O
historiador italiano Roberto de Mattei respondeu, publicamente, à minha crítica
a um artigo seu em que falava de uma “segunda vinda” de Cristo. Pois bem,
respondo abaixo, por minha vez, a cada ponto de sua resposta (que será inteiramente
transcrita).
1)
Roberto de Mattei: «Fui
acusado de “milenarismo” porque, num meu artigo publicado em Radio Roma Libera,
traduzido por Adelante la Fe, falei de uma “segunda vinda” de Jesus
Cristo entre a Natividade e a Parusia. // Se o meu crítico tivesse lido mais
atentamente o que escrevi, teria percebido que a segunda vinda de Jesus Cristo
de que falo não é física e visível, mas espiritual, “sobre as almas, sobre a
sociedade inteira”, como diz o texto.»
Resposta de Carlos Nougué:
Dizer sin más que haverá uma segunda vinda de Cristo entre duas vindas
físicas passa, sim, a ideia de um vinda física intermediária; e afirmar que
nesta vinda ele reinará “sobre as almas, sobre a sociedade inteira” não
desambígua o texto. Com efeito, como poderia reinar Cristo sobre os corpos? Mesmo
um rei terreno reina antes de tudo sobre as almas. Foi pois no mínimo infeliz
De Mattei em sua formulação. Mas há mais, e divido-o.
a)
Todos sabemos que o período que se estendeu do edito de Milão de Constantino até
a ofensa de Felipe, o Belo, a Bonifácio VIII foi o tempo da Cristandade, quando,
na medida do possível em nosso estado de natureza caída, as sociedades “se guiaram
pela lei do Evangelho” (Leão XIII) e suas leis acorrentaram o demônio, ou antes,
dificultaram sua ação, porque, com efeito, o demônio nunca deixou de ser o
príncipe deste mundo. Se assim é, como de fato o é, então a segunda vinda de que
fala De Mattei seria a terceira.
b)
Ademais, se “reinar sobre as almas e sobre a sociedade inteira” não é uma
hipérbole e implica que, nesta vinda, todas as almas e todas as sociedades seriam
perfeitamente cristãs, então se vai justamente contra todo o Novo Testamento,
incluído o Apocalipse de São João, onde se lê que só na Parusia – ou
segunda vinda física de Cristo – o dragão ou demônio será derrotado perfeitamente
e recluso para sempre no lago de fogo e de enxofre. Se assim não é, deve então
Roberto de Mattei dizer em que sua segunda vinda se diferenciará da Idade
Média, quando, repita-se, apesar de não ter deixado de ser o príncipe deste
mundo, o demônio ou dragão se viu ferido e relativamente acorrentado. Com a
palavra De Mattei: Qual seria a diferença entre sua segunda vinda e a Idade
Média? Seria um reino em que já não haveria as sequelas e consequências do
pecado original?
2)
Roberto de Mattei: «A “segunda
vinda” de Jesus Cristo, desde as primeiras palavras do seu Tratado da Verdadeira
Devoção à Santíssima Virgem, constitui o leitmotiv de toda a obra de
São Luís Maria Grignion de Montfort, que afirma: “Foi pela Santíssima Virgem
Maria que Jesus Cristo veio ao mundo e é também por ela que deve reinar no
mundo” (n. 1). Jesus Cristo, reitera São Luís Maria, deve reinar sobre o
mundo, mas “terá de ser uma consequência necessária do conhecimento e do
reinado da Virgem Maria, que deu Jesus Cristo ao mundo na primeira vez e há-de
também fazê-lo resplandecer na segunda» (n. 13 ) A segunda vinda de Jesus à
terra, por meio de Maria, será “gloriosa e retumbante” tanto quanto a
primeira foi secreta e escondida: “mas ambas serão perfeitas, porque ambas se
farão por Maria” (n. 158).
