Carlos Nougué
“É melhor sofrer uma injustiça
que
cometê-la.”
Sócrates
Sócrates é o
albor da grande
ciência, aquela que prosseguirá de algum modo com Platão e sua “segunda
navegação”, cujo porto é o suprassensível, e que se consolidará grandemente com a doutrina de Aristóteles, a filosofia por antonomásia.
E gostaria de mostrar
aqui algumas das mais importantes lições que nos legou Sócrates, não só com sua
doutrina, mas com sua vida — doutrina e vida que, afinal, se entrelaçam tão
intimamente, que chega a ser difícil dissociá-las. Servir-nos-ão tais lições em
diversos âmbitos, do filosófico ao da prhónēsis ou prudentia,
mesmo do ângulo católico. Vejamo-las, pois, ainda que brevemente, ao modo de
apontamentos.
1) Em tudo e de tudo, como dirá
Aristóteles, buscava Sócrates a definição, e esta é uma das vertentes metódicas
que desembocarão, na Idade Média, na disputatio escolástica, cujo
aperfeiçoamento final se dará com Santo Tomás de Aquino. Com efeito, como já se
vê nos primeiros e “aporéticos” diálogos platônicos (Êutifron, Íon,
Lísis, Cármides e os dois Hípias),[1] Sócrates não dava
trégua ao intelecto em sua busca — já propriamente científica — de resolver
todos os argumentos ou objeções possíveis contra o correto entendimento e
definição de algo.[2] E, de fato, a confutação e a
maiêutica socráticas são a profícua semente que, após germinar no método
científico de Aristóteles, florescerá abundante e vigorosamente nas muitas quaestiones
disputatae do Aquinate (De veritate,
De potentia, De anima, De malo, De virtutibus, De
spiritualibus creaturis, De unione Verbi), em suas quaestiones de
quolibet, em sua Suma Teológica.
2) Antecipando o que se dirá na República
de Platão acerca da democracia — e, não nos enganemos, a democracia
ateniense tinha muito que ver com a moderna democracia liberal –, fustiga
diversas vezes Sócrates o fundamento daquele regime, com o qual a
sofística formava algo uno.[3] (E não se dará algo semelhante nos dias de hoje?
O que é a ciência hoje, em especial as mal chamadas ciências humanas, senão o reino do
relativismo — o reino da sofística — a serviço da democracia liberal, que,
porém, sob o manto de governo da maioria, não passa de uma partidocracia a
serviço de uma omnipoderosa plutocracia?) Veja-se, a título de exemplo, o
seguinte trecho do diálogo platônico Laques, na parte respeitante à
educação dos filhos de Lisímaco e de Melésias:
“Sócrates — Por quê, Lisímaco? Vais aceitar o que a maioria
de nós aprovar?
Lisímaco — Mas o que se poderia fazer, Sócrates?
Sócrates — Por acaso tu, Melésias, agirias de
igual modo? E, se houvesse uma reunião para decidir sobre a preparação
ginástica de teu filho, sobre em que ele deve exercitar-se, levarias em conta a
maioria de nós ou aquele que fosse precisamente formado e preparado por um bom
professor de ginástica?
Melésias — A este, logicamente, Sócrates.
Sócrates — Levá-lo-ias mais em conta que a nós
quatro?
Melésias — Provavelmente.
Sócrates — Suponho, então, que o que se há de
julgar bem deve julgar-se segundo a ciência, e não segundo a maioria.”
