segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Tradição, Tradição católica e falsa tradição


Paolo Pasqualucci

Sumário:
1. A noção de tradição.
2. Tradição cristã e não “judaico-cristã”.
3. Definição da Tradição católica.
4. A Tradição católica não contém nada de secreto, ela não é esotérica.
5. A noção esotérica da tradição é irracional e falsa.
5a. A inversão do significado da Cruz por René Guénon.

Em geral, todos consideram bem conhecido o sentido da palavra “tradição”. Nós, todavia, julgamos importante defini-lo corretamente. É o que faremos neste artigo.

1. A noção de tradição.

Antes de tudo, a ideia de tradição compreende a de certos valores transmitidos e preservados ao longo de gerações. Transmitidos e preservados, ou seja, ensinados e apresentados como valores a se respeitar, visto que constituem o fundamento inalterável de uma determinada concepção de mundo e, consequentemente, do modo de viver de uma sociedade — compreendida globalmente enquanto povo. Com efeito, a tradição se materializa nos costumes. A ideia de tradição está, portanto, ligada à de valor e costume. Não há aqui lugar para uma definição subjetiva do que é o valor: o valor preservado pela Tradição é precisamente aquele que se impõe pelo fato de fundar essa mesma tradição e de pertencer-lhe, a despeito do que pensam os indivíduos, que devem reconhecê-la e obedecer a ela.
Os valores expressos na tradição constituem a verdade da própria tradição. São compreendidos como dignos de pertencer à tradição porque são verdadeiros, porque se considera que nesses valores estão expressas verdades. Verdades de caráter religioso e moral, ou apenas religioso, ou apenas moral, ou moral e político, ou apenas político, ou enfim, provindo apenas dos costumes: uma verdade que é, seja o que for, objetiva, que pertence à coisa enquanto tal, independentemente do fluxo e refluxo de opiniões e acontecimentos.
A verdade que se compreende nos valores da tradição equivale à conformidade desses valores com a ideia de justiça: os valores da tradição são justos, esta é a sua verdade; e é justo observá-los e conservá-los.
A tradição é, portanto, um sistema coerente de princípios e comportamentos que constituem as normas, escritas ou não, das quais o indivíduo não pode se afastar no plano dos costumes ou das leis. Quando ligada a uma instituição ou a uma nação, a Tradição aparece com um componente épico: atos gloriosos e empresas memoráveis — batalhas, guerras.
Assim compreendida, encontramos a tradição em todos os campos da atividade humana, no sentido de que cada um deles forja sempre uma tradição a se respeitar. Até mesmo os criminosos possuem uma tradição em seus atos delituosos, de modo que podemos falar de tradições boas ou más. As tradições más, que são de um tipo diverso, ou as que estão completamente ultrapassadas, devem evidentemente ser combatidas e eliminadas, e não ser observadas, enquanto isso for possível.

