quinta-feira, 7 de abril de 2016

Se o pecado de nossos primeiros pais foi pecado de concupiscência ou de gnose


Carlos Nougué

Sempre foi muito difundida entre o povo cristão, e especialmente entre seus pintores e outros artistas, a concepção de que o pecado original foi antes de tudo um pecado de concupiscência; sinal de tal difusão é a grande quantidade de pinturas que, retratando a Adão e a Eva nus ou seminus, mostram esta oferecendo àquele uma suculenta e sedutora maçã vermelha.[1] – Em tempos recentes, por outro lado, estudiosos da gnose insistiram em que o pecado original foi antes de tudo um pecado justamente de gnose.
Mas nenhuma dessas duas opiniões se sustenta, especialmente porque nenhuma delas se segue do consentimento unânime ou quase unânime dos Padres quanto a este assunto (e, como se sabe, não é lícito contrariar tal consentimento, em especial quando se trata de exegese bíblica); nem da doutrina de Santo Tomás de Aquino, o Doutor Comum da Igreja por determinação do magistério eclesiástico; nem, sobretudo, deste mesmo magistério, ao qual devemos dócil e humilde assentimento.[2]      

I

Com efeito, lê-se no Catecismo da Doutrina Cristã de São Pio X (o catecismo de 1912):
70. Che peccato fu quello di Adamo?
II peccato di Adamo fu un peccato grave di superbia e di disubbidienza”, ou seja:
“O pecado de Adão foi um pecado grave de soberba e de desobediência”.
Explica-o Santo Tomás (na Suma Teológica, I-II, q. 82, a 3): “Cada coisa tem a espécie por sua forma. Ora, disse-se mais acima que a espécie do pecado se toma de sua causa. Por conseguinte, é necessário que o que nele é formal se defina por tal causa. Como todavia as coisas opostas têm causas opostas, por isso mesmo se deve estabelecer a causa do pecado original por seu oposto, que é a justiça original [ou seja, o estado em que foram criados Adão e Eva]. Mas toda a ordenação da justiça original vinha de que a vontade humana estivesse sujeita a Deus. Tal sujeição se dava, antes de tudo e sobretudo, pela vontade, porque é à vontade que corresponde mover a seu fim todas as outras partes da alma, como se disse mais acima. Assim, foi do afastamento da vontade [de Adão e Eva] de Deus [o que constitui, propriamente, o pecado de soberba e de desobediência de que fala o catecismo] que se seguiu a desordem em todas as outras potências da alma [tanto em Adão e Eva como em sua descendência].
Desse modo, a privação desta justiça [a original] pela qual a vontade se submetia a Deus é o formal no pecado original: toda e qualquer outra desordem das potências da alma se tem no pecado original como algo material. Mas o que constitui a desordem das outras potências da alma é sobretudo que elas estejam voltadas para um bem mutável, desordem que pode chamar-se pelo nome comum de concupiscência. E, assim, o pecado original é materialmente a concupiscência, mas formalmente é a ausência da justiça original”.  
É verdade que, como dizem Santo Tomás e numerosos Padres, não deixou de haver no pecado original dupla sedução: antes de tudo, da serpente com respeito a Eva, pela promessa de que se ela e Adão comessem da proibida árvore da ciência do bem e do mal de modo algum morreriam, porque “Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes dele [o fruto da árvore proibida], se abrirão vossos olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. Viu pois a mulher que (o fruto) da árvore era bom para comer, e formoso aos olhos, e tirou do fruto dela e comeu; e deu a seu marido, que também comeu. E os olhos de ambos se abriram; e, tendo conhecido que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram para si cinturas” (Gn 3, 4-7). Depois, de Eva com respeito a Adão, como se vê pelas mesmas palavras do Gênesis que se acabam de citar. Mas a sedução da mulher pela serpente, conquanto de fato tivesse precedido a ação de pecar, foi todavia subsequente a um pecado de soberba, interior. Com efeito, observou Santo Agostinho (citamo-lo de memória): “A mulher não teria crido nas palavras da serpente se já não tivesse no espírito o amor de seu próprio poder e certa presunção soberba de si mesma”. E diga-se o mesmo com relação a Adão: não se teria deixado levar a agir contra o formal da justiça original se já não tivesse no espírito algum amor-próprio e certa presunção de si mesmo. Repita-se, pois, com Santo Tomás, que o pecado original pôde envolver materialmente alguma concupiscência, mas formalmente se constituiu em contrariedade da justiça original, ou seja, em negação da devida sujeição da vontade a Deus.

