Carlos Nougué
1) Como já disse e redisse, é inegável que Trump
seja um mal menor que Biden. Mas também o é que seja um mal. E o
é pelas seguintes razões.
a) É um liberal, tanto em termos econômicos
como em termos políticos e morais. Que seja “conservador” na moral quer apenas
dizer, em seu caso e no de toda a direita liberal conservadora, que rejeita
algumas consequências extremas do liberalismo, como o aborto. Mas inegavelmente,
porque, por exemplo, aceita o divórcio, é liberal também no campo dos costumes.
b) Politicamente, é um defensor da
democracia liberal, que, no dizer de São Pio X, “é uma
religião mais universal que a Igreja [...]. Resulta do grande movimento de
apostasia organizado em todos os países para o estabelecimento de uma Igreja
Universal que não terá dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem
freio para as paixões” (Notre charge apostolique). E, como todo liberal
conservador, defende aquilo mesmo – a liberdade de expressão, de imprensa,
etc., tanto para o bem e para o mal – que fez e faz avançar não só a moribunda
revolução estritamente marxista, mas a vigorosa e vitoriosa revolução marcusiana
(voltarei a isto).
c)
Economicamente, é tão liberal, que nem sequer nunca lhe passou pela mente a
doutrina católica do preço justo e da restrição da usura bancária.
2) Mas que
Biden seja um mal maior também é evidente. Enquanto Sanders era um
representante do socialismo marxista, Biden, como Obama ou Hillary, é
representante da mundialmente vitoriosa revolução marcusiana. Enquanto a ideologia
marxista mais genuína é contra o capitalismo e a democracia liberal e divide a sociedade
horizontalmente em classes segundo sua inserção econômica (burguesia, pequena
burguesia, proletariado industrial, campesinato, lumpemproletariado), a
revolução marcusiana é a favor do grande capitalismo e da democracia liberal –
os pastos onde se nutre e cresce – e divide a sociedade verticalmente em “classes”
segundo sua inserção, digamos, “moral” (homens versus mulheres, heterossexuais
versus LGBTs, brancos versus negros, livres versus
presidiários, etc.). O marcusianismo é uma mescla de liberalismo levado a suas
últimas consequências e de marxismo reduzido ao modo de atuar. É a revolução
apocalíptica. Enquanto o liberalismo quis matar a Cristo e o comunismo quis
matar a Deus, o marcusianismo quer matar a natureza humana.
3) No
entanto, são muitas as lições que nos fornece a vitória de Biden.
a) Antes de tudo, a apocalíptica revolução marcusiana não se detém de modo algum sob governos de direita como o de Trump (ou como o de Bolsonaro) – e a vitória de Biden é um patente efeito disto.
b) Depois, mesmo
muitos dos mais combativos católicos dos EUA não deixam de ser, eles também,
liberais, o que se vê pelo inegável fato de que não souberam aproveitar o
respiro proporcionado pelo governo de Trump para tentar reverter o processo de
apostasia entre os cristãos mediante uma proposta de programa fundado na
doutrina da realeza de Cristo. Naturalmente, como diz o Pe. Calderón em El
Reino de Dios, “na Revelação não só não há
nenhuma grande esperança política, mas também a doutrina do pecado original
implica um claro e sábio pessimismo político. O pecado deixou o mundo sob o
poder de Satanás, e, embora Jesus Cristo tenha triunfado sobre ele pela Cruz,
os efeitos da Redenção não serão completos até a renovação do universo na
segunda vinda de Nosso Senhor. Mesmo depois da Cruz e da instituição da Igreja,
o demônio não deixa de ser o ‘Príncipe deste mundo’ [Jo 14, 30]: ‘Estáveis
mortos pelos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o
costume deste mundo, segundo o Príncipe que exerce o poder sobre o ar, o
espírito que agora opera nos filhos da desobediência’ [Ef 2, 1-2]. Até o fim
dos tempos o mundo segue sob o poder de Satanás: ‘Sabemos que somos de Deus, e
todo o mundo está posto sob o Maligno’ [1Jo 5, 19]. E [...] as influências
combinadas do demônio, do mundo e da carne afetam especialmente os homens que
detêm o poder político. E, quanto maior é esse poder, maior a tentação”. – Por outro
lado, todavia, o demônio – o dragão do Apocalipse de S. João – esteve
acorrentado e gravemente ferido por mil anos (de Constantino à ofensa a Bonifácio
VIII): foi a Cristandade romano-medieval. Insista-se: não que nesses mil anos o
demônio não tenha atuado sobre as almas e levado muitas à perdição eterna. Mas
estava acorrentado e ferido porque as nações eram membros da Igreja e sua
legislação favorecia a saúde das almas, razão por que se pode dizer que nelas
boa parte dos cidadãos se salvou. Pois bem, que devemos fazer os católicos?
Mesmo sob o Anticristo final e lutando sempre com esperança contra
a esperança mesma, repetir e repetir que ou as nações se põem sob o estandarte
de Cristo, ou serão sempre – com Trump ou com Biden – pasto de demônios e cadáveres
de sociedade (porque, se, como diz Leão XIII na Immortale Dei, o estado
está para a Igreja como o corpo está para alma, então quando perde sua alma a
nação entra em decomposição, tornando-se fétida carniça). – Mas não: os católicos
conservadores e até muitos católicos tradicionalistas norte-americanos, cujo
catolicismo está infectado de um americanismo persistente ou subjacente, nunca
lutaram com esperança contra a esperança mesma, senão que vincularam sua mesma
existência e sobrevivência à direita ianque (e pois a Trump). Chamem-se pois
conservadores ou tradicionalistas, são em verdade radicalmente liberais, ainda
que em graus diversos.