2. Tradição cristã e não “judaico-cristã”.

Enquanto expressão de valores positivos, morais e políticos, a tradição é também compreendida no Ocidente como o conjunto de valores referentes ao cristianismo, resumidos neste célebre slogan: “Deus, Família e Pátria”. Essas três noções têm sido consideradas desde sempre como os valores tradicionais por excelência, mesmo quando são negados. Valores que, na Europa, desde a época do Império Romano do Ocidente, foram modelados pelo cristianismo, como ensina a Igreja Católica. Valores que são, portanto, cristãos, e não judaico-cristãos, como se vem dizendo impropriamente desde o Concílio Ecumênico Vaticano II. Com efeito, o judeu-cristianismo” não existiu senão em um momento inicial e local do cristianismo, e rapidamente desapareceu.
Também não se pode dizer que os valores do judaísmo tenham concorrido com os valores católicos para a formação de nossa civilização. Basta considerar a noção de Deus no judaísmo pós-cristão — imobilizada em um Deus único e na rejeição do verdadeiro Messias — a concepção do casamento como contrato dissolúvel pelo divórcio, e outros aspectos concernentes à religião e à moral [por exemplo o “empréstimo a juros”, admitido pelos judeus para com os gentios (Dt 23,20) e não admitidos durante vários séculos pela Igreja].
Na realidade, em seus valores o judaísmo se colocou sempre como antagonista dos valores da Europa cristã anterior ao cisma protestante. Foi somente a partir das aceitações abusivas e ambíguas do Vaticano II sobre a religião judaica — como se ela ainda fosse portadora de uma espera messiânica válida — que se pôs a falar, no meio católico, de judeu-cristianismo, conceito artificial que por sua vez falsifica o cristianismo, pondo-o no mesmo plano que o judaísmo, apesar deste recusar o Cristo a priori.
Os judeus só compartilharam de nossa tradição na medida em que se assimilaram à civilização cristã. O fato é que não se pode colocar sob um denominador comum tradições diferentes umas das outras, quando os valores que elas professam estão em oposição, quer parcial ou total. Falar hoje de valores judaico-cristãos como de valores positivos comuns a católicos e judeus, e mesmo a todos os europeus, é particularmente absurdo, se considerarmos que a maioria dos judeus é ateia e descrente e está mergulhada no materialismo predominante de nossa sociedade. Os judeus concorrem ativamente para a reviravolta “liberal” de nossa civilização. Políticos judeus ou pró-judeus como Sarkorsy, Cameron e Hollande, apoiados por grande parte dos rabinos e intelectuais judeus, tiveram um papel decisivo na criação de leis infames pelas quais a revolução sexual foi imposta a nossas sociedades.
É impossível negar a realidade de que existem tradições contraditórias, e esta realidade deve ser realçada, ao encontro do conformismo ideológico dominante, que fabricou uma ideia totalmente falsa de uma tradição comum a todos os povos, os quais aspirariam desde sempre ao verdadeiro Deus, à paz universal, à dignidade do homem, à democracia. São pseudoverdades que a ideologia liberal dominante impõe há décadas como moeda corrente (e também no meio católico a partir do Vaticano II).
É mister, ao contrário, aceitar a realidade histórica da oposição frontal de tradições. Assim, à tradição cristã — em geral — da Europa e das Américas, particularmente à tradição católica, opõe-se a tradição revolucionária da Europa e das Américas, em seus diferentes componentes, bem conhecidos. Esta última põe a Humanidade no lugar de Deus e da Pátria, e o livre-amor e mesmo um hedonismo desenfreado e irresponsável em lugar da família. Entre essas duas tradições nenhum compromisso é possível. Tentar um compromisso, como o faz a Igreja Católica atual com o aggiornamento aos valores e à mentalidade do mundo moderno, significa apenas entregar-se ao suicídio.
Tentemos agora definir a noção de Tradição católica no sentido estrito.

