Carlos Nougué
Não
raramente se vê voltar contra Santo Tomás a seguinte objeção:
•
Em suas provas da existência de Deus, o Aquinate diz que é impossível remontar
ao infinito na série de causas, sob pena de tornar impossível esta mesma série
– razão por que é preciso reconhecer a existência de um primeiro motor (1.ª
via) que seja a causa eficiente das causas eficientes dos entes (2.ª via) e
seja, pois, não só o ente absolutamente necessário (3.ª via), mas também a
causa do ser dos demais (4.ª via) e a causa que os conduz a seu fim (5.ª via).
•
Ora, se assim é, não se entende como Santo Tomás (em diferentes lugares, e
especialmente no opúsculo Sobre a Eternidade do Mundo contra Murmurantes)
pode pôr que não repugna à razão que o mundo existisse desde sempre. Se tal
fosse possível, Deus não seria o primeiro da série de causas motoras, nem a
primeira causa eficiente dos entes, nem a fonte de todas as perfeições destes,
etc.
•
Por conseguinte, contradiz-se gravemente Santo Tomás, e, quanto à criação do
mundo, ou estarão certos os que, negando as Escrituras, negam a possibilidade
da criação no tempo, ou o estarão os que pretendem demonstrar que a criação não
podia ter-se dado senão no tempo.
Mas
tal objeção não procede, e tem origem dupla:
•
de modo geral, o ater-se a um passo da doutrina do Aquinate sem relacioná-lo
“organicamente” aos demais;
•
e, de modo particular, o desconhecer que, se o ponto de partida da especulação
metafísica deve ser sempre de ordem sensível, seu termo haverá de ser sempre,
todavia, de ordem estritamente analógica.[1] Explique-se.
1)
Nas cinco vias por que, na segunda questão da Suma Teológica I, Santo Tomás demonstra que Deus é, ele não cuida
de se as noções e os conceitos nelas utilizados são unívocos ou análogos, ao
passo que na terceira questão já os toma inteiramente em seu termo, ou
seja, como se disse acima, já se encontra em plena analogia. As cinco vias
estabelecem antes de tudo que Deus é, e não especialmente como ele é
(conhecimento este que, para nós, para o intelecto humano nesta vida, tem de
partir do que ele não é). Elas respondem antes de tudo, pois, à questão an
sit a respeito de Deus, mas requerem necessariamente desdobrar-se numa
segunda etapa. Em verdade, como diz o Padre Penido, “entre as duas [etapas] não
há [propriamente] separação, visto que uma fundamenta a outra, e como que a
principia”.[2]
2)
Se nos limitamos, como o antropomorfismo, a entender do seguinte modo as cinco
vias: se as coisas são movidas e movem, é porque há um Motor primeiro; se
coisas são causas eficientes de outras, é porque há uma Causa de todas; se há
entes possíveis, é porque há o Necessário; se os entes têm suas
respectivas perfeições, é porque há uma Maximidade de que estas são
efeito; se existe finalidade nas e para as coisas destituídas de inteligência,
é porque há um Intelecto que as ordena a seu fim; se pois nos limitamos a
entendê-las assim, afirmamos consequentemente que aquele Ente encontrado ao
termo de todas as séries – das quais é motor, eficiente, necessário, dador e
condutor – é de algum modo homogêneo a todas elas. Com tal limitação, de fulcro
antropomorfizante, não se escapa à crítica de Kant e similares.
3)
Ora – insista-se –, para dar a razão dos motores causados, da eficiência
causada, da necessidade causada, das perfeições causadas e do fim causado, é necessário
encontrar a Causa de tudo isso; se porém esta Causa está ela própria sujeita à
mesma deficiência (ser causado), então teremos de recomeçar e
procederemos, assim, ao infinito. Para não se estar preso no círculo
de tal deficiência, é preciso um Ente que não só seja causa
dessas coisas deficientes, senão que saia delas, escape a elas. O
termo, portanto, daquelas séries, o termo que as remata enquanto primeiríssimo,
não pode ser-lhes homogêneo, o que implica dizer que está fora ou acima delas.[3]
4) Naturalmente,
tal conclusão já se encontra de modo incoado nas cinco vias, porque nelas o
Angélico não se limita a dizer: se há movimento, há o Motor; se há
eficiências, há o Eficiente; se há possíveis, há o
Necessário; se há perfeições, há o Perfeito; se há fim, há o
Ordenador a ele. Se o fizesse, insista-se, não sairia do círculo do
antropomorfismo. Mas ele vai além, e as cinco vias já afirmam, entre outras
coisas, algo positivo-negativo: motor, sim, mas imóvel; causa,
sim, mas incausada; ente necessário, sim, mas cuja necessidade não
provém de outro.