Observação 1: e
não é essencialmente distinto o caso do Brasil, onde os católicos conservadores
e muitos tradicionalistas se vinculam à direita olavética ou bolsonarista de
modo tal, que “esquecem” o dever de casa: propugnar sempre, sem solução de continuidade,
a realeza social de Cristo, pela qual o estado, a política, a economia, as
artes, os costumes, etc., se ordenam essencialmente ao poder espiritual e se deixam
conformar por ele.
Observação 2: mas
tal condenável postura não é exclusiva dos católicos norte-americanos ou
brasileiros. Vejo com estupor os católicos chilenos erguer a bandeira do mesmo “Estado
de direito” que deu passagem à revolução que os avassala atualmente; e os católicos
espanhóis lutar bravamente pela mesma democracia liberal que levou ao poder os
tiranos comuno-marcusianos que hoje os oprimem e querem levar seus filhos à perdição.
Observação 3: é
claro que, com a apostasia de grande parte da hierarquia da Igreja – apostasia de
que falava, por exemplo, S. Tomás e que foi anunciada por Cristo: a abominação
da desolação instalada no lugar santo –, a capacidade dos católicos para instilar
nas almas a doutrina da realeza de Cristo se vê enormemente minguada. Mas
Cristo não nos pede que vençamos o bom combate, e sim que o combatamos.
c)
Por fim, evidencia-se com a vitória de Biden a congênita inanidade da direita liberal conservadora, inanidade de que resulta que a mesma direita prepare
o rebrotamento da revolução comunista ou da revolução marcusiana. Não foi
exatamente o que se deu com o regime militar brasileiro? E é o que se deu nos
Estados Unidos de Trump e o que se dá no Brasil de Bolsonaro. Antes de tudo,
monotemática ou monomaníaca, essa direita faz do comunismo um como bode expiatório
e, negando-se a distinguir o vitorioso marcusianismo do moribundo marxismo (e
crendo sempre que o livre mercado seja uma panaceia), é incapaz de saber
efetivamente com quem se enfrenta. São cegos guiando cegos contra um inimigo
essencialmente desconhecido. Por isso mesmo, aliás, é que se aferram a teorias
conspiratórias, como sua ridícula postura diante da covid-19, da quarentena, da
máscara (como se a atual pandemia, ao encerrar os cidadãos no estados nacionais
e as famílias no lar, não viesse a contrapelo da pauta global-marcusiana). –
Pior que isto é ver católicos conservadores e até tradicionalistas repetir tais
ridículos mantras da direita, secundando-a numa fábrica histérica, irresponsável,
interminável de fake news (coisa em que se igualam perfeitamente à
esquerda) e persistindo em sua mesma carência de doutrina política verdadeiramente
católica.
§
Conclua-se, pois: com a vitória de Biden, avançou grandemente a revolução
marcusiana e acelerou-se, portanto, a marcha para o Anticristo. Seu governo reforçará
o marcusianismo em todo o mundo, incluindo o Brasil, e dificilmente países como
a Polônia e a Hungria – até por falta de apoio de um Vaticano que almeja
confundir-se com o mundo – conseguirão manter-se em sua legislação cristã,
residual, sim, mas ainda em algum grau cristã. Por isso se perguntava o grande
Cardeal Pie de Poitiers já no século XIX: “Nesse
extremo das coisas, nesse estado desesperado, neste globo entregue ao triunfo
do mal [...], o que deverão fazer todos os verdadeiros cristãos, todos os bons,
todos os santos, todos os homens de fé e de coragem?” E respondia: “Aferrando-se
a uma impossibilidade mais palpável que nunca, eles dirão com energia redobrada
e tanto pelo ardor de suas preces como pela atividade de suas obras e pela
intrepidez de suas lutas: Ó Deus! Pai nosso que estais no céu, santificado seja
o vosso nome assim na terra como no céu; venha a nós o vosso reino assim na
terra como no céu; seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu! Eles
murmurarão ainda estas palavras, e a terra tremerá sob seus pés. E, assim como
outrora, em seguida a um espantoso desastre, se viu todo o senado de Roma e
todas as ordens do Estado ir ao encontro do cônsul vencido, e felicitá-lo por
não se ter desesperado da república, assim também o senado dos céus, todos os
coros dos anjos, todas as ordens dos bem-aventurados virão ter com
os generosos atletas que tiverem sustentado o combate até ao fim, esperando
contra a esperança mesma: contra spem in spem. E então este
ideal impossível, que todos os eleitos de todos os séculos tinham
obstinadamente perseguido, se tornará enfim realidade. Neste segundo e
derradeiro advento, o Filho entregará o Reino deste mundo a Deus seu Pai, e o
poder do mal terá sido evacuado, para sempre, para o fundo dos abismos; todo
aquele que não tiver querido assimilar-se, incorporar-se a Deus por Jesus Cristo,
pela fé, pelo amor, pela observância da lei será relegado à cloaca das
imundícies eternas. E Deus viverá e reinará plenamente e eternamente, não
apenas na unidade de sua natureza e na sociedade das três pessoas divinas, mas
na plenitude do corpo místico de seu Filho encarnado e na consumação dos
santos!”
Amém.