3. Definição da Tradição católica.

A partir da noção de tradição descrita acima, quais são as características sobre as quais podemos falar de “Tradição católica” como algo de específico, que a distingue das tradições de conteúdos distintos? A característica da Tradição católica é a de representar as verdades e os valores contidos na doutrina e na pastoral da Igreja Católica, que as propõe e ensina como verdades de origem sobrenatural.
A Tradição católica é católica precisamente por que mantém a pretensão de conservar e ensinar a Verdade revelada por Nosso Senhor Jesus Cristo, segunda pessoa da Santíssima Trindade, encarnada historicamente na pessoa do judeu Jesus de Nazaré, que provou por suas palavras e obras que era o Messias, o Filho de Deus anunciado nas profecias do Antigo Testamento, Deus feito homem, semelhante a nós em todas as coisas, exceto o pecado.
Do ponto de vista do seu conteúdo, no sentido estrito e autêntico, a Tradição católica é, portanto, constituída do ensino de Nosso Senhor sobre a fé e os costumes, ou seja, a religião e a moral. Tal ensinamento se encontra nos Evangelhos e nos ensinamentos dos Apóstolos, que foi inicialmente oral e logo depois registrado por escrito. Esse ensinamento é constituído de fontes escritas e não escritas (corpus neotestamentário e fontes não escritas) reconhecidas e aceitas pela Igreja, e foi concluído, como sempre considerou a Igreja, com a morte do último Apóstolo. As verdades de origem sobrenatural reveladas nesses ensinamentos constituem desde então o Depósito da Fé, cuja manutenção é dever específico do Soberano Pontífice, dos Bispos e de todos os clérigos (e também dos fiéis, no que é de sua competência).
O depósito não pode ser alterado por ensinamentos que lhe são contraditórios ou, ao menos, incompatíveis. Algumas verdades de fé e moral sempre podem ser explicadas com mais clareza, e isso geralmente foi conseguido ao longo de debates teológicos ocorridos no combate contra as heresias. Aprofundamento na clarificação do dogma, mas jamais novidade. Como amiúde se diz, o dogma da fé pode ser anunciado nove (de maneira “nova” quanto aos argumentos utilizados) mas nunca introduzindo nova, novas coisas, novidades no próprio conteúdo do dogma.
Eis um exemplo sobre um assunto da atualidade. A indissolubilidade do matrimônio é, para todos os católicos, dogma de fé, constitui uma das verdades fundamentais sempre preservadas pela Tradição católica. É o que foi estabelecido pela doutrina da Igreja, em acordo com a Sagrada Escritura e a tradição oral. Essa verdade se aplica sempre, do contrário não teria sido revelada por Deus: o matrimônio deve ser considerado indissolúvel tanto hoje como nos primeiros tempos do cristianismo, nos tempos dos romanos da Antiguidade. Analisando a noção, vê-se que essa verdade não pode mudar, porque a natureza humana permaneceu sempre a mesma, quanto às suas necessidades elementares e primárias, aos seus desejos, instintos, paixões (e os pecados permaneceram sempre os mesmos, variando apenas as modalidades de execução em diferentes épocas, em função da variação de meios colocados à disposição do pecador.)
O homem e a mulher foram sempre impelidos pelo mesmo instinto vital, presente também entre os animais, de juntar-se para se reproduzir. Em nós, evidentemente, esse instinto está sublimado pela consciência, pela sensibilidade, pela cultura, em suma, pelo ambiente espiritual em que o homem, justamente por possuir uma alma e um pensamento, o cerca, o educa, e busca controlá-lo. Mas permanece um fato eterno que a finalidade primeira do matrimônio transcende a pessoa dos cônjuges, porque consiste na procriação e educação dos filhos. A ajuda mútua dos esposos constitui o fim secundário do matrimônio, sempre e justamente subordinado ao fim primário. Sobre esse fundamento, a Igreja ensinou sempre a disciplina da concupiscência da carne, cujo estímulo, se descontrolado, é altamente destruidor (como sabia também o pensamento clássico, entre seus melhores representantes). Essa concupiscência só pode ser satisfeita no matrimônio corretamente concebido.
Por conseguinte, a nuance de sentido introduzida na concepção do matrimônio pela constituição conciliar Gaudium et Spes, sobre a Igreja e o mundo contemporâneo, aparece em contradição com a Tradição católica no sentido próprio, ou Tradição da Igreja. Com efeito, deduz-se desse texto (no art. 48.1) que a procriação não é tanto o fim primário da união, o que justifica a sua existência, mas sim a sua “coroação” (fastigium): “a instituição do matrimônio e o amor conjugal são ‘ordenadas a procriação e educação que, como um cume, constituem a coroação [iisque veluti suo fastigio coronantur]”. Eis por que, desde algumas décadas, na linguagem eclesiástica, fala-se sempre de matrimônio como de uma “comunidade de vida ou de amor aberta à vida”, e não mais justificado pela procriação e educação, isto é, pelo fato de dever “abrir-se à vida”. A expressão “fim primeiro do matrimônio” não é mais sequer utilizada. Portanto, “a abertura à vida” não parece estar posta [1] como um valor secundário em relação ao “aperfeiçoamento recíproco dos esposos” na “comunidade de amor” que é (e deveria ser) o matrimônio? E os efeitos desastrosos, no meio católico, dessa modificação da concepção do matrimônio, não estão à vista de todos? É preciso então afirmar, em todos os casos, que o enunciado de GS 48.1 não exprime uma concepção de matrimônio plenamente de acordo ao que sempre foi ensinado pela Igreja e, portanto, ao que está plenamente de acordo com a Tradição católica.
Esse desvio da Tradição e, por conseguinte, da justa doutrina, evidentemente não comporta, enquanto tal, o reconhecimento do caráter de “matrimônio” para as uniões estáveis ou coabitações, que permanecem concubinato, nem a admissão do divórcio. Os católicos que se divorciam e se casam novamente no plano civil encontram-se em estado de adultério, e o comércio carnal com o novo cônjuge recai ao nível da fornicação. Todo católico que escolhe viver em uma situação desse gênero ofende a Deus gravemente e comete pecado mortal. E nós sabemos (porque foi-nos revelado) que quem morre em estado de pecado mortal está condenado eternamente.
Entretanto, o fato de ter enfatizado a comunidade de vida e a ajuda mútua dos esposos (em geral compreendida, na realidade crua, como liberdade para aproveitar a fundo da sexualidade durante os primeiros meses ou primeiros anos, com largo uso de contraceptivos, para pensar em seguida em ter apenas um filho, que por vezes não vem porque Deus não permite que brinquem com Ele) favoreceu o enraizamento de concepções heterodoxas, bem representadas hoje na ala abertamente desviada do clero, que tomou a dianteira com arrogância nos dois Sínodos dos Bispos sobre a família (2014 e 2015). A tendência é que venham de fato a reconhecer indiretamente (permitindo acesso aos sacramentos, como a Santa Comunhão) as “comunidades de vida” constituídas por divorciados recasados e concubinos, incluídos aí homossexuais!
Esses clérigos e leigos não se dão conta do absurdo de suas exigências, em si mesmas inaceitáveis no que toca à verdadeira noção de Tradição católica. Ao que parece, não se dão conta de que tais reconhecimentos — que não permitiriam mais distinguir o que é lícito do que não é, vindo assim a destruir o fundamento mesmo da moral — estão em oposição radical com o Depósito de Fé, porque constituem a negação manifesta, embora indireta, da indissolubilidade do matrimônio, a qual seria deixada à boa vontade dos indivíduos, quando ao contrário (nos ensina a Igreja há dois mil anos) ela foi expressamente declarada de modo absoluto e sem nuances por Nosso Senhor e pelo ensinamento dos Apóstolos. E eles não percebem que as tomadas de posição da Autoridade eclesiástica que eles desejam de modo absurdo seriam, em todos os casos, intrinsecamente inválidas, visto que a indissolubilidade do matrimônio é de direito natural e de direito divino positivo (que é aquele contido na Revelação), e que mesmo o Papa não pode ir contra o direito natural e o direito divino, mesmo indiretamente.