Resposta de Carlos Nougué:
É também arquissabido que o Santo de Montfort, em seu essencial tratado,
recorre muitas vezes a linguagem figurada ou a sentido translato, algumas vezes,
data venia, sem grande precisão teológica. Desse modo, diz o nosso Santo
que foi do seio de Maria que Cristo predestinou os eleitos: o que pode ser uma
afirmação piedosa e, claro, nem um pouco herética, mas padece de falta de rigor
teológico. Como sempre disseram os teólogos (independentemente de se se trata
de tomistas ou de molinistas), a predestinação é da eternidade e não do
tempo. – Além disso, Sr. Roberto de Mattei, onde está nas palavras do Santo
de Montfort que a vinda a que ele se refere é uma vinda intermediária?
Ao contrário, parece saltar aos olhos que se vale de termos tradicionalmente
entendidos pela Igreja como referentes à Parusia, onde Cristo virá em toda a
glória e esplendor sobre uma nuvem (cf. Apocalipse de São João), ao contrário
da primeira vinda, que, como diz o mesmo São Luís, foi “secreta e escondida”.
3)
Roberto de Mattei: «A “segunda
vinda” de Jesus Cristo é, portanto, o seu Reinado Social, por meio de Maria e
com Maria, destinado a preceder a era do anticristo e da parusia. Por esse
motivo, citei as palavras de Mons. Henri Delassus, que escreve: «Desde o primeiro
Domingo do Advento, a Igreja participa aos seus filhos aquilo que contempla no
meio das trevas deste mundo... Ela vê vir o Filho do Homem, o seu divino
Esposo, não para julgar os mortais, mas para reinar; não para reinar apenas
sobre as almas tomadas individualmente, mas estabelecer o seu império sobre
todos os povos, sobre todas as tribos e sobre todas as línguas do universo»
(Il problema dell’ora presente, vol. II, p. 57). A obra de Mons.
Delassus, elogiada por São Pio X e pelo Cardeal Merry del Val, é um clássico do
pensamento contra-revolucionário.»
Resposta de Carlos Nougué:
Que a obra de Mons. Delassus seja um clássico contrarrevolucionário, razão por
que foi muito elogiado por ninguém menos que S. Pio X, não supõe considerar que
seja perfeita teologicamente – se é que não queremos recorrer a um frágil
argumento de autoridade. E pergunto a Roberto de Mattei, sempre com insistência
e à falta de poder fazê-lo a Mons. Delassus: Qual seria a diferença entre esta
segunda vinda e o Medievo?
4)
Roberto de Mattei: «“A
grande lei da história – escreve, por sua vez, o P. Henri Ramière –, ou
seja, o objectivo supremo proposto pela vontade divina aos indivíduos, às sociedades
e a toda a humanidade é a instauração do Reino de Cristo. Por Reino de Cristo entendemos
a perfeita semelhança e a completa submissão dos indivíduos, dos povos e de toda
a humanidade ao Homem-Deus, modelo soberano de todas as perfeições e soberano
Senhor de todas as coisas” (O Reino de Jesus Cristo na História,
Livraria Civilização, Porto 2001, p. 185).»
Resposta de Carlos Nougué:
Com o perdão da ousadia, Sr. Roberto de Mattei, o dito aí pelo P. Ramière é um
equívoco teológico de não poucas consequências nefastas. Porque, com efeito,
como sempre disseram todos os Doutores, a história humana não tem sentido senão
propter electos (2 Timóteo, 2, 10), ou, dito em outras e já muitíssimo
tradicionais palavras: o fim da história humana é a completação do número
dos eleitos – para a Jerusalém celeste definitiva, não para nenhum
reino social terrestre.
5)
Roberto de Mattei: «“Então,
finalmente – exclama Pio XI na sua encíclica Quas Primas, citando
Leão XIII –, poderão ser curadas tantas feridas, então, cada direito
recuperará a sua força original, então, finalmente, retornarão os preciosos
bens da paz e cairão das mãos espadas e as armas quando todos acolherem de boa
vontade o reino de Cristo e lhe obedecerem, quando todas as línguas confessarem
que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai” (Encíclica Quas
Primas, in AAS, vol. XVII (1925), pp. 600-603).»
