercebam de sua deriva e retornem ao verdadeiramente tradicional? É que não quero nem de longe dar a parecer aos outros e a mim mesmo que julgo ter tal poder de influenciá-los. Sei perfeitamente que não o tenho, formiga ínfima que sou. Mas tampouco devo calar-me, justo porque se trata de defender a fé – e na defesa da fé, como diria S. Tomás, o leigo tem dignidade de certo modo igual à dos eclesiásticos.
PRIMEIRA PARTE
a) O liberalismo é a ideologia da primeira
revolução política anticristã. Explico-me. Não é a primeira ideologia anticristã,
ou seja, anticristandade, antissubordinação essencial das nações à direção
espiritual da Igreja. Da primeira podemos considerar fundador, no século XIV, o
poeta Dante, o qual deu continuidade à heresia de Joaquim de Fiore e deu formulação
filosófico-teológica (herética) às aspirações dos franciscanos espirituais, dos
cátaros, dos gibelinos e dos guelfos brancos, dos reis com ambições
absolutistas, da burguesia ávida da mesma usura e dos mesmos preços injustos
interditados pela Igreja. Mas a primeira revolução política anticristã em
sentido estrito foi a Revolução Francesa, mediante a qual a burguesia se desfez
de seu incômodo e oneroso aliado, a monarquia absolutista, e de tudo o
que restava de vínculo entre o trono e o altar; e desta revolução é que
o liberalismo foi ideologia. Como porém disse Pio XI, o mesmo liberalismo seria
a raiz de toda e qualquer outra revolução, seja a comunista, seja a
nazifascista, seja – digo-o eu – a marcusiana ou sadolibertina, uma síntese extrema
de todas as demais e diretamente conducente ao Anticristo.
b) O que caracteriza o liberalismo? Antes
de tudo, o “non serviam” diabólico, o não servirei a Deus e, qual novo
Prometeu, entregarei aos homens o “fogo dos deuses”. Em lugar dos direitos de
Deus, os direitos do homem, e, em lugar da tripla virtude teologal – fé,
esperança e caridade –, a tripla “virtude” maçônica: liberdade, igualdade e
fraternidade. É a religião do homem em uma configuração sua mais acabada (mas
só verdadeiramente acabada, por um lado, com a ideologia sado-libertina e, por
outro, com o neomodernismo “católico” vitorioso na segunda metade do século XX,
cujo fruto mais maduro é a atual Igreja alemã).
c) Traduzindo porém tudo isto em termos
mais claros, temos a democracia liberal – este indigesto teatrinho em que os
corpos orgânicos da sociedade são reduzidos a nada e uma multidão amorfa de indivíduos
se crê a voz de Deus e dona dos destinos das nações, quando em verdade não
passa de multidão de bonecos de ventríloquo de uma plutocracia, de uma partidocracia
e de uma midiocracia –, e temos sua irmã xifópaga, a economia liberal ou de
livre mercado, em que tudo é permitido em nome da sacrossanta avareza: destruição
das corporações de ofício, sufocamento das pequenas empresas, franca liberdade
para a indústria pornográfica e discreta liberdade (cada vez menos discreta) para
a indústria das drogas.
d) Mas junto ao liberalismo puro e simples surgiu, já durante a Revolução Francesa, o que chamo liberalismo-conservador, ou seja, a direita liberal. É a esta direita – ainda que atualmente em combinação mais ou menos consciente com a doutrina gnóstica do perenialismo, digamos, mitigado – que pertencem Steve Bannon, OdC, Trump, Bolsonaro, et alii. Mas o que, sobretudo atualmente, a distingue do liberalismo em sentido estrito? Que, conservando inabalavelmente a defesa da democracia e da economia liberais, a direita liberal pretende todavia sustentar pontos da moral católica, ou antes, da lei natural, razão por que em princípio é contra o aborto, as drogas, a prostituição, a ideologia de gênero, e a favor da família tradicional. Mas por que digo em princípio? Porque, assim que deixam de favorecer sua vitória política na democracia liberal e seus lucros na economia idem, tais bandeiras são incontinenti abandonadas por ela. Mate-se a cobra e mostre-se o pau: Bolsonaro, por exemplo, foi contra a propaganda governamental de que o Brasil é um paraíso gay, mas, ato contínuo, mostrou-se favorável ao turismo sexual, digamos, natural. Ora, se assim é, então a direita se mantém ao menos contra a ideologia de gênero, não? Não quando já não lhe interessa, e hoje mesmo me enviaram uma foto de Bernardo Küster com membros do grupo “Gays com Bolsonaro”... Além do mais, que defesa da família natural – já nem se diga da cristã – é essa que inclui a defesa aberta ou tácita do divórcio? Não é só o matrimônio cristão o que é indissolúvel; também o é o matrimônio natural, ordenado por Deus mesmo no Jardim do Éden como inextricável união de duas carnes e dois ossos em uma só carne e um só osso. Ah! esquecia-me: a deputada bolsonarista Carla Zambelli mostrou-se favorável à liberação do uso lúdico da maconha, tal qual já instituído não só no Uruguai, no México comunistoide, em vários países nórdicos, mas também em parte do paraíso do liberal-conservadorismo, os EUA, nação essencialmente maçônica, puritana e liberal. E não vimos já abundantemente nossos liberal-conservadores defender a maçonaria – como é o caso manifesto de OdC –, ou filiar-se a ela, ou frequentá-la de algum modo? Como todos sabme, aliás, a mesma Carla Zambelli se casou nos Arautos do Evangelho, com a ilustre presença do opusdeísta e olavete Ives Gandra Martins, e depois se casou na maçonaria, tendo então por padrinhos os hoje ex-ministros Abraham Weintraub e Sérgio Moro... Basta, não? que começo a ter ânsias e engulhos.
