sexta-feira, 7 de abril de 2017

Se a Guerra do Iraque foi uma guerra justa


Carlos Nougué

Resumamos a doutrina de Santo Tomás de Aquino a respeito da guerra justa. Segundo ele, para que uma guerra seja justa, é preciso que se cumpram as seguintes precondições:
1) Que a causa que a move seja justa. Assim, não é justo fazer guerra para impor uma fé, como fazem os muçulmanos; mas é justo mover uma guerra para permitir o exercício da fé verdadeira ou católica, como fizeram os cruzados.
2) Deve ser reta a intenção de quem faz a guerra, ou seja, deve-se ter a intenção de fazer com que retorne a justa paz e a verdadeira ordem.
3) A guerra deve ter possibilidade de êxito, sob pena de nem ser guerra, mas mera sedição, revolta, etc. Foi o que fizeram os essênios ao revoltar-se contra o Império Romano, sem a menor possibilidade de vitória.
4) Mais que isso, porém: ainda que movido por uma justa causa e intenção, e com possibilidade de vitória, aquele que guerreia não tem o direito de usar de mentiras. Naturalmente, não deve revelar seus planos táticos ao inimigo. Mas uma coisa é não revelá-los; outra é mentir, que é pecado em qualquer situação. Assim, o estratagema mentiroso de Pearl Harbor já condena os EUA por abuso do direito de guerra.
Mas consideremos, agora, a Guerra do Iraque.
1) Era justa a causa da guerra ao Iraque? Ainda que demos (mas sem conceder) que, sim, era justa, por tratar-se de impedir novos ataques como o levado a efeito contra as torres gêmeas, não o era por outro ângulo: o impor o regime democrático-liberal. Isto é guerrear para impor uma espécie de fé ― e fé falsa.
2) Tinha Bush intenção reta ao mover a guerra? Embora seja quase infantil acreditar que não fosse movido sobretudo por interesses econômicos, demos outra vez (novamente sem conceder) que não se movia por tais interesses.
3) Tinham os EUA possibilidade de vitória? Sim, é claro.
4) Mas é óbvio que tais “dares” se dissipam ao considerar-se que, em verdade, o alegado e propalado móvel da guerra era já uma grande mentira: a fabricação pelo Iraque de armas químicas. (Afora o fato de nunca, até hoje, ter havido provas efetivas de ligação direta entre Bin Laden e Saddam Hussein.) Isto, de per si, por ser mentirosa a própria razão alegada da guerra, já a torna injusta.
5) Ademais, não sabiam os EUA que a situação interna do Iraque se tornaria pior, sem paz nem ordem, com a queda do presidente daquele país? Quem não sabia que, se Saddam não tivesse sido duro para conter a guerra fratricida das facções islâmicas rivais, incluindo os sanguinários curdos, o Iraque já seria sob Saddam o que é hoje sob os americanos: um território banhado de sangue pelo fanatismo?
6) Mas, como se disse, se não interesses econômicos petrolíferos, pelo menos moveu os EUA a atacar o Iraque a tentativa de impor o credo liberal-democrático. E isso também torna injusta a guerra em questão, porque não era intenção de Bush reinstaurar ali a ordem e paz. Estas, por certo aspecto, já se davam sob o governo de Saddam; ao passo que, como se pode ver perfeitamente hoje, o estado de coisas depois da guerra e do justiçamento de Saddam seria previsivelmente pior que o anterior. Tampouco, portanto, foi justa a guerra no Iraque por este ângulo: intenção não reta, e ao menos grande probabilidade de um estado pior que o anterior. 
7) Além disso, pensemos: o regime de Saddam era o único regime islâmico que dava razoável liberdade à Igreja (havia até um ministro católico). E quem é o principal aliado dos EUA no mundo árabe? A monstruosa Arábia Saudita, lugar de grande perseguição dos católicos.
8) Ademais, não sejamos ingênuos: tanto Saddam como Bin Laden eram agentes dos serviços secretos norte-americanos. Depois, naturalmente, os EUA perderam o controle sobre eles. Sucedeu algo semelhante ao ocorrido no Irã: para derrubar o xá Reza Parlevi, que estava montando a maior frota do Golfo Pérsico, os serviços secretos britânicos estimularam sua derrubada pelo movimento xiita. Depois, é claro, perderam o controle sobre os aiatolás; mas foram a causa primeira da ascensão destes.
9) Nada de surpreendente, se pensarmos que foram os ingleses, mediante Lawrence da Arábia, quem forjou os estados nacionais daqueles beduínos do deserto que constituíam grande parte do povo islâmico; e o fizeram para derrotar seus inimigos na Primeira Guerra Mundial, ainda que à custa da islamização de boa parte da terra.
10) Mas não nos esqueçamos, sobretudo, de que foram os EUA quem pressionou a União Européia a incluir a islâmica Turquia (que sempre fora considerada da Ásia Menor); e, especialmente, quem fez de tudo para que os países europeus aceitassem a entrada maciça de imigrantes muçulmanos. Por quê? Será preciso repetir o óbvio? Para acabar com o que restava de Cristandade. (Aliás, já a Primeira Guerra Mundial não se dera, essencialmente, para acabar com o que já então era o único império católico, o Austro-Húngaro? E a revolução bolchevique também não ocorrera para acabar com o Império czarista, não católico, é verdade, cismático, é verdade, cesaripapista, é verdade, mas ao fim e ao cabo cristão aos olhos do inimigo? E não ocorrera a sanguinária revolução francesa para acabar não só com a monarquia, mas sobretudo com a Igreja Católica e sua união com os poderes temporais? E assim sucessivamente para trás.)
Ou seja, a Guerra do Iraque não foi uma guerra justa.
E lembremo-nos: ou se está sob a bandeira de Cristo Rei e sua Igreja, ou se está sob o pavilhão de Satanás. Tertium non datur: não há terceira possibilidade.