4. A Tradição católica não possui nada de secreto, ela não é esotérica.

A Tradição católica expressa, pois, no mais elevado grau, o valor obrigatório de toda tradição que se respeita. E isso por que suas fontes são sobrenaturais, de modo que as verdades que ela proclama devem ser consideradas à maneira de dogmas. Este é um aspecto que não se deve jamais esquecer. Assim como o fato de que essa tradição coincide com o ensinamento da Igreja sobre a fé e os costumes. Ensinamento público e compreensível a todos. Assim como era público e compreensível a todos o ensino de Nosso Senhor Jesus Cristo, que jamais ensinou algo secreto, nem em segredo. Aos guardas do Sinédrio que vinham detê-lo no Jardim de Getsêmani, disse Ele: ”Vós viestes armados de espadas e de varapaus para me prender, como se faz a um salteador; todos os dias estava eu sentado entre vós ensinando no templo, e não me prendestes” (Mt 26, 55). Ele sempre ensinou e agiu em público, na presença de testemunhas e de maneira acessível a qualquer inteligência comum. Por vezes o que dizia poderia parecer difícil à primeira vista, ou obscuro, como no caso das profecias sobre o fim de Jerusalém e sobre o fim do mundo, que Ele tinha voluntariamente entremeado em um só discurso. Mas não se trata de obscuridade e de dificuldades tais que caracterizem um discurso hermético para iniciados. Existe uma tradição interpretativa, reconhecida pela Igreja, que explicou de maneira satisfatória as passagens mais difíceis dos Evangelhos, enquanto que, no que concerne as profecias, ela nos explicou aquilo que é suficiente para compreendermos a necessidade de nossa salvação.
Eis então outro ponto importante a se guardar no espírito sobre a verdadeira noção de Tradição católica: a Tradição católica não compreende ensinamentos secretos de Nosso Senhor ou dos Apóstolos, dispensados às escondidas, em discursos que não teriam jamais sido registrados por ninguém, ou através de símbolos misteriosos, cuja interpretação seria confiada aos “iniciados”. Ela não compreende tal ensinamento, pela simples razão que ela nunca o teve. Na verdadeira Tradição católica não há nada de esotérico. Não existe um cristianismo para as massas, para os simples e os ignorantes, e outro cristianismo esotérico (“sapiencial”) para os iniciados. Trata-se de uma maneira completamente errônea de compreender a Tradição católica, que nós podemos tranquilamente deixar para os maçons, que adoram se entreter com essa espécie de fantasia. Do Evangelho de São João, por exemplo, eles retiram notoriamente os símbolos mais estranhos e inacreditáveis. A noção de Tradição católica não tem, portanto, nada a ver com o conceito esotérico de tradição. Os que acreditam poder conciliar tradição católica e tradição no senso esotérico enganam-se grosseiramente.