e) Mas, por falar em Bernardo Küster – que posa de católico mas deseja que seus inimigos vão arder no inferno eternamente... –, é o momento de falar do liberal-conservadorismo “católico”, cujo principal defensor no Brasil é um teólogo que não sai da sombra de sua “moita” e que no entanto dirige espiritualmente multidão de ligas, de centros, de institutos católicos, de movimentos contra o aborto, de sacerdotes influentes, etc. Eficientíssimo. Pois bem, o liberal-tradicionalismo “católico”, até por querer-se católico, é menos lábil que o liberal-conservadorismo não católico quanto a aborto, ideologia de gênero, etc. Mas tão só, no fundo, nominalmente, porque, com efeito, de que adianta sê-lo se se alia de fato ao liberal-conservadorismo não católico, adota seu mesmo programa, cala-se diante de sua labilidade, confunde voto em mal menor ou certa tolerância a este com apoio ou adesão a mal menor (aderir a um mal?), deixando assim de defender realmente – não mediante “marketísticas” palavras de ordem como “Viva Cristo Rei!” – o reinado social de Cristo, o que todavia é obrigação diuturna de todo católico; é parte de sua profissão de fé. Com isso, claro, deixa de criticar diuturnamente o liberalismo político e econômico, inimigo visceral do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Deixa de criticar diuturnamente, enfim, o “non serviam” diabólico; e, como quem cala consente... Não por nada – e dado que, assim como um mal menor não deixa de ser um mal, assim tampouco o liberal-conservadorismo deixa de ser liberalismo –, não por nada, digo, tantos papas se ergueram ao longo do tempo contra o liberalismo “católico”, incluindo Pio XII, com cujas contundentes palavras transcritas a seguir encerro esta primeira parte: “Nós percebemos a numerosa classe daqueles que consideram os fundamentos especificamente religiosos da civilização cristã [...] sem valor objetivo [para os dias de hoje], mas que gostariam de conservar o brilho exterior dela para manter de pé uma ordem cívica que não poderia passar sem tal. Corpos sem vida, acometidos de paralisia, são eles mesmos incapazes de opor qualquer coisa às forças subversivas do ateísmo (Discurso à União Internacional das Ligas Femininas Católicas)”.
Observação
final: enquanto sustenta essencialmente o liberalismo, que, como dito, é
a raiz de todas as revoluções, o liberal-conservadorismo (católico ou não) tem contudo
atualmente por cavalo de batalha uma dura crítica a uma das pouquíssimas coisas
em que os atuais e ilegítimos governos de quase todo o mundo ainda têm legitimidade:
o combate à covid. Como a rebelião antivacina do início do século passado, os
liberal-conservadores constituem-se em movimento dos sem-máscara, dos
antivacina, dos antiditadura sanitária, etc. É o lado irracional do liberal-conservadorismo (católico ou não),
diretamente injetado nele, nos dias atuais, pelo irracionalismo perenialista, o que muito
infelizmente atinge também, como se verá, a tradição católica. Como me escreveu
um caro e sábio amigo tradicionalista: “Essa gnose nos meios tradicionais se valeu bem dessa loucura de
negar o evidente da pandemia para unir grande parte da tradição em torno de
coisas como deep state, deep church, great reset, nova
ordem mundial, comunismo chinês [...]. Ao fim o que pode ocorrer é uma ideia de
restauração falsa cuja essência é a própria tradição perene [ou seja,
perenialista]”. Mas isto é assunto para a segunda e a terceira parte
da nossa série. – E, sim, respiro aliviado: apesar de marcado com o selo da
Besta e pois idiotizado por ter-me vacinado contra a covid, creio que escrevi
um texto com pé e cabeça. Uf! que medo tinha de já não ser capaz de tal!...