5)
Dirá o pensamento de tendência antropomórfica: não só todos os motores, causas,
fins dados pela experiência sensível são necessários para nos alçarmos ao
Motor, Causa, Fim, mas também este mesmo Motor, Causa, Fim tem de ter alguma
homogeneidade com aqueles sob pena de mergulharmos no incognoscível ou no nada.
Por isso mesmo, aliás, prossegue tal pensamento, é que é preciso aplicar a Deus
o conceito de motor, o de causa, o de fim, tomados todos da ordem do sensível.
Sucede, todavia, repliquemos nós, que tais conceitos, aplicados a Deus, já não
podem tomar-se de maneira unívoca, mas análoga.
6) Ora, como se disse, tal já se dá incoadamente nas mesmas cinco vias. Já nelas se repudia a univocidade e se evita, assim, todo e qualquer vestígio de antropomorfismo. Seria possível mostrá-lo a partir de todas cinco, mas limitemo-nos a transcrever in extenso o que diz o Padre Penido com respeito à quarta via.[4]
Seja a noção de “ciência”. Tenho dela,
ao iniciar minhas pesquisas metafísicas, um conceito perfeitamente unívoco
(Caetano, de Nom. An. c. XI, p. 278), que aplico a todos os
homens, indiferentemente. Observando, todavia, que na ciência há graus
infinitos, alargo em analogia de desigualdade esta univocidade algo
amesquinhada. É ainda univocidade, não o esqueçamos, embora mais maleável.
Chego assim a estabelecer uma escala de intensidades variadas; mas o conceito
permanece fundamentalmente o mesmo; as variações são apenas acidentais. Posso
enfim imaginar uma ciência a crescer constantemente; no extremo limite creio
descobrir a superciência, a ciência divina. Se assim fora, nada se explicaria,
e fora inútil entregar-se a um tal trabalho de dilatação, pois esta nova
perfeição não é a ciência subsistente, senão a simples amplificação da minha,
e, como esta é participada, sê-lo-á também aquela. Não foi para encontrar, no
fim de meu raciocínio, a mesma indigência inicial que me aventurei pela quarta
via. Cumpre, portanto, abandonar a “via augmenti” e enveredar pela “via
essendi”; importa encontrar ao termo desta um “maxime tale”, que não seja
unívoco, uma ciência primeira, isto é, por essência imparticipada, razão
de ser das outras: somente o que é por essência pode explicar o que é por
participação. Se retomo agora meu conceito inicial, percebo que ele se alterou,
pois desde este instante deve moldar-se a duas realidades essencialmente diversas:
em um caso, temos uma ciência não participada; no outro, seja qual for sua
perfeição, uma ciência participada. [Isso quer] dizer que Tomás de Aquino não é
sua ciência, que a inteligência humana de Cristo não é sua ciência, ao passo
que Deus é, por identidade, sua ciência. Entre ser a própria
ciência e não [sê-lo], a diferença não é de grau como entre superlativo e
comparativo, mas é uma diferença que atinge o mesmo ser. Deus não é
“sapientissimus”; ele é “super-sapiens”: “Há uma primazia que se mantém dentro
do mesmo gênero e que se exprime pelo comparativo ou pelo superlativo; outra há
que ultrapassa o próprio gênero e que se exprime mercê da partícula super”
(Div. nom., c. 4 1. 5, Vivès, p. 411; cf. De pot., q. 7 a.
7 ad 2-3; Ia. P. q. 4 a. 3 ad 1). Começara
por afirmar que a ciência de Deus era a minha elevada ao superlativo, mas
imediatamente, vistas as diferenças, fui forçado a corrigir o que acabava de
adiantar: é a minha, mas não participada; o que equivale à negativa: não é a
minha (simpliciter diversa). E, entretanto, Deus é Ciência! Também,
apenas eliminei o que minha ciência implicava de imperfeito, tive de afirmar a “superciência”;
por outras palavras: ao cabo da pesquisa, devo renunciar a meu conceito unívoco
por um outro, muito mais flexível, [que não representa] minha ciência,
mas uma ciência analógica, que é, diversamente, a minha e a de Deus.
