Carlos Nougué
Os últimos dias foram para mim algo tensos. Por um lado, discussões infrutíferas com alguns tradicionalistas quanto a D. Viganò (que começou por empreender um bom retorno à tradição, mas não só ainda não se libertou do liberalismo político, senão que, como disse um sacerdote, acabou por “perder o equilíbrio”); por outro lado, a perspectiva já de todo clara de que se acelera a marcha da história rumo ao Anticristo. Por tudo isso me decidi a escrever estas memórias, acompanhadas de palavras de consolo e de esperança.
1) Como já disse publicamente muitas vezes,
só me converti aos 47, 48 anos, e só a partir de então passei a estudar – com
grande afinco – os filósofos gregos; e S. Agostinho, S. Bernardo, S. Tomás; e, criticamente,
modernos como Descartes, Kant, Hegel, Husserl, Voegelin, Lavelle, Zubiri
(destes dois últimos, aliás, traduzi, quase toda a obra); sem nunca descurar,
além disso, de tentar destrinçar a perigosíssima obscuridade camaleônica de
perenialistas como Guénon, Schuon e OdC (aos quais, a propósito, eu mesmo darei
a devida resposta no bojo ou em apêndice de três diferentes livros: o Tratado
dos Universais; as Questões Metafísicas; e o Comentário ao
Apocalipse).
Observação:
Trata-se de três pilares do perenialismo (em
especial de seu espécime mais sinuoso e camaleônico, o de OdC): 1) a “teoria
dos quatro discursos”; 2) a “metafísica da presença” e – para usar expressão
desse outro perenialista que é Wolfgang Smith – a “transcendência imanente de
Deus”; 3) uma história de que Deus é apenas um dos “sujeitos” e que é despida,
em si, de causa final transcendente.
2) Não obstante, como também já disse
publicamente muitas vezes, se logo entendi que o centro de meus estudos havia
de ser o Doutor Angélico, meu tomismo, todavia, padecia um grande mal: a
miragem do autodidatismo. Eram como enxurradas de doutrinas e de livros que me
inundavam a mente com a violência própria da desordem. Esta enfermidade
intelectual, como também já é de domínio público, eu só a sanaria quando
adotasse, há uns nove ou dez anos, o P. Álvaro Calderón como mestre – ainda que
ele nem soubesse nem saiba disso. Não preciso, no entanto, deter-me em detalhes
quanto a isto. O que quero dizer é que, bem antes de conhecer a obra exotérica
e esotérica de Calderón, tive já em 2005, quando vivia no Uruguai, uma como
preordenação da mente e dos estudos ao deparar com três obras: De regno,
de S. Tomás; Lo destronaron, de D. Lefebvre; e, sobretudo, a obra
completa de um gigante: o Cardeal francês Pie de Poitiers (1815-1880) (sob cuja
influência São Pio X formularia o lema de seu pontificado: “Instaurare omnia in
Christo”). Li-a inteira sem intercalação de nenhuma outra. Tratava-se portanto de uma preordenação ordenada, por sua vez, a algo prático ex
suppositione: a realeza social de Cristo.
3) Pois bem, desde a afronta de Felipe, o
Belo, a Bonifácio VIII em 1303 (afronta que marcou o fim do milênio anunciado
por S. João no Apocalipse, o milênio do agrilhoamento e da ferida mortal do
dragão infligidos pela Igreja e sua cristandade) até Leão XIII e o Cardeal Pie
de Poitiers, a doutrina da ordenação essencial do poder temporal ao poder
espiritual – ou seja, a doutrina da realeza social de Cristo – permaneceu, ou
sepultada no silêncio do magistério da Igreja e dos teólogos, ou deformada por
estes mesmos teólogos (incluídos alguns tomistas, e com a honrosa exceção de
São Roberto Belarmino, que, ainda que com linguagem antes platônica, não deixou
de sustentar esta doutrina magisterial que é infalível ao menos ao modo
ordinário). Mas tudo isto, que em verdade eu só viria a saber uns seis anos
depois pela obra (então ainda esotérica) do Padre Calderón El Reino de Dios,
não passou para mim de desdobramento ou complemento do que eu lera nas três
obras acima referidas, em especial a do Cardeal Pie de Poitiers, capaz de
inflamar não só a mente mas o coração de um fiel. Decidi então que minha
atividade católica pública giraria em torno da realeza de Cristo, de sua defesa
intransigente.