II

A gnose, no sentido que nos interessa aqui, começou antes de Cristo. Parece ter sua origem no bramanismo, e ressurgir, na antiga Grécia, no âmbito dos mistérios órficos e da seita pitagórica (com ecos em Platão). Sua doutrina cifra-se na crença de que a salvação do homem se dá mediante o conhecimento da divindade alcançado por esforço ascético e intelectual próprios. Depois de Cristo, sem deixar de cifrar-se nessa crença, a gnose adquire novos caracteres, e não raro vem no bojo de alguma heresia cristã.
Por certo os referidos estudiosos se fundaram nas mesmas palavras do Gênesis transcritas mais acima para afirmar que o pecado original foi antes de tudo um pecado de gnose. Com efeito, Adão e Eva comeram da árvore da “ciência [e gnose quer dizer etimologicamente ‘conhecimento, ciência’] do bem e do mal”, porque se deixaram seduzir pelas palavras da serpente: “se abrirão vossos olhos [ou seja, conhecereis, tereis ciência] e sereis como deuses”. Trata-se, porém, de conclusão precipitada, pelas seguintes razões.
• Em primeiro lugar e segundo o dito mais acima, ainda que nossos primeiros pais se tenham deixado seduzir também por uma promessa de certo conhecimento ou ciência, a apetência desta constituiu, como certa concupiscência, parte do material do pecado original, não seu formal, que continuaria a ser a negação soberba da devida sujeição da vontade a Deus.
• E, em segundo lugar, está o que se lê no Catecismo Maior de São Pio X (ao menos em sua versão brasileira, mais precisamente em sua “Breve história da Religião”):
19. [Deus] Havia-lhes permitido [a Adão e Eva] que comessem de todos os frutos do Paraíso terrestre, proibindo-lhes apenas que experimentassem o fruto de uma árvore que estava no meio do Paraíso, e que a Escritura chama árvore da ciência do bem e do mal. Chama-se assim porque Adão e Eva, por sua obediência, teriam conhecido o bem, isto é, haveriam tido aumento de graça e de felicidade; ou, como castigo de sua desobediência, deveriam decair, eles e seus descendentes, daquela perfeição e experimentar o mal, tanto espiritual como corporal.
Queria Deus que Adão e Eva, com a homenagem dessa obediência, o reconhecessem como a seu Dono e Senhor.
O demônio, invejoso de sua felicidade, tentou Eva, falando-lhe por meio da serpente, e instigando-a a desobedecer à proibição recebida. Eva, então, tomou o fruto proibido, comeu, e induziu Adão a que também ele o comesse, e ambos pecaram”.
Pois bem, dizer bem e mal é dizer respeito também ao agir, ao prático, e à vontade: e o conhecimento buscado tanto pela gnose pré-cristã como pela pós-cristã é antes da ordem do estritamente especulativo, servindo-lhe a ascese de mero meio. Ora, como acabamos de ver também pela citação do Catecismo Maior, a sujeição a Deus que constituía a justiça original era antes de tudo da vontade, e a serpente disse a Eva que eles seriam como deuses antes de tudo por quebrantar o formal da justiça original. É verdade que o quebrantamento da devida sujeição a Deus e à lei natural também está presente nas seitas gnósticas, sobretudo as pós-cristãs. Mas seu fim segue sendo a salvação pelo conhecimento perfeito da divindade que seus sectários ou iluminados alcançariam graças a seus próprios esforços, fosse possível tal conhecimento nesta vida: não o é senão sob a luz da glória para os salvos pela misericórdia de Deus. Mas os salvos por sua misericórdia não o são por terem conhecido mais que outros a Deus, e sim sobretudo por o terem amado: porque nesta vida, como diria Santo Tomás de Aquino, mais vale amar que conhecer a Deus, para na outra vida amá-lo indefectivelmente justo por conhecê-lo por essência.



[1] Aliás, em nenhum momento o relato do Gênesis diz que o fruto da árvore da ciência do bem e do mal fosse maçã nem nenhum outro que conheçamos.
[2] Trata-se aqui, esclareça-se, do magistério propriamente ou analogamente infalível e do meramente autêntico que se aproxime daquele em certeza.