P.S.: Tampouco pode o vencedor de uma guerra castigar o derrotado em proporção maior que a de sua agressão. No máximo o olho por olho, dente por dente. Ora, a bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki era imensamente desproporcional ao dano causado pelo derrotado (que, aliás, já estava realmente derrotado quando sofreu o holocausto nuclear): a bomba atômica não mata apenas inimigos; mata parte da natureza humana, degenera-a ao longo de gerações. Crime inominável, que clama ao céu por vingança. E crime cometido contra as duas únicas cidades japonesas com catedrais católicas; cidades compostas também de considerável população de xintoístas convertidos ao catolicismo.

sábado, 1 de abril de 2017

"Liberalismo e socialismo", por Daniel Scherer


            À primeira vista, não há nada aparentemente mais diferente do que um liberal econômico e um socialista. A oposição enfadonha entre mercado e Estado parece pô-los a léguas de distância um do outro. O laissez-faire e o Welfare parecem contrapor-se como veneno e antídoto, embora as fileiras de combatentes divirjam quanto a quem cabe cada uma dessas designações.
            No entanto, é ainda o “liberalismo fundamental”[1] que subjaz a essas duas ideologias. Ambos os grupos almejam organizar a sociedade de modo puramente imanente, seja pelo mercado, seja pelo Estado, seja por um conúbio escuso de ambos; tentam criar ordem sem apelar a um Summum Bonum transcendente. Daí que Carlos Nougué observe: “O liberalismo e o comunismo brotam de um mesmo non serviam, de uma mesma revolta contra Deus, e ambos carecem de uma correta compreensão do que é o homem, seus produtos e seus fins”[2].
            Isso explica, por exemplo, o persistente insucesso dos liberais brasileiros no combate às doutrinas socialistas em nossas plagas. Nossos liberais julgam que, demonstrada a superioridade – quanto à eficiência econômica – do mercado livre sobre a economia estatizada e o intervencionismo, deram cabo do adversário, o qual, no entanto, e frequentemente para seu espanto, não para de crescer. Atesta Lindenberg:

Os neoliberais estão convictos de que comunistas, socialistas e progressistas são na sua maioria idealistas, honestos, e bem intencionados, mas que ao mesmo tempo estão desinformados e mal orientados. Acreditam por isso, que a difusão em massa de publicações, embora não pretendendo ser polêmica constitui uma evidência cabal das vantagens dos sistemas de mercado e é, por si só, suficiente para levar os ditos grupos a rever suas posições. Acreditam ainda que esses esquerdistas, pertencentes a diferentes faixas de opinião, são essencialmente pragmáticos e, assim sendo, o conceito socialista terá perdido a sua capacidade de atração, em especial após o colapso da União Soviética[3].

Esse equívoco, contudo, deriva menos do pragmatismo utilitarista típico dos liberais – que amiúde os torna cegos, segundo se diz, a considerações mais elevadas e decisivas, como as de ordem moral-religiosa – do que de uma concordância substantiva quanto a esses pontos. Os liberais reprovam nos comunistas apenas o estatismo, porque, quanto ao mais, estão de acordo. Corção é implacável:

Eu ouso dizer que o comunismo é o coroamento do liberalismo, e que em nenhum outro regime o homem é mais desoladamente individual, porque suas relações sociais têm apenas o sentido de cooperação. A relação entre indivíduo e sociedade, tanto no liberalismo como no comunismo, é de ordem puramente material; a relação entre a pessoa e a sociedade compreende também o aspecto material mas subordina-o a um primado do espírito pelo qual o bem comum é homogêneo com a perfeição da pessoa[4].

O próprio Marx, não custa lembrar, afirmava que “a burguesia desempenhou na história um papel extremamente revolucionário”[5]. Marx sabia que a revolução que ele tanto almejava já fora iniciada pela burguesia. Apenas, uma vez conquistado o poder, o burguês, com o perdão do chiste, “aburguesara-se”; perdera o ímpeto dinamizador de outrora. O que Marx denuncia no burguês é a deserção; reprime-o como a um companheiro de luta que mudou de lado, ou no mínimo largou as armas quando encontrou um bunker confortável.