3) O socrático “só sei que nada sei” pode
traduzir-se, como o diz reiteradamente o mesmo Sócrates, no aparente paradoxo
de que só é verdadeiramente sábio aquele que se sabe não sábio. Como, porém,
resolver de modo preciso este aparente paradoxo? Duplamente. Em primeiro: o não
saber socrático é verdadeiro saber diante do falso saber sofístico, porque
destrói o monólogo de efeito dos sofistas e abre campo para a disputa
propriamente científica.[4] Em segundo: só é sábio aquele que se sabe não sábio
diante do deus e que, por isso mesmo, segue os desígnios dele sem
vacilar, mesmo em face da morte. Esta segunda resolução — em que se é tentado a ver uma sorte de “tipo” remoto de
Cristo e de seus mártires — não a alcança a maioria dos comentadores de
Sócrates. E, se assim é, fiquemos aqui, porém, apenas com sua mostração mais
cabal. Com efeito, não há como negá-lo após ler os últimos parágrafos daquele mesmo e
comovente diálogo Críton, nos quais Sócrates, tentando convencer a este
seu amigo de que ele não deve fugir para escapar à morte injusta decretada pelo
tribunal de Atenas, imagina que as leis lhe dirigem as seguintes palavras:
“– Antes, Sócrates, dá-nos crédito a nós [as leis], que te formamos, e não tenhas em mais conta teus
filhos nem tua vida nem nenhuma outra coisa do que ao justo, para que, quando
chegares ao Hades [o mundo dos mortos], exponhas em teu favor todas estas
razões diante dos que governam ali. Com efeito, nem aqui te parece a ti, nem a
nenhum dos teus, que o fazer isso seja melhor nem mais justo nem mais pio, nem
melhor quando chegares ali. Pois bem, se te vais agora [ou seja, se escapas
agora da prisão], vais condenado injustamente não por nós, as leis, mas pelos
homens. Mas, se te evadires tão ineptamente, devolvendo injustiça por injustiça
e mal por mal, violando os acordos e os pactos feitos conosco [as leis] e
fazendo mal aos que menos convém, a ti mesmo, a teus amigos, à pátria e a nós
[as leis], irritar-nos-emos contigo enquanto viveres, e ali, no Hades, as leis
nossas irmãs não te receberão com boa disposição, sabendo que na medida de tuas
forças tentaste destruir-nos. Procura que Críton não te persuada mais que nós a
fazer o que diz [ou seja, a fugir].”
Prossegue Sócrates:
“– Fica bem ciente, meu
querido amigo Críton, de que é isto o que eu creio ouvir [da parte do deus],
[...] e o eco mesmo destas palavras retumba em mim e faz com que eu não possa
ouvir outras. Fica ciente de que é isto o que eu penso agora e de que, se
falares contrariamente a isto, falarás em vão. No entanto, se crês que podes
conseguir algo [ou seja, para convencer-me a fugir], fala.”
Responde Críton:
“– Não tenho nada que
dizer, Sócrates.”
E conclui Sócrates,
encerrando o diálogo:
“– Eia, pois, Críton,
ajamos neste sentido, dado que por aí nos guia o deus [ou seja, caminhe eu para
a morte segundo o desígnio do deus e responda, assim, com um ato de justiça a
uma condenação injusta].”[5]
Não por nada é Sócrates
quem dá, um pouco como reflexo distante do Noûs de Anaxágoras, a
primeira prova mais consistente de que Deus é.
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[1] Ou seja, entre os
primeiros diálogos platônicos, não são “aporéticos” o Críton e, a meu ver, o Protágoras. (Quanto à Apologia de Sócrates, só
impropriamente se pode classificar entre os diálogos.) Ademais, por aporéticos
que sejam, não o são em um sentido preciso: o mostrar que a sofística não é um
verdadeiro saber nem conduz à sōphrosýnē (“sensatez” ou, segundo
Demócrito, o Platão do Crátilo e Aristóteles, “moderação”, aquilo que se
opõe a akolasía ou desenfreio, descomedimento).
[2] Com efeito, diz Sócrates
a Laques, no diálogo homônimo, “o bom caçador deve prosseguir a perseguição e
não deixá-la”, referindo-se precisamente à busca da definição. Usará Platão
metáfora semelhante em diversos outros lugares, como, por exemplo, Lísis,
218 c, e República, IV, 432 b.
[3] Um aluno perguntou-me, certa feita, como podia a sofística ser algo uno com a democracia
ateniense se, de fato, grande parte dos sofistas não era daquela pólis.
Ora, antes de tudo, Protágoras — propriamente o fundador da sofística — foi um
dos principais ideólogos da democracia “ilustrada” de Péricles. Ademais, mesmo
quando estrangeiros, só em Atenas podiam os sofistas exercer plenamente
sua atividade. Veja-se, para tal, a passagem do diálogo Hípias Maior (283
a-284 c) em que este sofista da Élide reconhece que os homens de Lacedemônia
(Esparta) não lhe entregam os filhos para que os eduque nem, pois, lhe dão
dinheiro. Diga-se algo semelhante de Górgias, que era de Leontinos, e dos
demais sofistas não atenienses.
[4] O diálogo socrático
(e pois o platônico) nada tem que ver com o diálogo relativista ou ecumenista
moderno, justamente porque aquele, como ciência, visava à verdade, enquanto
este já parte da negação mesma da verdade. Como já se disse, o diálogo
socrático é método de grande mestre.
[5] A distinção
aristotélica entre ato de justiça e ato justo, e pois entre ato de injustiça e
ato injusto, é de fulcro socrático.