5. A noção esotérica de tradição é irracional e falsa

A noção esotérica de tradição é chamada hoje preferencialmente de “sapiencial”. A tradição “sapiencial” se refere manifestamente a um antigo “saber”, entendido como conhecimento original e superior. Mas de que conhecimento se trata? Daquele contido nos livros santos dos judeus e dos cristãos? Este também, embora oportunamente interpretado à luz do “verdadeiro” conhecimento, que seria o conhecimento “sapiencial”. E qual seria concretamente esse “verdadeiro” conhecimento, que teria de ser colocado na fonte de toda a “verdadeira” Tradição? Esse conhecimento seria retirado das crenças e símbolos de religiões antigas, a começar pelas religiões arianas arcaicas, cujo testemunho é o Rig-Veda. Mas não só. Esses conhecimentos ou tradições “primitivas” (é inacreditável) seriam conservados desde milênios em um centro iniciático misterioso ou centro supremo oculto, situado originalmente na Ásia, no Tibete, e que teria sido de algum modo preservado até hoje, embora não se saiba exatamente onde. Esse “centro supremo” é identificado pelos esoteristas em diversas localidades ou cidades míticas: Agartha, Thulé, Luz etc., nomeadas em diferentes “tradições”[1].
As crenças acima revelariam, para quem sabe interpretá-las, os segredos do antigo saber primordial e, portanto, o autêntico (suposto) significado do mundo e da vida. Trata-se de um conhecimento (preservado no misterioso “centro iniciático”) que exige uma iniciação e se funda sobretudo na interpretação dos símbolos. Isso implica, igualmente, expressar-se em símbolos. Essa iniciação elabora significados “sapienciais”, isto é, baseados em um “saber” não racional, pois ela não opera por noções e demonstrações racionais, mas por “iluminações”, metáforas, analogias. Ela não se fia no logos, ou discurso racional, mas no eidos, na imagem, preenchendo-a de significados os mais bizarros. Significados que não estão evidentemente ao alcance de todos, mas tão somente dos “iniciados”, daqueles que estão em posse da “ciência sagrada”, da hermenêutica (dos iniciados) que permitem (re)construir os ditos significados. Entre seus diferentes amadores, essa dita “ciência” deixa também um largo espaço, como se pode imaginar, para práticas iniciáticas repletas de magia e ocultismo, com seus tradicionais contornos libertinos e homossexuais.
Na óptica “sapiencial” própria à tradição compreendida nesse sentido falso e desviado, o Cristianismo não pode então ser concebido em sua autêntica natureza, que é a de ser a fonte única e absoluta da verdade, única e absoluta porque é a única a provir historicamente do verdadeiro Deus, Uno e Trino. A Revelação cristã está compreendida ao contrário, de modo totalmente errôneo, como uma manifestação historicamente determinada do “saber primordial”. Este último lhe seria anterior e o incluiria. O Cristianismo seria a expressão dessa “tradição” sapiencial e, portanto, qualquer outra coisa que não a verdade absoluta de origem divina que ele pretende representar. A Tradição Católica deveria então ser (re) interpretada à luz da “tradição primordial”. O resultado é que o “verdadeiro” ensinamento do Cristo e dos Apóstolos deve ser o ensinamento “sapiencial”, ou secreto, encerrado em símbolos cujo significado não pode ser penetrado pelo comum dos fiéis.

5a. A inversão do significado da Cruz por René Guénon[2].