7) “É pois”, prossegue o Padre Penido,[5] “a uma série complexa de operações que se deve entregar penosamente a inteligência humana, para pensar – grosseiramente ainda, mas com certa verdade – cada perfeição divina. É mister primeiro afirmá-la, depois negá-la, depois ainda sobre-elevá-la, e por fim unir-lhe a noção participada (cf. Ia. P. q. 12 a. 12)”. Trata-se, pois, esquemática mas precisamente, do seguinte:
• há uma
causa (afirmação):
– incausada
(negação);
– supercausa
(sublimação); e
–
causante (relação [propriamente, no caso, só da parte do
causado]).
Trata-se,
em outras palavras, de quatro passos ou degraus da analogia.
Pois
bem, pode-se já mostrar:
a)
que as “cinco vias” de Santo Tomás absolutamente não contradizem sua posição de
que não repugna ao intelecto que a Criação se tivesse feito desde sempre;
b)
e que, suposto tudo quanto se disse mais acima, não estão no certo os que,
negando as Escrituras, negam a possibilidade da criação no tempo, nem os que
pretendem demonstrar que a criação não pode ter-se dado senão no tempo.
Com
efeito, enquanto tal (ou
seja, não enquanto esta ou aquela), a causa eficiente só exige prioridade ou anterioridade de
natureza, não prioridade ou anterioridade de duração (“Nec oportet
omnem causam effectum duratione praecedere, sed natura tantum, sicut patet in
sole et splendor”, diz o Tomás de Aquino em De pot., q. 3, a. 13, ad 5),
razão por que pode agir desde que existe. Enquanto tal, o ente possível
tampouco requer que sua existência seja posterior à da causa. Por conseguinte,
não há impossibilidade alguma em que o mundo pudesse ter existido por criação (ou
seja, ex nihilo) desde sempre. Se não se podem admitir as consequências
que resultariam da criação ab aeterno de alguns entes (os
corruptíveis), isso, porém, prova apenas que cada um destes entes não poderia
ter sido criado desde sempre, mas não que outros entes e, em especial, o mundo
como um todo e segundo sucessão (cf. nota supra)
não o pudessem.
E
isto último é assim porque, ainda que as causas médias fossem de certo modo infinitas, nem por isso se
suprimiria a necessidade da causa primeira. Com efeito, seria possível
mostrá-lo segundo todas as quatro causas. Limitemo-nos, porém, à
motor-eficiente e à material.[6]
§ 1.
Diga-se, pois, em primeiro lugar, que é impossível fazer remontar ao infinito
as causas eficientes ou motoras. Com efeito, diz Santo Tomás no Comentário
à Física:
Não é possível que a causa que se diz
“unde principium motus”, isto é, a causa eficiente, proceda ao infinito, como
quando dizemos que o homem é movido a deixar o agasalho por causa do ar quente,
que o ar foi esquentado pelo sol, que o sol foi movido por alguma outra coisa,
e assim ao infinito.
E
isso é assim pelo seguinte. Na causalidade eficiente, o efeito é sempre
posterior à causa (ainda quando seja posterior só por natureza, e não na
duração). Por conseguinte, se há três coisas que se ordenam causalmente entre
si como primeira, média e última, necessariamente a primeira será causa das posteriores,
ou seja, tanto da média como da última. Não se pode dizer que a última seja
causa das outras, porque não pode ser causa de nenhuma: se fosse causa de
alguma, não seria última. Repita-se: o efeito é sempre posterior à causa no
âmbito da causalidade eficiente. Mas tampouco pode suceder que uma causa média
seja causa de todas, porque não pode ser causa senão da seguinte.
Se
porém não houver uma só causa média, mas muitas, para estas valerá igualmente o
que se disse para aquela: não podem ser causas de todas, porque enquanto são
médias não podem ser causa da anterior. Mas dá-se o mesmo, digo, se as causas
médias são potencialmente infinitas em número (ou seja, efetivamente sem começo
e potencialmente sem fim no tempo [não sem começo nem fim na eternidade],
donde justamente a possibilidade de que o mundo tivesse sido criado desde
sempre):[7]
porque, enquanto são médias, nenhuma delas pode ser causa da primeira
(inteligida agora como a causa que é a primeira da série mas estando fora e acima da série). Com efeito, toda causa eficiente ou motora
que não seja a primeira (ou seja, que seja segunda) requer a causa eficiente ou
motora primeira. Por conseguinte, se há causa média (uma, muitas, ou infinitas
do modo dito), tem de haver uma causa primeira que de modo algum seja, ela
mesma, média.