Resposta de Carlos Nougué:
Data venia ainda, Sr. Roberto de Mattei, o que o senhor faz aí é uma
apropriação e recorte indébito de texto alheio pro domo sua. Quero crer
que não o faça conscientemente ou calculadamente, e sim por efeito de uma
doutrina, a sua da segunda vinda, crida e pregada como se fora dogma de fé. É óbvio
que Pio XI não fala aí de nenhuma segunda vinda, senão que fala condicionalmente
ou, se se preferir, ex suppositione: Se os povos se converterem a
Cristo Rei, então isto acontecerá (se... – então...). Ademais, veja-se
que Pio XI diz expressamente: “finalmente, retornarão os preciosos bens da paz”.
Se retornarão, é porque já se teriam dado. Mas, se já se teriam dado, quando se
deram, senão na Cristandade medieval? Por isso, com o perdão da insistência, devo
perguntar ainda a Roberto de Mattei: A sua segunda vinda não seria, portanto, a
terceira? E em que se diferenciariam o reino de sua segunda vinda do reino do
Medievo? Em sua segunda vinda, já não se padecerão as consequências e sequelas
da natureza caída?
6)
Roberto de Mattei: Esta é a
doutrina da Igreja, que nada tem a ver com o milenarismo, assim como Nossa
Senhora não foi milenarista quando anunciou, em Fátima, o triunfo do seu
Imaculado Coração, que pode ser considerado uma segunda vinda triunfal de Jesus
e de Maria para reinar sobre as almas e sobre a sociedade.
Resposta de Carlos Nougué:
Divido.
a)
Definitivamente, Sr. Roberto de Mattei, sua doutrina sobre a segunda vinda não é
a doutrina da Igreja.
b)
Em Fátima, Nossa Senhora obviamente não disse que haveria um reino seu
terrestre (ainda que só espiritual, sobre as almas...). Afirmar, como o faz o
senhor, que o triunfo referido por Ela se identifica com sua (de De Mattei)
segunda vinda está entre os exemplos do que chamo pirueta lógica sobre o abismo.
Antes, o triunfo referido ali por Maria parece identificar-se, por participação
ou por analogia de atribuição intrínseca, com o que disse Cristo mesmo
e sempre foi repetido pela Igreja: Cristo já venceu o mundo, Cristo já
trinfou do mundo desde a Cruz, triunfo que, no entanto, só será rematado quando
se cumprir cabalmente o fim da história humana – ou seja, a constituição da Jerusalém
celeste final.
7)
Roberto de Mattei: Agradeço
ao meu crítico por me permitir esclarecer o meu pensamento.
Roberto
de Mattei
Resposta de Carlos Nougué:
Agradeço a Roberto de Mattei a possibilidade de trazer a lume esta tréplica.
Carlos
Nougué
8)
Roberto de Mattei: P.S. Estes
temas são explorados no meu livro Plinio Corrêa de Oliveira – Profeta do
Reino de Maria (Artpress, São Paulo 2015, traduzido em língua italiana e
inglesa).
Resposta de Carlos Nougué:
Estes temas são tratados detidamente em meu curso on-line “Comentário ao
Apocalipse”; e serão tratados ainda mais aprofudada e detidamente em meu livro
(cujo lançamento está previsto para março próximo) Comentário ao Apocalipse e
seu extenso apêndice: “Da História e Sua Ordem a Deus”. – Uma última
observação. Se se quer dizer que haverá um milênio onde voltará a reinar
Cristo, isto não implica desvio da fé nem perigosa ambiguidade se se disser
também, expressa e claramente, que tal milênio se dará sob o governo da Igreja e do Papa (ainda que, claro, sob o influxo
sobrenatural de Cristo e de Maria). Eu não o creio, pelas razões que dou no
artigo 3 de minha questão disputada “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo”
(in Do Papa Herético e outros
opúsculos) e porque considero que
o milênio profetizado no Apocalipse de São João já se cumpriu (de Constantino,
313, a Bonifácio VII, 1303), como o explicarei no referido Comentário ao Apocalipse. Mas sem dúvida, assim formulada e sem infringir
nada da fé (sem, por exemplo, pôr que no reino da segunda vinda já o demônio
não será o príncipe deste mundo e os homens já não padecerão uma natureza
decaída), a opinião segundo a qual o milênio ainda está por cumprir-se tem perfeito
direito de cidade.