É quase supérfluo ressaltar que o conteúdo dessa “tradição primordial” permanece sempre algo de vago e indeterminado, pois deve resultar sobretudo da interpretação de mitos e símbolos, os quais retornam sempre a uma realidade ulterior, além e mais profunda, que permanece sempre indeterminada e, em substância, inacessível, como uma espécie de vazio que pode ser preenchido infinitamente. Esse nada revela toda a falsidade da ideia esotérica de tradição. Na óptica de Guénon, sabemo-lo, a “tradição primordial” resultaria “da unidade transcendente das religiões”, de modo que a tradição seria “isto que se conserva tal como no começo, mesmo se não está na sua expressão exterior”. Essa “expressão exterior” deve ser penetrada, nas diferentes religiões, através de uma análise dos símbolos fundada sobretudo na analogia, para remontar justamente à unidade da tradição “primordial”, ao “saber” original[3]. No entanto, essa definição da “tradição primordial” permanece superficial. A dificuldade para compreendê-la, dando-lhe uma substância, aparece também entre outros autores, fortemente influenciados por Guénon, como De Giorgio, que escreve: “a tradição é, portanto, a confluência de todas as vias em Deus e a determinação integrativa de vias que conduzem a Deus, para que Deus seja verdadeiramente o término que se queira atingir e o homem o ponto de partida desse retorno ao ciclo divino”[4]. Quanto a saber de qual Deus se trata, isto não é explicado nem aqui nem no resto do parágrafo, no qual permanecem obscuras as noções de “confluência” e de “determinação integrativa”.
Em uma perspectiva desse tipo, o significado do cristianismo será completamente alterado. Isso aparecerá em toda sua evidência se consideramos, por exemplo, a maneira como Guénon encara o significado da Cruz do Cristo.
“Se o Cristo morreu na cruz”, escreve Guénon, “é justamente, podemos dizer, por causa do valor simbólico que a cruz tem em si mesma e que lhe foi sempre reconhecido em todas as tradições; e é por isso que, sem querer diminuir seu significado histórico, podemos considerá-la como uma simples derivação desse mesmo valor simbólico.”[5] O valor simbólico da cruz, “signo” presente em todas as “tradições” sapienciais, da Índia antiga e da China ao esoterismo muçulmano, pelo qual Guénon era particularmente entusiasmado, prevalece portanto sobre o significado historicamente autêntico da Crucifixão, que não se refere evidentemente à “cruz” enquanto tal, mas à pessoa d’Aquele que morreu na Cruz.
A crucifixão do Cristo, enquanto fato histórico, não apresenta nada de simbólico, no sentido evocado por Guénon. A crucifixão era uma condenação à morte particularmente cruel, utilizada no mundo antigo para punir crimes gravíssimos, como traição e rebelião. Os romanos certamente não a infligiam pelo seu caráter simbólico, menos ainda no sentido “sapiencial” do termo. A morte cruel e infame recordada por sua imagem era considerada como suficientemente dissuasiva para os traidores, rebeldes e quem quer que seja, como uma justa punição pela gravidade de seus crimes. Lembremos do temor com o qual Cícero nomeia esse suplício, definindo-o “crudelissimum teterrimunque”[6]. Jesus foi condenado à cruz por causa das falsas acusações dos Fariseus, que o apresentaram mentirosamente a Pilatos como um rebelde contra a autoridade romana. Do ponto de vista do significado histórico, que não é de forma alguma puramente simbólico, a Cruz tem, para nós crentes, o significado salvífico bem conhecido: é a morte injusta do homem-Deus inocente, livremente entregue para obedecer à vontade do Pai, que exigia reparação pelo pecado de Adão; evento que permitiu à Misericórdia divina perdoar os pecados de todos esses homens e essas mulheres que creem em Cristo, e estabelecem integralmente suas vidas sobre seus ensinamentos.
O significado intrínseco da Cruz de Cristo, e precisamente enquanto fato histórico, que é expiatório (para o pecado de Adão), propiciatório (porque ele nos obtém misericórdia – propitiatio – para nossos pecados), e portanto especificamente salvífico, está completamente perdido na óptica “sapiencial” de um Guénon. A maneira com a qual este último se exprime dá-nos a sensação de que ele atribui à Crucifixão o significado de um símbolo que devia se realizar no Cristo, enquanto símbolo admitido “por todas as tradições”! E de fato, em seu estudo, já citado, ele ostenta um vasto conhecimento de todo o simbolismo esotérico da Cruz “nas diferentes tradições”, simbolismo no qual o verdadeiro significado da Cruz desaparece completamente.