Se
todavia se admite, insista-se, um processo simpliciter
ao infinito das causas eficientes ou motoras, todas as causas seriam médias
e nenhuma seria primeira. Mas a causa primeira é a causa de todas. Logo, se se
eliminasse a causa primeira (ou seja, a que não é causada por nenhuma
anterior), seguir-se-ia que se eliminariam também todas as causas – e,
eliminadas todas as causas, eliminar-se-ia também tudo aquilo de que tais
causas são causas.
§ 2.
Mas para mostrar, em segundo lugar, que não há processo ao infinito no gênero
da causa material, leiamos antes de tudo ao mesmo Santo Tomás.
Não é possível que se proceda ao
infinito em que algo se faça de algo como de matéria, como, por exemplo, que a
carne se faça de terra, a terra de ar, o ar de fogo, e que isto não se detenha
em algo primeiro, senão que proceda ao infinito.[8]
Devemos,
ademais, ainda de maneira preambular, atender ao que diz o Padre Álvaro
Calderón: “Quanto a isto, há que considerar que o paciente se sujeita ao
agente, de maneira que proceder na ordem dos agentes supõe ascender (sursum
ire), enquanto proceder na ordem dos pacientes implica descer (deorsum
ire). Ora, assim como o agir se atribui à causa eficiente ou motora, assim
também o padecer se atribui à matéria. Portanto, o processo das causas motoras
é ascendente (in sursum), enquanto o processo das causas materiais é
descendente (in deorsum)”.[9]
Mas já se mostrou que não é possível proceder – in sursum – ao
infinito no âmbito das causas eficientes ou motoras: há que mostrar agora, por
conseguinte, que tampouco é possível proceder – in deorsum – ao
infinito no âmbito das causas materiais. Para fazê-lo, antes de tudo
sigamos a argumentação de Santo Tomás em In II Metaphysica, lect. 3, n.
305-314.
No
gênero das causas eficientes, é manifesto para os sentidos o último efeito, que
já não move nada, razão por que já não se investiga se se procede ao
infinito in deorsum – isto é, ao inferior – segundo este
gênero de causas, senão que se investiga apenas se se pode proceder in
sursum, isto é, ao superior – em outras palavras, do mais particular ao
mais universal. No gênero todavia das causas materiais, tem-se por suposto que
existe algo primeiro que é fundamento de tudo o mais: a matéria prima.
Apresenta-se então o problema de se se pode proceder ao infinito descendo – ou
seja, indo do mais universal ao mais particular – segundo o processo mesmo do
que se gera da matéria. Desse modo, se se pusesse, como diz o Padre Calderón,
que a matéria prima de todas as coisas fosse o fogo ou o plasma, haveria que
perguntar se “pode dar-se que do fogo ou do plasma se gere a água ou o
hidrogênio, se da água ou do hidrogênio se gere a terra ou o carbono, se do
carbono os carbonatos, se dos carbonatos outros materiais e assim ao infinito,
indo do mais geral ao mais particular”.[10]
Para
resolver esta questão, é necessário considerar os modos como algo se faz de
outro algo propriamente e essencialmente (isto é, per se).
Com efeito, há que excluir o modo impróprio segundo o qual se diz que
algo se faz de outro algo tão somente porque se faz depois deste algo, como
quando se diz que a Epifania se faz do Natal. Mas isso não se diz propriamente,
porque todo fazer-se é certa mudança, e em toda mudança se requer não só a
ordem de dois termos, mas também um mesmo sujeito para ambos, o que não se dá
no exemplo da Epifania e do Natal.[11]
Pois
bem, diz-se propriamente que algo se faz de outro algo quando algum
sujeito muda disto para aquilo, o que pode dar-se de duplo modo. Antes de tudo,
como da criança se faz o homem, ou seja, na medida em que passa ou muda do
estado infantil para o estado adulto. Depois, como da água se faz o ar, ou
seja, por certa transmutação. Mas também é dupla a diferença entre estes
dois modos.
