Se e de que modo negou Santo Tomás a
Imaculada Conceição
1. Ao que parece, podem distinguir-se acerca disto três
momentos em Santo Tomás.lxxxvi
• No primeiro, no início
da carreira teológica (1253-1254), ele afirma o privilégio da Imaculada
Conceição, talvez por influxo da tradição e em especial da Festa da Conceição
celebrada em muitas igrejas, além de seu próprio fervor pela santidade perfeita
da Mãe de Deus. Com efeito, escreve no Comentário
às Sentenças de Pedro Lombardo (I, d. 44, q. 1, a. 3, ad 3): “Tal foi a
pureza da Bem-aventurada Virgem, que foi
isenta do pecado original e de pecado atual” (destaque nosso).
• No segundo momento, ao
observar as dificuldades da questão, Santo Tomás hesita e não se decide nem se
pronuncia, porque os teólogos de seu tempo sustentam que Maria é imaculada
independentemente dos méritos de Cristo – o que, com efeito, é de todo
equivocado, porque fere o caráter de universalidade da redenção promovida por
Cristo, caráter que é dito e redito expressamente nas Escrituras (Rom 3, 23; 5,
12 e 19; Gal 3, 33; 2 Cor, 5, 14; 1 Tim, 2, 6). Por isso apresentou o seguinte
problema na Suma Teológica (III, q.
27, a. 2): se a Virgem foi santificada antes
da animação – e já vimos que se trata de animação mediata –, ou seja, na concepção de seu corpo. Santo Tomás
dá, no início deste artigo, quatro argumentos a favor da concepção imaculada,
ainda, pois, antes da mesma animação. E depois responde: “Não se concebe a
santificação da bem-aventurada Virgem antes da animação: em primeiro lugar,
porque esta santificação deve purificá-la do pecado original, o qual não pode
ser apagado senão pela graça, que tem por sujeito a alma mesma; em segundo
lugar, se a Virgem Maria tivesse sido santificada antes da animação, não teria
incorrido jamais na mancha do pecado original e não teria tido necessidade de
ser resgatada por Cristo [...]. E isto não convém, porque Cristo é o salvador
de todos os homens”.lxxxvii Mas
acrescenta ao fim do corpus: “Por
isso, resta que a santificação da Bem-aventurada Virgem se tenha dado após sua
animação”. E reafirma em ad 2: “Contraiu o pecado original”.
→
Quanto todavia ao momento preciso em que a Virgem Maria foi santificada, Santo
Tomás não se pronuncia: declara que se seguiu à animação (“cito post”, diz no Quodlibet 6, a. 7), mas em momento
ignorado (“quo tempore sanctificata fuerit, ignoratur”, diz na Suma Teológica, III, q. 27, a. 2, ad 3).
Na mesma Suma não aprofunda a questão,
ainda considerando que São Boaventura tinha negado que a santificação se
tivesse dado no momento mesmo da animação. Talvez
sua reserva se devesse à atitude da Igreja Romana, que não celebrava a mesma
Festa da Conceição celebrada em outras igrejas.
→ Pois bem, os princípios aduzidos por
Santo Tomás não concluem de todo contra o privilégio, e permanecem se se admite
a redenção preservadora. Mas, como com acerto diz Garrigou-Lagrange, em todo
este momento se sente falta “da distinção explícita entre o debitum incurrendi [débito de incorrer]
e o fato de incorrer na mancha
original” (p. 56).
• No terceiro momento (1272 ou 1273), por fim, diz Santo Tomás: a
bem-aventurada Virgem “não incorre em pecado original, nem em mortal, nem em
venial”.lxxxviii Parece pois que ao fim da vida
Santo Tomás, após certo tempo de reflexão, voltou a afirmar o privilégio
sustentado no Comentário às Sentenças I,
o que se pode notar – de certo modo, dizemos nós – no mesmo Compêndio de Teologia, em cujo capítulo
224 do livro 1 se lê: “Não só de
pecado atual foi isenta, mas também do original, purificada por especial
privilégio. [...] Deve ter-se portanto que foi concebida com pecado original,
mas foi purgada dele de dado modo especial”. Com efeito, não haveria privilégio
especial se só tivesse sido
purificada como o foram Jeremias e São João Batista, ou seja, no seio da mãe
pouco depois da animação.