Guénon dá ao símbolo da cruz uma interpretação que define como metafísica, e que tira em particular do esoterismo islâmico. Na realidade, Guénon — como lhe era habitual — busca abrir um caminho em meio a diversos esoterismos, fabricando analogias as mais singulares. A exigência que se expressaria no símbolo da cruz seria aquela da determinação-realização do “Homem Universal”, no qual o “macrocosmo” e o “microcosmo” unificariam os “diferentes estados do ser”. Cada um de nós não seria senão a “modalidade individual humana” do ser ou “Si”. A conexão entre o micro e o macrocosmo pode, portanto, existir em nós somente por analogia, noção que permanece anódina no conjunto, embora Guénon procure clarificá-la. O Homem Universal do esoterismo islâmico seria o Adam Qadmôn da Cabala e “o rei” (Wang) da tradição extremo-oriental. Ora, “o Homem Universal existe apenas virtualmente e de certo modo negativamente, como um arquétipo ideal, até que a realização efetiva do ser total lhe confira uma existência atual e positiva”. Essa “realização” está “simbolizada” na maior parte das doutrinas tradicionais por um signo que é em toda parte o mesmo porque refere-se diretamente à “Tradição primordial”. E esse signo é justamente “o signo da cruz”. E por que razão é precisamente esse signo? Porque a cruz, com seus dois braços, indicaria “a comunhão perfeita da totalidade dos estados do ser, ordenados hierarquicamente em harmonia e conformidade, na expansão integral segundo os dois sentidos da “amplitude” [braço horizontal] e da “elevação” [braço vertical]. Neste “signo” nós temos a representação de uma dupla “expansão do ser”. Horizontalmente, “isto é, em um nível ou grau de existência determinado, e verticalmente, ou seja, na superposição hierárquica de todos os graus”. Segue-se que o “sentido horizontal representa a extensão da individualidade assumida como base da realização [do ser ou Si], extensão que consiste no desenvolvimento indefinido de um conjunto de possibilidades sujeitas a condições particulares de manifestação”. Em oposição, “o sentido vertical representa a hierarquia — ela também com tanto mais razão indefinida — de estados múltiplos, do qual cada um, considerado em sua integridade, representa um conjunto de possibilidades correspondente a um dos numerosos “mundos” ou graus que estão compreendidos na síntese total do Homem Universal”[7].
Nessa construção confusa, que para Guénon seria metafísica, e na qual domina a multiplicidade, compreendida como pluralidade indiferenciada de símbolos e significados retirados da geometria da cruz, a única coisa que se compreende claramente é que (eu noto) essa “realização efetiva da totalidade do ser” é uma forma universal de liberação. De que, de quem? Liberação no sentido esotérico, evidentemente, pois se trata da “liberação” (Moksha) da qual fala a doutrina hindu e que o esoterismo islâmico chama “identidade suprema”, porque o “Homem Universal” que se realiza na totalidade do ser, representado pela Androginia primordial no par “Adão-Eva” teria o número de Allah, o 66, que “é justamente uma expressão dessa identidade”. De toda essa inacreditável mistura, uma só coisa sobressai como evidente: Guénon interpreta a criação do homem e da mulher como criação de um andrógino! Com efeito, ele diz em uma nota específica: “Segundo a Gênese judia, o homem ‘criado homem e mulher’, ou seja, num estado andrógino, é a ‘imagem de Deus’ [...] O estado andrógino original é o estado humano completo, no qual todos os elementos complementares, em lugar de se opor, encontram-se em perfeito equilíbrio”[8].
Por qual lógica Guénon vê na criação bíblica do homem e da mulher a de um “andrógino”? Não sabemos dizer. Nessa interpretação extravagante e blasfematória, fabricada amontoando uma confusão de “analogias” entre os símbolos de diferentes “tradições” esotéricas (que são em si mesmas o resultado de elucubrações e de misturas em todos os gêneros), o que é claramente colocado em luz é a charlatanice erudita de Guénon. Baseado nisso, como se impressionar que ele tenha considerado no final a Cruz de Cristo como símbolo da deificação do homem, alterando completamente seu verdadeiro significado, seguido nessa interpretação por seus discípulos?[9] Do Homem Universal, entende-se, o análogo do Andrógino original suposto: “Não é o homem individual (que, como tal, não pode nada esperar fora de seu próprio estado de existência), mas o ‘Homem Universal’, que essa cruz simboliza, que é verdadeiramente a ‘medida de todas as coisas’, segundo a expressão já relatada de Protágoras”[10].
Por conseguinte, a célebre passagem do Evangelho de São João, na qual o Cristo se define como “o caminho, a verdade, a vida”, pode ser interpretada, segundo Guénon, no sentido de sua própria metafísica, isto é, referindo-a à Cruz como símbolo do Homem Universal.