•
Em primeiro lugar, no primeiro modo se diz que da criança se faz o homem assim
como do que se está fazendo se faz o já feito, ou assim como do
que se está perfazendo se faz o já perfeito. O que está
fazendo-se ou perfazendo-se é algo médio entre o ente e o não ente, assim como
a geração é algo médio entre o ser e o não ser. Ora, assim como pelo meio se
chega ao extremo, assim também do que se gera se faz o que está gerado, e do
que se perfaz se faz o perfeito. Diz-se assim, portanto, que da criança se faz
o homem, ou que do que aprende se faz o sábio. – No segundo modo, todavia,
segundo o qual se diz que da água se faz o ar, um dos extremos não está para o
outro como o que se está fazendo está para o já feito, mas antes como o termo
de que se parte está para o termo a que se chega, de modo que da corrupção de
um se faz o outro.
•
Em segundo lugar, do que se acaba de dizer decorre a outra diferença. Com
efeito, como no primeiro modo um está para o outro como o que se está fazendo
está para o já feito e como o meio está para o extremo, é manifesto que há uma
ordem natural entre os dois, razão por que não podem eles reverter-se entre si
indiferentemente. De fato, não se pode dizer que, assim como da criança se faz
o homem, assim do homem se faz a criança, porque estes dois, de um dos quais se
faz o outro segundo o primeiro modo, não estão entre si como dois termos de
certa transmutação, mas como dois dos quais um vem depois do outro. E isso é
assim porque o gerado, isto é, o que é termo da geração, não se faz da geração
como se a própria geração mudasse no que é, senão que o ser vem após a geração
porque se segue à geração segundo a ordem natural (assim como o termo vem ao
fim da via, e o último após o médio). Se pois se consideram a geração e o ser,
ver-se-á que não diferem do modo que se excluiu, no qual só se considerava a
ordem, como quando se diz que o dia se faz da aurora porque vem depois desta.
Mas tampouco aqui se pode dizer, pela ordem natural que seguem, que
inversamente a aurora se faz do dia: justamente como, pela mesma razão, não se
pode dizer que do homem se faz a criança. – Segundo todavia o outro modo em que
algo se faz de outro algo, dá-se, sim, reversão ou reflexão: com efeito, assim
como o ar se gera da corrupção da água, assim também a água se gera da
corrupção do ar. É que estas duas coisas não estão uma para a outra segundo uma
ordem natural, como de meio para termo, mas como dois extremos que podem ser,
ambos, primeiros ou últimos.
Supostas
pois tais distinções, e sempre segundo Santo Tomás no lugar citado, vê-se que é
impossível um processo ao infinito nos dois modos referidos.
•
No primeiro, no qual, por exemplo, da criança se faz o homem, não se pode
proceder ao infinito porque a criança se encontra como meio entre dois
extremos, o ser e o não ser; e é impossível que, dados estes dois extremos,
haja infinitos meios, porque, com efeito, o extremo repugna ao infinito.
Trata-se da mesma razão que para as causas eficientes ou motoras, onde sempre
se dá uma ordem de anterior a posterior sem reversão ou reflexão.
•
No segundo, ademais, tampouco se pode remontar ao infinito, mas aqui porque
neste modo se dá reversão ou reflexão dos extremos entre si. Com efeito, a corrupção
de um implica a geração do outro, mas, onde se dá reversão ou reflexão,
volta-se ao primeiro, de sorte que o que primeiramente foi princípio passa a
termo. Mas isto não pode dar-se no infinito, em que não há princípio nem fim.
Conclui-se,
por conseguinte, que nada pode fazer-se de outro ao infinito.
Como
diz porém Santo Tomás em muitos lugares e especialmente, repita-se, em Da
Eternidade do Mundo contra Murmurantes, conquanto saibamos pela fé que o
mundo foi criado no tempo, não é impossível porém que tivesse sido criado desde
sempre. Neste caso, portanto, como não se pode remontar ao infinito nas
causas materiais, dever-se-ia então encontrar um princípio material desde
sempre existente de que se fizessem todas as coisas – e pareceriam ter razão,
então, os filósofos pré-aristotélicos. Para refutá-lo, no entanto, basta que
sigamos uma vez mais a Santo Tomás.[12]
Com
efeito, Aristóteles mostra em que sentido algo provém de um princípio material.