2. Podemos já concluir também este apêndice, por partes.
• Antes de tudo, insista-se, na época de Santo Tomás os cristãos
estavam divididos quanto ao assunto da Imaculada Conceição, a ponto de a mesma
Igreja Romana não celebrar sua festa. Ora, o dogma da Imaculada Conceição não
foi estabelecido senão no século XIX, obviamente pela regra próxima da fé, ou
seja, o magistério da Igreja sob as chamadas quatro condições vaticanas
(próprias ou análogas).lxxxix
Logo, ainda que o que dizem Garrigou-Lagrange e outros tomistas quanto a este
terceiro momento não se tenha dado de fato, como o querem alguns adversários do
tomismo, em nenhum momento o nosso Doutor cometeu nenhum pecado contra a fé.
• Não obstante, devem dizer-se algumas coisas.
→ Que Maria tenha sido concebida sem a mancha do pecado original não derroga a dignidade
de Cristo enquanto redentor universal, porque foi em previsão e provisão e pois
como efeito especialíssimo da mesma redenção que assim foi concebida. Tinha de
ser carne apta simpliciter para ser
mãe de Deus, e Cristo é não só a consumação mas o eixo dos tempos. – Isto todavia não foi entendido não só por Santo
Tomás, mas por muitos e muitos outros importantes Doutores.
→ Ademais, porém, tanto em Santo Tomás como em
outros Doutores um fundo filosófico contribui para tal
incompreensão: a manutenção da tese aristotélica da dilação da alma última,
tese que já tratamos.
• E sobretudo: se Santo Tomás não foi nem poderia ser dotado de
inerrância, suas poucas imprecisões ou erros filosóficos e/ou teológicos não
derrogam nem minimamente seu posto de maior dos Doutores: não só porque o mesmo
magistério o declarou ao menos ordinariamente o Doutor Comum da Igreja, mas
porque a multidão incalculável de seus acertos filosóficos e sobretudo
teológicos – grande parte dos quais inauditamente adotados pelo mesmo
magistério – o fazem o ápice do pensamento humano e a referida antecâmara da
visão beatífica. Como disse Pio XI, “o tomismo é o céu visto da terra”; mas
ousamos dizer nós: e a terra como o céu quer que a vejamos, ou seja, em ordem a
ele mesmo.
lxxxvi Até à conclusão, que será de
todo nossa, seguiremos aqui algo livremente a Reginald
Garrigou-Lagrange, La Madre del
Salvador y nuestra vida interior,
3ª. ed., trad. José López Navío, Buenos Aires, Ediciones Desclée, de Brower,
1954, p. 53-58. – Agradecemos a Sidney Silveira a indicação deste texto.
lxxxvii Diz Garrigou-Lagrange (p.
54): “Mesmo depois da definição dogmática de 1854 [da Imaculada Conceição], é
verdade afirmar que Maria não foi santificada antes da animação”. Mas isto é
manter a tese da animação mediata. De nossa parte, preferimos formulá-lo assim:
ainda depois da definição dogmática, não é de fé a doutrina da animação imediata;
mas hoje, pelos mesmos dados permitidos pela instrumentária científica, é a que
se deve abraçar.
lxxxviii Expositio super salutationem angelicam, in S. Thomae Aq. opuscula omina, t. I, Paris, ed. Mandonnet, 1927,
introd., p. xix. – Contra, aliás, a impugnação desta
passagem por inautêntica, note-se que, como mostra Garrigou-Lagrange a partir
de J. F. Rossi, ela está em 16 dos 19 manuscritos consultados por este. Mas
alguns a impugnam porque se lê umas linhas abaixo: “Todavia, a bem-aventurada
Virgem foi concebida com o [pecado] original, mas não nasceu [com ele]”. A isto
responde Garrigou-Lagrange: “É inverossímil que a poucas linhas de distância se
encontrem o sim e o não. A dificuldade desaparece se se leva em consideração
que para Santo Tomás a concepção do corpo,
no princípio da evolução do embrião, precede, pelo menos em um mês, à animação,
que é a [chamada] concepção passiva consumada, antes da qual não existe a
pessoa, pois ainda não existe a alma racional” (p. 57, n. 41).
lxxxix Estabelecidas pelo Vaticano
I com respeito ao dogma da infalibilidade papal. Ei-las: “O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra – isto é, / (1ª.) quando cumprindo seu
cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema autoridade apostólica que / (2ª.) uma doutrina sobre a fé e sobre os
costumes / (4ª.) deve ser sustentada / (3ª.) pela Igreja universal –, pela
assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro,
goza daquela infalibilidade de que o Redentor divino quis que fosse provida sua
Igreja na definição da doutrina sobre a fé e sobre os costumes”.