“Retornando por um instante à nossa primeira representação ‘microcósmica’ e examinando seus três eixos de coordenadas [confluindo para o centro da cruz], a ‘via’ (especifica para o ser considerado) será representada pelo eixo vertical; quanto aos dois eixos horizontais, um representa ‘a verdade’, e o outro a ‘vida’. Enquanto que a ‘via’ se refere ao ’Homem Universal’, que é idêntico ao ‘Si’, a ‘verdade’ se refere ao homem intelectual e a ‘vida’ ao homem corporal (embora esta última possa sofrer certa transposição); destes dois termos, pertencendo ambos ao domínio de um estado particular, ou seja, a um mesmo grau de existência universal, o primeiro deve ser assimilado à individualidade integral, da qual o segundo é apenas uma modalidade [...] Isso implica portanto que o desenho da cruz em três dimensões se refere à individualidade humana terrestre, porque é somente em relação a esse que nós levamos em consideração a ‘via’ e a ‘verdade’; esse traço representa a ação do Verbo na realização do ser total, e sua identificação com o ‘Homem Universal’.” [11]

No clima cada vez mais conturbado que conhecemos hoje, dão-se ouvidos até mesmo àqueles que, ao verdadeiro significado da Cruz consagrado por toda a Tradição de fé da Catolicidade (que se pense por exemplo em obras como a Imitação de Cristo), superpõem a falsa interpretação sapiencial ou esotérica da Cruz como símbolo graças ao qual “resolvem-se todas as oposições” e se espera (simbolicamente) uma espécie de harmonia universal, a do suposto “Homem Universal”.
O sincretismo que caracteriza a noção “sapiencial” da tradição parecer visar ao mesmo fim que o ecumenismo professado hoje pela Hierarquia católica: a realização da paz no mundo, da harmonia universal na união de todas as “tradições” e, portanto, de todas as experiências religiosas. Um objetivo que, sabemo-lo, não só não tem nada em comum com o fim da verdadeira Tradição católica, mas a ela se opõe frontalmente.

Tradução: Permanência (http://permanencia.org.br/drupal/node/5202)
[fonte: Courrier de Rome nº 588]
[Nota de C. N.: Procedi a correções ortográficas e similares.]

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[1] A respeito do tema, cf. René Guénon, Le roi du monde (1958), com detalhes em profusão. A julgar por este ensaio, Guénon, que alguns insistem em considerar como autêntico filósofo, parecia acreditar realmente na existência de tal centro e na dos “superiores ocultos”! O mito de um centro oculto de sabedoria primordial ou tradicional que continuou a funcionar em segredo no decurso dos séculos é uma característica da “filosofia esotérica”. Esoteristas como Reghini, Evola e De Giorgio consideravam, sem fornecer nenhuma prova, que “a tradição pagã” se preservou sempre secretamente na Itália, com seus ritos, sem interrupção desde os tempos antigos (sobre este ponto: P. di Vona, Evola e Guenon. Tradizione e civiltà, Società Editrice Napoletana, 1985, p. 195.)
[2] Sobre este perigoso autor, recomendamos os artigos “Quem inspirou René Guénon”, de Antoine de Motreff, que traduzimos e publicamos na Revista Permanência 281, bem como o “Catecismo sobre a anti-Igreja”, de Dominicus, publicado na Revista Permanência 278 [N. da P.]
[3] Sobre este ponto, ver: P. di Vona, op. cit., p. 113.
[4] G. de Giorgio, La tradizione romana, Edizione Mediterranee, Roma, 1989, p.91.
[5] René Guénon, Le symbolisme de la Croix.
[6] Dr. G. Toscano, La Sindone e la scienza medica, Mimep-Docete, s.d., pp. 49-50.
[7] Guénon, op. cit., pp. 25-32. Para todas as iniciações. Essa interpretação do símbolo da Cruz deriva originalmente da alquimia. Ver: O. Wirth, Le symobolisme hermétique dans ses raports avec l’Alchimie et la Franc-Maçonnerie, 1969.
[8] Op. cit., pp.33-34.
[9] P. di Vona, op. cit., p. 191.
[10]R. Guénon, op. cit., pp. 131-132.
[11] Op. cit. pp.166-167.