Para tal, vale-se aqui de duas suposições gerais com respeito às quais todos os
filósofos antigos estavam de acordo. A primeira é, precisamente, que existe um
primeiro princípio material, o que impede que se remonte ao infinito na
geração. A segunda é a sempiternidade da matéria prima ou primeiro princípio
material tal como postulado por eles. E desta segunda suposição conclui, de
imediato, que de tal matéria prima não se faz nada no segundo modo, ou seja,
como do ar corrupto se faz a água, porque o que é sempiterno não pode
corromper-se. Poder-se-ia objetar, porém, que tais filósofos não punham sempiterno
seu primeiro princípio material como se se tratasse de algo uno segundo o
número, mas enquanto sempiterno por sucessão, assim como se pode pôr a
sempiternidade do gênero humano. Mas exclui-o Aristóteles a partir da primeira
suposição, dizendo que, porque a geração não é infinita in sursum e se detém num primeiro princípio material, é necessário
que de tal princípio de que as demais coisas se fazem por sua corrupção não
seja o postulado por aqueles filósofos. Insista-se, com efeito, em que não pode
ser tal se de sua corrupção se geram as outras coisas, e se ele mesmo se gera
da corrupção das outras coisas. Não resta senão, portanto, que as coisas se
façam de um primeiro princípio material como de um imperfeito existente em
potência, intermediário entre o puro não ente e o ente, e não como a água se
faz da corrupção do ar e vice-versa.
Pois
bem, podemos considerá-lo, de certo modo, o inverso da causa motora ou
eficiente primeira: assim como esta, para sê-lo, há de estar quanto ao ser
acima da própria série de causas de que é primeira, assim também a matéria
prima, para sê-lo, tem de estar quanto ao ser abaixo da própria série de entes
de que é princípio material primeiro: ou seja, subjacente a eles no sentido de
implícita neles, porque, com efeito, a matéria prima por si não tem
forma nem ser, senão que está em potência para todas as formas.
Mas justamente por ser pura potência entre o não ente absoluto e o ente é que a matéria prima, como que mais que tudo, tem de ter sido criada, ou seja, feita de nada, ex nihilo. Como todavia é pura potência, não pode ter sido criada senão como já subjacente aos entes em sua multiplicidade de formas, ou seja, enquanto já informada. Por isso é que, se não pode por si proceder ao infinito segundo sucessão, pode no entanto subjazer numa sucessão potencialmente infinita, por exemplo, de ursos: com o que voltamos às causas eficientes. “Deve dizer-se”, escreve Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica I, q. 46, a. 2, ad 7,[13] “que nas causas eficientes é impossível proceder ao infinito per se: como se as causas que per se se requerem para algum efeito se multiplicassem ao infinito; assim como se a pedra fosse movida pelo bastão, e o bastão pela mão, e isto ao infinito. Mas per accidens não se reputa impossível proceder ao infinito nas causas agentes: é como se todas as causas que se multiplicassem ao infinito não tivessem ordem senão a uma só causa, e sua multiplicação fosse per accidens; assim como um artífice usa muitos martelos per accidens, porque um após outro se quebra. É pois acidental a cada um de tais martelos que opere após a ação de outro martelo. E similarmente é acidental a este homem, enquanto gera, que seja gerado por outro: gera, com efeito, enquanto homem, e não enquanto é filho de outro homem; com efeito, todos os homens generantes têm um mesmo grau nas causas eficientes, ou seja, o grau de generante particular. Por isso não é impossível que um homem seja gerado por outro ao infinito. Isto porém seria impossível se a geração deste homem dependesse de outro homem, e de um corpo elementar, e do sol, e assim ao infinito” (ou seja, enquanto ordenadas per se, é impossível que estas causas não se detenham numa causa primeira e universal). Pois bem, se é possível que um urso seja gerado por outro ao infinito enquanto este é generante particular, e como no urso subjaz aquele primeiro princípio material que é como um meio entre o puro não ente e o ente, então é possível que deste modo a matéria prima também proceda ao infinito. E, deste mesmo modo, poderia ter sido criada desde sempre por Deus.
De
todo o dito, portanto, decorre que aqui se trata de investigar não a origem
temporal, mas a origem entitativa do mundo como um todo e de cada série sua
– o que só é possível se se seguem
os quatro passos ou degraus analógicos postos mais acima.[14]
Ademais, como diz ainda o Padre Penido,[15]
“uma dependência ontológica nada tem que ver com o tempo, pois consiste apenas
numa relação; que esta relação tenha começado a existir em um momento dado, ou
não, pouco importa, contanto que haja uma Fonte e um [ente] que da Fonte receba
(cf. De pot. q. 3, a. 14 c. e ad 8)”.