4) E, com efeito, junto com outros onze
católicos fundaria o blog “SPES” (Sociedade Permanente de Estudos
Sociopolíticos”) em torno de um manifesto cujo título era “Pela Realeza Total
de Nosso Senhor Jesus Cristo” (manifesto que reaparece, revisado e melhorado e
com o título de “Da Realeza de Cristo”, em meu mais recente livro, Estudos
Tomistas – Opúsculos II). O SPES não teria vida muito longa, porque boa
parte de seus fundadores aderiria à vertigem do sedevacantismo. Mas desde o
início do mesmo SPES uma dúvida me assombrava: Ainda seria factível, neste
mundo apóstata e descristianizado, a restauração de tudo em Cristo? E
adensava-se-me a dúvida especialmente com o estudo de duas obras: o Comentário
tomista à II Tessalonicenses e o Apocalipse de S. João, estudo cujo
fruto mais maduro será meu Comentário ao Apocalipse, mas que, cotejado
com a realidade que se desenrolava diante de meus olhos, já me mostrava a improbabilidade de que o mundo se recristianizasse pelo menos antes
da morte do Anticristo. Sendo assim, portanto, de que valeria a insistência na
realeza social de Cristo?
5) A resposta a isso me veio outra vez do
Cardeal Pie de Poitiers. Suposto que, como artigo de fé por pelo menos
magistério ordinário infalível, a realeza social de Cristo é parte necessária
de nossa confissão cristã, caiu-me como um raio iluminador da alma este sublime
trecho de um discurso do Cardeal francês: lutemos
«com esperança contra a esperança mesma. Pois quero falar a esses cristãos
pusilânimes, a esses cristãos que se fazem escravos da popularidade, adoradores
do sucesso, e que são desconcertados pelo menor progresso do mal. Ah! afetáveis
como são, praza a Deus que as angústias da provação derradeira sejam mitigadas!
Esta provação está próxima ou está distante? Ninguém o sabe [...]. Mas o
certo é que, à medida que o mundo se aproxime de seu termo, os maus e os
sedutores terão cada vez mais vantagem. Já quase não se encontrará fé sobre a
face da terra, ou seja, ela terá desaparecido quase completamente de todas as
instituições terrestres. Os próprios crentes mal ousarão fazer uma profissão
pública e social de suas crenças. A cisão, a separação, o divórcio das
sociedades com Deus, o que é dado por São Paulo como sinal precursor do fim, “nisi
venerit discessio primum”, ir-se-á consumando, dia após dia. A
Igreja, sociedade sem dúvida sempre visível, será cada vez mais reduzida a
proporções simplesmente individuais e domésticas. Ela, que dizia em seus
começos: O lugar me é estreito, abre-me um espaço em que eu possa
habitar: Angustus mihi locus, fac spatium ut habitem, ela se verá
disputar o terreno palmo a palmo, ela será cercada, encerrada por todos os
lados: tanto quanto os séculos a tinham feito grande, tanto se aplicarão muitos
agora a restringi-la. Enfim, haverá para a Igreja da terra uma como verdadeira
derrota, e será dado à Besta mover guerra contra os santos e vencê-los. A
insolência do mal atingirá o ápice. // Ora, nesse extremo das coisas, nesse
estado desesperado, neste globo entregue ao triunfo do mal e que logo será
invadido pelas chamas, o que deverão fazer todos os verdadeiros cristãos, todos
os bons, todos os santos, todos os homens de fé e de coragem? // Aferrando-se a
uma impossibilidade mais palpável que nunca, eles dirão com energia redobrada e
tanto pelo ardor de suas preces como pela atividade de suas obras e pela
intrepidez de suas lutas: Ó Deus! Pai nosso que estais no céu, santificado seja
o vosso nome assim na terra como no céu; venha a nós o vosso reino assim na
terra como no céu; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu! Eles
murmurarão ainda estas palavras, e a terra tremerá sob seus pés. E, assim como
outrora, em seguida a um espantoso desastre, se viu todo o senado de Roma e
todas as ordens do Estado ir ao encontro do cônsul vencido, e felicitá-lo por
não se ter desesperado da república, assim também o senado dos céus, todos os
coros dos anjos, todas as ordens dos bem-aventurados virão ter com
os generosos atletas que tiverem sustentado o combate até ao fim, esperando
contra a esperança mesma: contra spem in spem. E então este
ideal impossível, que todos os eleitos de todos os séculos tinham
obstinadamente perseguido, se tornará enfim realidade. Neste segundo e
derradeiro advento, o Filho entregará o Reino deste mundo a Deus seu Pai, e o
poder do mal terá sido evacuado, para sempre, para o fundo dos abismos; todo
aquele que não tiver querido assimilar-se, incorporar-se a Deus por Jesus Cristo,
pela fé, pelo amor, pela observância da lei será relegado à cloaca das
imundícies eternas. E Deus viverá e reinará plenamente e eternamente, não
apenas na unidade de sua natureza e na sociedade das três pessoas divinas, mas
na plenitude do corpo místico de seu Filho encarnado e na consumação dos
santos!»