O mundo, por conseguinte, poderia ter sido criado desde sempre, sem que isso, aliás, implicasse propriamente coeternidade com o criador: porque, com efeito, “Deus é anterior ao mundo em duração. Mas este anterior não designa prioridade de tempo, senão de eternidade”.[16]
Observação final 1. Insista-se
em que, embora não repugne à razão que o mundo tivesse existido desde sempre, é
de fé, como sempre o lembra Santo Tomás, que o mundo foi criado no tempo. Mais
que isso, todavia, é mais conveniente que tenha sido assim, porque assim mais e
melhor se manifestam o poder e a majestade de Deus. Com efeito, como diz Santo
Tomás na Suma Teológica I, q. 46, a.
1, ad 6,[17] deve considerar-se que o
agente universal “deu a seu efeito tanto tempo quanto quis, e segundo o que foi
conveniente para demonstrar sua potência. De fato, de modo mais manifesto
conduz ao conhecimento da potência divina criadora que o mundo não tenha sido
sempre do que se tivesse sido sempre: tudo, com efeito, o que não foi sempre é
manifesto que tem causa; mas não é tão manifesto que [a tenha] o que sempre
foi”.
Observação final 2. Ademais,
ainda que Deus tivesse criado desde sempre ou certos entes ou o universo como
um todo, não se trataria de eternidade. Com efeito, como diz Boécio, “a eternidade é a posse simultaneamente
total e perfeita de uma vida interminável”.[18]
Mas, se Deus tivesse criado desde sempre algum
ente incorruptível, este estaria ou no evo ou no tempo, de cuja razão não faz
parte a simultaneidade total e perfeita. Se todavia tivesse criado desde sempre
o universo como um todo, este também seria segundo
algum modo de sucessão, razão por que tampouco seria de sua razão a simultaneidade
total e perfeita. Não há pois repugnância entre que
Deus seja eterno e que tivesse criado algo desde sempre.
Observação final 3. Por fim, disse-se mais acima que é preciso um
Ente que não só seja causa dessas coisas deficientes, senão
que saia delas, escape a elas. Sucede porém que, quando se encontra, assim, a tal
Ente que está acima ou fora da série das coisas deficientes, já não
poderá dizer-se tão somente Ente, porque, com efeito, tal Ente
acima da série das coisas deficientes é seu mesmo ser e, pois, é o Ser. É o
próprio Ser subsistente por si mesmo.
[1]
“As argumentações metafísicas”, diz Caetano, “empregam a princípio
noções estritamente unas; ao termo, porém, utilizam noções unas apenas
proporcionalmente ou por analogia” (In Iam. q. 13, a. 5; cf. também Ferrar. In I C.G, c. 34, n.
IX; apud Padre Maurílio
Teixeira-Leite Penido, A Função da Analogia em Teologia Dogmática,
Petrópolis, Vozes, 1946, p. 92). – Valer-nos-emos aqui de páginas luminosas do
Padre Penido, o que porém não quer dizer que nos identifiquemos com todo o seu
tratamento do metafísico, o qual a nosso ver escapa em certos pontos ao
espírito de Santo Tomás.
[2]
Ibid., p. 93.
[3]
Cf. Tomás de Aquino, Summa
Theol., I, q. 3, a. 5, ad 2; e Padre
Maurílio Teixeira-Leite Penido, ibid., p. 94-95.
[4] Op. cit., p. 96-97.
[5] Ibid., p. 97.
[6]
Até, exclusive, o parágrafo que se encerra com a nota 12 infra, e excetuadas as referências à possibilidade de que
as causas médias se dessem ao infinito, seguimos a partir daqui o dito pelo Padre Álvaro Calderón em La naturaleza y sus causas, t. II,
Buenos Aires, Ediciones Corredentora, 2016, p. 364-365.
[7]
Mas, como se verá mais adiante, não podem ser potencialmente infinitas senão as
causas eficientes que se multipliquem per
accidens.
[8] In II Metaphysica, lect. 2, n. 300.
[9] La
naturaleza y sus causas, t. II, op. cit., p. 366.
[10]
Idem.
[11]
Se dizemos que a Epifania se faz do Natal, não é senão porque imaginamos que o tempo é
o sujeito das diversas festas.
[12]
Segue-se a partir daqui o dito em In II Metaphysica, lect.
3, n. 315: “Deinde
cum dicit simul autem ostendit quod praedictorum modorum ex prima materia
aliquid fiat. Ubi considerandum est, quod Aristoteles utitur hic duabus
communibus suppositionibus, in quibus omnes antiqui naturales conveniebant:
quarum una est, quod sit aliquod primum principium materiale, ita scilicet quod
in generationibus rerum non procedatur in infinitum ex parte superiori, scilicet
eius ex quo generatur. Secunda suppositio est, quod prima materia est
sempiterna. Ex hac igitur secunda suppositione statim concludit, quod ex prima
materia non fit aliquid secundo modo, scilicet sicut ex aere corrupto fit aqua,
quia scilicet illud quod est sempiternum, non potest corrumpi. Sed quia posset
aliquis dicere, quod primum principium materiale non ponitur a philosophis
sempiternum, propter hoc quod unum numero manens sit sempiternum, sed quia est
sempiternum per successionem, sicut si ponatur humanum genus sempiternum: hoc
excludit ex prima suppositione, dicens, quod, quia generatio non est infinita
in sursum, sed devenitur ad aliquod primum principium materiale, necesse est
quod, si aliquid sit primum materiale principium, ex quo fiunt alia per eius
corruptionem, quod non sit illud sempiternum de quo philosophi dicunt. Non enim
posset esse illud primum materiale principium sempiternum, si eo corrupto alia
generarentur, et iterum ipsum ex alio corrupto generaretur. Unde manifestum
est, quod ex primo materiali principio fit aliquid, sicut ex imperfecto et in
potentia existente, quod est medium inter purum non ens et ens actu; non autem
sicut aqua ex aere fit corrupto”.
[13] “Ad septimum dicendum quod in
causis efficientibus impossibile est procedere in infinitum per se; ut puta si
causae quae per se requiruntur ad aliquem effectum, multiplicarentur in
infinitum; sicut si lapis moveretur a baculo, et baculus a manu, et hoc in
infinitum. Sed per accidens in infinitum procedere in causis agentibus non
reputatur impossibile; ut puta si omnes causae quae in infinitum
multiplicantur, non teneant ordinem nisi unius causae, sed earum multiplicatio
sit per accidens; sicut artifex agit multis martellis per accidens, quia unus
post unum frangitur. Accidit ergo huic martello, quod agat post actionem
alterius martelli. Et similiter accidit huic homini, inquantum generat, quod
sit generatus ab alio, generat enim inquantum homo, et non inquantum est filius
alterius hominis; omnes enim homines generantes habent gradum unum in causis
efficientibus, scilicet gradum particularis generantis. Unde non est
impossibile quod homo generetur ab homine in infinitum. Esset autem
impossibile, si generatio huius hominis dependeret ab hoc homine, et a corpore
elementari, et a sole, et sic in infinitum.”
[14]
Por esta razão, aliás, ou seja, porque se trata
aqui de investigar não a origem temporal mas a origem entitativa do mundo como
um todo e de cada série sua, é que considerar a origem das coisas não pertence
à Filosofia da Natureza, mas à Filosofia Primeira, que considera o ente em
geral e o que transcende o movimento (cf. Tomás
de Aquino, Cont. Gent., II, c. 37).
[15]
Op. cit., p. 98. – Insista-se, no entanto, em que não há em Deus relação às criaturas. É
nestas que há relação a Deus.
[16]
Tomás de Aquino, Summa Theol., I, q. 46, a. 1, ad 8: “Ad
octavum dicendum quod Deus est prior mundo duratione. Sed ly prius non designat
prioritatem temporis, sed aeternitatis”.
[17]
“Sed in agente universali, quod producit rem et tempus, non est considerare
quod agat nunc et non prius, secundum imaginationem temporis post tempus, quasi
tempus praesupponatur eius actioni, sed considerandum est in eo, quod dedit
effectui suo tempus quantum voluit, et secundum quod conveniens fuit ad suam
potentiam demonstrandam. Manifestius enim mundus ducit in cognitionem divinae
potentiae creantis, si mundus non semper fuit, quam si semper fuisset, omne
enim quod non semper fuit, manifestum est habere causam; sed non ita manifestum
est de eo quod semper fuit.”
[18]
Em De consolat., V, pro. 6.