6)
É-nos pois imperioso – por império de confissão de fé – repetir e repetir,
ainda que nunca mais o mundo possa voltar a cristianizar-se: Ou as nações se
põem sob o estandarte de Cristo, ou serão cadáveres de sociedade e pasto de
demônios. Tudo no mundo e pois nas nações – política, leis, economia, artes,
etc. – deve ordenar-se a Cristo e sua Igreja, como o corpo à alma, e conformar-se por eles, o que implica que
as mesmas nações ou estados sejam membros da Igreja a título de pessoas morais.
Mas e se a mesma hierarquia Igreja, padecendo desde o CVII severo câncer
liberal, se opõe à realeza social de Cristo? Isto o tratarei detidamente no
curso gratuito “A Atual Crise na Igreja”; mas é desde já ineludível a resposta:
Como se trata de artigo de fé por magistério infalível ao menos ao modo
ordinário, e suposto que a referida hierarquia, em vez de impor sua autoridade
doutrinal, a depõe em prol de um supostamente infalível Povo de Deus por si, então
continuemos a proclamar a realeza de Cristo como nos ensina o Cardeal Pie de
Poitiers.
7)
Mas obviamente a existência mesma desse severo câncer eclesiástico que é uma
hierarquia liberal nos faz suspeitar que se está cumprindo o segundo dos dois
sinais dados por Cristo para a proximidade do fim (o primeiro, evidentemente já
cumprido, é a apostasia das nações): a abominação da desolação instalada no
lugar santo. Como, ademais, não podemos saber nem aproximadamente quão próximos
do fim estamos (até porque “proximidade”, na linguagem de Cristo e das Escrituras,
não significa necessariamente a imediatez que anelam nossos corações desejosos
da Jerusalém final e do fim da iniquidade crescente deste mundo, com os
sofrimentos que se nos avizinham), podemos acabar por mergulhar numa perplexidade
angustiosa, de todo daninha à nossa fé e à nossa alma. Pois é em resposta a este
mesmo perigo que me decidi a divulgar e explicar (primeiro num curso on-line
e depois no já referido livro) o
Apocalipse de S. João, este admirável e sublime livro profético que também tem
por fim, ademais, afervorar-nos a virtude teologal da esperança. Porque, com
efeito, o que nos espera na Jerusalém celeste, o que “o olho nunca viu, o
ouvido nunca ouviu, nem
nunca entrou em pensamento humano, e que Deus tem preparado para os que o amam”,
será nosso prêmio, nosso galardão, cuja amplitude e magnitude absolutamente não
tem termo de comparação com nenhum dos males que possamos sofrer nesta vida por
amor de Deus – por amor do Cordeiro degolado. Terminemos, pois, nossa carreira na terra
merecendo a eterna coroa da justiça, porque, com efeito, Deus não nos pede que
vençamos o bom combate, mas tão só que o travemos. Repitamos então sempre, em
qualquer situação e até nosso último suspiro: “Viva Cristo Rei”. Façamo-lo,
contudo, conscientes de todas as suas implicações religiosas, políticas, econômicas,
artísticas, etc., e não como mero slogan vazio com fins outros que os do
próprio Cristo. Não nos confundamos com aqueles de que falava Pio XII num discurso à União Internacional das Ligas Femininas
Católicas: “Nós percebemos a numerosa classe daqueles que consideram os
fundamentos especificamente religiosos da civilização cristã [...] sem valor
objetivo [para os dias de hoje], mas que gostariam de conservar o brilho
exterior dela para manter de pé uma ordem cívica que não poderia passar sem
tal. Corpos sem vida, acometidos de paralisia, são eles mesmos incapazes de
opor qualquer coisa às forças subversivas do ateísmo”. Não. Nunca nos
esqueçamos do dito por Pio XI na Quas primas, a carta magna da
cristandade: “É manifesto que o nome e o poder de ‘Rei’, no sentido próprio da
palavra, competem a Cristo em sua Humanidade, porque só de Cristo enquanto
homem é que se pode dizer: do Pai recebeu ‘poder, honra e realeza’ (Dan 7,
13-14). Enquanto Verbo, consubstancial ao Pai, não pode deixar de Lhe ser em
tudo igual e, portanto, de ter, como Ele, a suprema e absoluta soberania e
domínio de todas as criaturas. [...] À vista disto, deverá fazer-nos
estranheza que S. João o proclame ‘Príncipe dos reis da terra?’ (Apoc 1, 5) ou
que, aparecendo o próprio Jesus ao mesmo Apóstolo em suas visões proféticas, ‘traga
escrito no vestido e na coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores’? (Apoc 19,
16). O Pai, com efeito, constituiu a Cristo ‘herdeiro de todas as coisas’ (Heb
1, 1). Cumpre que reine até o fim dos tempos, quando ‘puser todos os seus
inimigos sob os pés de Deus e Pai’ (1 Cor 15, 25)”.
Amém.